
Miguel Lucena
Se viva fosse, minha mãe, Emília, estaria completando hoje cem anos.
Cem anos de vida que ecoam dentro de mim como as melodias que ela cantava — aquela voz afinada que, antes de eu nascer, já encantava os ouvintes da difusora da igreja. Depois que eu cheguei ao mundo, sua plateia virou mais íntima: eu e o velho Miguel, que era presenteado com sambas-canções e foxtrotes antigos, melodias que até hoje ainda sabem o caminho para me tocar lá no fundo.
A vida, para ela, nunca foi fácil. Era dura como o chão batido que ela varria todas as manhãs. Era longa como o caminho até a roça, quando levava comida para os trabalhadores do meu pai. Mas, mesmo entre os fardos do dia, ela nunca deixou de cantar. Cada vassourada no terreiro vinha embalada por um refrão, cada passo na poeira tinha seu próprio ritmo.
Por isso, hoje, quando me pego assobiando sozinho — no silêncio da casa, na lembrança de um quintal cheio de sol —, sei que não estou só. A música dela ainda caminha comigo, leve e eterna, como uma prece sem palavras.
Feliz centenário, minha mãe.