Frutuoso Chaves*
Faltava o alho. Ele, então, se dispôs a buscá-lo numa das prateleiras do armário instalado sob o balcão da cozinha. “É a porta do lado direito?”, perguntou. “Não. É a do lado do fogão”, ela respondeu.
Ambiente apertado, teve que se imprensar entre a geladeira e a amiga, nela roçando sem segundas intenções. Abriu a portinha branca, olhou alguns frascos transparentes, todos com tampa vermelha, e encontrou o que procurava.
“Quantos dentes?”. Resposta: “Me dá uns cinco”. Apanhou uma das cabeças, tirou-lhe a pele, cravou a unha entre um dente e outro e os retirou na quantidade pedida. Voltou a seu lugar pelo mesmo caminho. “Cozinhazinha apertada, né?”. E ela: “É, sim”.
“Você pega a tábua de picar cebola?”, a moça perguntou. Ele: “Pego, onde está?”. Soube, então, que teria que voltar ao armário e ali procurar, desta vez, na prateleira de baixo. Viu-se obrigado a refazer o mesmo percurso, ida e volta, com igual aperto.
Peixe enorme, fatiado em oito postas grossas, todas dispostas numa bandeja com alguns limões que, daí a pouco, seriam espremidos.
Criado no interior, sua especialidade era carne bovina. Conhecia todos os cortes: o acém, a maminha, a picanha, ao simples olhar. Envaidecia-se, aliás, de ser um daqueles tipos que já se aproximam de um frigorífico com passos firmes na direção da peça pretendida.
O fato é que ninguém o iludia. Conhecia mesmo o que comprava e quanto precisava para o churrasco preparado, religiosamente, todos os domingos, como a missa do Padre Gomes, presença costumeira no sítio da família. Era a igreja fechar as portas e o padre picar a mula no rumo do churrasco a que também não faltavam outras 15 pessoas. Uns levavam a bebida, outros o arroz, a farofa, ou a salada. O padre levava a boca.
As circunstâncias e o ambiente, porém, eram outros. Ele, agora, tinha o mar a poucos passos e os pais em casa alheia, à mesa posta pelos anfitriões sob um cajueiro onde a conversa, a música e a bebida eram fartas. Os seus e os pais daquela menina haviam-se conhecido dias atrás e já pareciam amigos de longa data.
O convite à peixada fora aceito mediante o compromisso da retribuição com um churrasco feito no sítio a capricho, em breves dias. “O churrasqueiro está aqui”, disse a mãe, apontando para ele. “Pois saibam que vocês vão comer um peixe preparado pela minha filha”, avisou a dona da casa, não menos orgulhosa. Pronto, foi isso, carne e peixe, o que levou aqueles dois à cozinha estreita.
Ali, tinha ele, agora, diante de si algo de que pouco gostava e nada entendia. Não fosse por aquela em quem roçava a todo instante, sequer suportaria aquele cheiro. “Que peixe é esse?”. E a amiga: “Namorado”.
Ela, bem segura na aplicação dos temperos, contou que gostava de pescar. Não chegou a dizer que havia pegado aquilo. Informou que fora o pai, em mar aberto, no barco onde também estava, com um anzol grosso. Fosse fino não aguentaria o tranco.
Ele estranhou que houvessem dado o nome “namorado” a um peixe. E ouviu a explicação. Isso resultava da lenda segundo a qual o preparo de coisa tão saborosa por uma mulher em idade de casamento, seguido de convite para o almoço que, porventura, a alguém ela fizesse, não daria outra: este alguém estaria fisgado.
“Você pega o sal?”. Ele pegou. E pegou, ainda, a pimenta, o pimentão, os tomates e o óleo.
O que chegou à mesa, hora e meia depois, foi uma coisa ressecada, intragável, com gosto de carvão. O namorado passara muito do ponto, para a decepção e a vergonha dos donos da casa.
Quem é pescador sabe das dores que provoca um estrago desses. O pai tinha, ali, em estado deplorável, um dos mais belos peixes de sua vida. Sem cerimônias, diante de todos, brigou feio com a filha. E brigou, tempo depois, com os convidados de então, quando a barriga da menina começou a crescer.
O churrasco, pazes feitas, aconteceu com atraso de mais de um ano. Padre Gomes, coitado, empanturrou-se ao ponto da indigestão. Mas os Céus, neste caso, devem ter feito vista grossa para o pecado da gula, posto que foi um daqueles domingos em que o bom homem mais trabalhou na vida. Fez, ao mesmo tempo, missa, casamento e batizado.