A socióloga Angela Alonso não tem boas notícias para quem espera ver a tensão social se dissipar com o fim das eleições
UIRÁ MACHADO / FolhaPress
SÃO PAULO, SP
A socióloga Angela Alonso não tem boas notícias para quem espera ver a tensão social se dissipar com o fim das eleições. De acordo com ela, a lógica do confronto já se alastrou pela sociedade e vai demorar muito tempo para mudar.
“Ganhe quem ganhar, esta é uma realidade difícil de ser modificada, porque não diz respeito apenas à política. Está inscrita nos sentimentos e nos princípios morais que orientam as condutas de comunidades inteiras”, afirmou durante o 46º encontro da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais).
Alonso, que é professora da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), participou da tradicional sessão de conjuntura, em que a Anpocs reúne representantes da sociologia, da antropologia e da ciência política para analisar o momento que o país atravessa.
O diagnóstico de Alonso não é otimista. Na sua avaliação, há sinais de que boa parte dos brasileiros passou a se reconhecer antes por sua identidade política do que por qualquer outra identidade que possa ter.
Quando menciona “identidade”, ela está pensando tanto em papéis que a pessoa tem na sociedade -por exemplo, o papel de mãe, de professora, de colunista, de socióloga– quanto em características sociais -como gênero, etnia, geração, renda etc.
A “identidade política”, por sua vez, remete no atual contexto a lulista ou bolsonarista, para eleitores de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL), respectivamente.
Em condições normais, argumentou Alonso, as pessoas transitam entre suas diferentes identidades de acordo com a situação: é possível ser mãe em casa e socióloga na Anpocs, além de mulher de uma certa idade e uma determinada faixa de renda.
O problema é que, no Brasil atual, membros de partidos distintos -no caso, apoiadores de Lula e de Bolsonaro– só conseguem enxergar o outro pela lente política. “A identidade partidária [vai] abafando todas as demais”, sustentou.
“Isto é, a escalada do conflito fixa uma identidade política como mais relevante que as outras, e ela passa a se impor no funcionamento de todas as interações sociais.”
Essa hipótese ajudaria a entender, para ficar apenas em dois exemplos, por que os papéis de médico e paciente e de patrão e empregado têm sido deixados em segundo plano em alguns casos, com a identidade de lulista e bolsonarista monopolizando a relação social.
Tanto mais grave, essas identidades políticas, segundo Alonso, são confrontacionais, provocam o confronto, o conflito.
Em sua fala, ela citou cinco casos de assassinatos políticos cometidos por lulistas e bolsonaristas; ocorreram em cinco estados, envolvendo campo e cidade, profissões de médios e baixos estratos sociais. Seria indício de que o confronto se espalhou pela sociedade, para além dos atores políticos.
Para piorar, a socióloga também lembrou de exemplos em que adolescentes e crianças em suas respectivas escolas se xingaram e brigaram por causa de uma bandeira do Lula e de um jingle do petista.
“Isto é, está em andamento uma reprodução intergeracional de identidades políticas confrontacionais. Está chegando nos adolescentes e nas crianças”, afirmou.
Há mais. As redes sociais, na visão de Alonso, se organizam como as comunidades presenciais, ou seja, por meio de laços afetivos.
“Muitas delas são redes de reconexão de relações face a face que já existiam, entre familiares distantes, ex-colegas de escola, ou de trabalho, ex-vizinhos, amigos antigos, conhecidos”, disse.
De acordo com a socióloga, isso faz com que as pessoas se sintam emocionalmente parte de um grupo, compartilhando não só um estilo de vida, mas também a mesma perspectiva sobre o mundo.
E por que isso importa? “Essas comunidades são o chão social no qual se criam e se sustentam as identidades políticas confrontacionais”, afirmou.
Dentro dessas comunidades, segundo Alonso, também se compartilham pontos de vista sobre a moralidade pública (dominada pela temática da corrupção) e privada (focada na pauta dos costumes, com as agendas progressista e conservadora em franca oposição).
Assim, por essa análise, as pessoas se dividem em verdadeiras comunidades que são distintas entre si, com valores morais diferentes e laços afetivos específicos.
Não surpreende, portanto, que as pessoas acreditem em coisas tão desiguais e que sejam afetadas de maneiras tão díspares por mensagens que circulam na internet. O que faz pleno sentido para uma dessas comunidades pode não significar nada para a outra.
“São estas comunidades morais bem enraizadas que dão a base para as identidades políticas confrontacionais de lulistas e bolsonaristas que estão se guerreando inclusive até a morte”, afirmou Alonso.
Durante a sessão de conjuntura da Anpocs, o cientista político Bruno Reis, que é professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), também tratou a atual polarização como um novo elemento da paisagem política brasileira, com PT encabeçando um lado e o conservadorismo comandando o outro.
Para ele, a existência de um polo politicamente mais autoritário e mais conservador nos costumes é mais ou menos inevitável no Brasil.
A antropóloga Lia Zanotta Machado, professora da UnB (Universidade de Brasília), completou a mesa. Ela afirmou que o país não assiste a uma onda conservadora, mas sim a um movimento organizado de longa data.
“O crescimento dessa pauta moral neopentecostal vem de longo tempo e vem se organizando, do meu ponto de vista, como neoconservadora, em cima de uma sociedade em grande parte conservadora.”