No país, atos sexuais de um marido com sua esposa não são juridicamente considerados estupro mesmo que sejam à força e contra a vontade da mulher.
Por Geeta Pandey, BBC
Na Índia, uma sociedade enraizada nas tradições patriarcais, os casamentos são sagrados — e não é um crime para um homem estuprar a esposa.
Mas, nas últimas semanas, os tribunais indianos deram sentenças conflitantes sobre o estupro conjugal, levando a novos apelos de ativistas para criminalizar o estupro dentro do casamento.
No dia 26 de agosto, o juiz NK Chandravanshi do tribunal superior de Chattisgarh decidiu que “a relação sexual ou qualquer ato sexual de um marido com sua esposa não pode ser estupro, mesmo que seja à força ou contra sua vontade”.
A esposa havia acusado o marido de “sexo não natural” e de estuprá-la com objetos.
O juiz afirmou que o marido poderia ser julgado por sexo não natural, mas o inocentou do crime muito mais sério de estupro, já que a lei indiana não reconhece o estupro conjugal.
A decisão foi recebida com indignação nas redes sociais, inclusive pela pesquisadora de gênero Kota Neelima, que perguntou “quando os tribunais vão levar em consideração o lado feminino da história?”.
Muitos responderam ao tuíte dela dizendo que as arcaicas leis de estupro precisam ser alteradas — mas havia muitas vozes contrárias também.
Alguém perguntou “que tipo de esposa reclamaria de estupro conjugal?”; enquanto outro sugeriu: “Deve haver algo errado com seu caráter”; um terceiro acrescentou que “somente uma esposa que não entende seus deveres faria tal reclamação”.
Mas não foi só nas redes sociais, o tema do estupro conjugal também parece ter dividido o judiciário.
Poucas semanas antes, o tribunal superior do estado de Kerala, no sul do país, decidiu que o estupro conjugal era “um bom motivo” para o divórcio.
“A disposição licenciosa do marido, desconsiderando a autonomia da esposa, é estupro conjugal, embora tal conduta não possa ser penalizada, ela se enquadra na crueldade física e mental”, afirmaram os juízes A Muhamed Mustaque e Kauser Edappagath em sua sentença de 6 de agosto.
Eles explicaram que o estupro conjugal ocorreu quando o marido acreditou ser dono do corpo da esposa e acrescentaram que “tal noção não tem lugar na jurisprudência social moderna”.
A lei que o juiz Chandravanshi invocou é a seção 375 do Código Penal Indiano.
A lei da era colonial britânica, que existe na Índia desde 1860, menciona várias “isenções” — situações em que sexo não é estupro — e uma delas é “por um homem com sua própria esposa” que não seja menor de idade.
A ideia está enraizada na crença de que o consentimento para o sexo está “implícito” no casamento — e que a esposa não pode se recusar.
Mas a prática tem sido cada vez mais contestada em todo o mundo — e, ao longo dos anos, mais de 100 países tornaram o estupro conjugal ilegal. A Grã-Bretanha também proibiu em 1991, dizendo que o “consentimento implícito” não poderia ser “seriamente mantido” hoje em dia.
Mas, apesar de uma campanha longa e contínua para criminalizar o estupro conjugal, a Índia permanece entre os 36 países onde a lei continua valendo, deixando milhões de mulheres presas em casamentos violentos.
De acordo com um levantamento governamental, 31% das mulheres casadas — quase uma em cada três — enfrentam violência física, sexual e emocional dos maridos.
“Na minha opinião, esta lei deve ser derrubada”, avalia Upendra Baxi, professor emérito de direito da Universidade de Warwick, no Reino Unido, e Déli, na Índia.
Ao longo dos anos, diz ele, a Índia registrou algum avanço no combate à violência contra as mulheres, apresentando leis contra a violência doméstica e assédio sexual, mas não fez nada contra o estupro conjugal.
Na década de 1980, Baxi fazia parte de um grupo de advogados ilustres que haviam feito várias recomendações a uma comissão de parlamentares para alterar as leis de estupro.
“Eles aceitaram todas as nossas sugestões, exceto a que proibia o estupro conjugal”, diz ele à BBC.
Suas tentativas subsequentes de fazer com que as autoridades criminalizassem o estupro conjugal também não foram bem sucedidas.
“Disseram que não era a hora”, conta Baxi.
“Mas precisa haver igualdade no casamento, e um lado não pode ter permissão para dominar o outro. Você não pode exigir serviço sexual do seu cônjuge.”
O governo tem argumentado sistematicamente que a criminalização do direito matrimonial poderia “desestabilizar” a instituição do casamento e ser usada por mulheres para intimidar os homens.
Mas, nos últimos anos, muitas esposas infelizes e advogados entraram com petições nos tribunais pedindo a derrubada da “lei ofensiva”.
A Organização das Nações Unidas (ONU), a ONG Human Rights Watch e a Anistia Internacional também levantaram preocupações sobre a recusa da Índia em mudar a legislação.
Vários juízes também admitiram que são prejudicados por uma lei arcaica que não tem lugar na sociedade moderna e pediram que o parlamento criminalizasse o estupro conjugal.
A lei é “uma clara violação” dos direitos das mulheres, e a imunidade que ela oferece aos homens é “antinatural” — e é a principal razão por trás do crescente número de processos judiciais, diz Neelima.
“A Índia tem essa fachada de ser muito moderna, mas sob a superfície, você vê sua verdadeira face. A mulher continua sendo propriedade do marido. O estupro é criminalizado na Índia não porque uma mulher foi violada, mas porque ela é propriedade de outro homem.”
Neelima afirma que “metade dos indianos, do sexo masculino, se tornou livre quando a Índia virou um país independente em 1947, a outra metade — do sexo feminino — ainda não está livre. Nossa esperança está no judiciário”.
É encorajador que alguns tribunais tenham “admitido a não naturalidade dessa imunidade”, diz ela. Mas estas são “pequenas vitórias, superadas por outros veredictos judiciais contrários”.
“Isso precisa de intervenção e tem que mudar na nossa geração. As barreiras são muito altas quando se trata de estupro conjugal”, avalia.
“Isso deveria ter sido resolvido há muito tempo. Não estamos lutando pelas gerações futuras, ainda estamos lutando contra os erros da história. E essa luta é essencial.”