– “Governo sério! Governo que não furta e não deixa furtar!” (*) Jânio Quadros
Em 1982, Jânio Quadros candidatou-se pela primeira vez a um cargo público depois de ter seus direitos políticos cassados por dez anos pelo Regime Militar.
Naquele ano, também pela primeira vez desde o golpe de 1964, os eleitores elegeriam os Governadores de Estado pela via direta. Em São Paulo, Franco Montoro (então no PMDB, oposição ao regime autoritário) era o candidato favorito.
Enfrentava o candidato do partido de apoio ao governo militar, indicado pelo então Governador Paulo Maluf, Reynaldo de Barros. Luiz Inácio Lula da Silva marcava a entrada do PT nas grandes disputas eleitorais e Jânio competia pelo PTB, sigla renascida após anos de proscrição. O pequeno Partido Socialista participava com Rogê Ferreira.
Em um debate com todos os candidatos, realizado pela “Folha de S. Paulo”, em sua vez de inquirir Jânio, Montoro começou a ler trecho de um livro que fazia críticas a Jânio, acusando sua renúncia de ter sido uma tentativa de golpe. Em vez de responder à pergunta, Jânio começou a gritar: – Mostre o livro –, o que deixou aturdido o Senador Montoro.
Quando mostrou o livro e ficou claro que seu autor era Carlos Lacerda, Jânio deu um leve sorriso e afirmou: – Ele foi meu inimigo, o causador de minha renúncia.
Mil depoimentos dão conta até hoje de que Carlos Lacerda foi convidado por Jânio Quadros para hospedar-se no palácio da Alvorada e, depois de instalar-se, teve sua mala deixada na guarita e um recado para que fosse hospedar-se num hotel. Dutra contesta, relatando que ao saber que Lacerda estava no portão, o presidente teve um acesso de raiva, gritando “Não! Não e não!”
Célebre debate entre Jânio e Montoro no debate da TV Bandeirantes, sob a âncora do jornalista Joelmir Beting. E é este, literalmente:
Montoro – Eu gostaria que o presidente refutasse esta afirmação de Clemente Mariani ou negasse a afirmação de Clemente Mariani?
Jânio – Eu não posso refutá-la nem negá-la. Onde se encontra escrita essa informação?
– Está aqui o livro
– Muito bem
– Está aqui o livro. Página 304. Depoimento…
– O livro, de quem é?
– Depoimento de Carlos Lacerda…
– Ah, sei. Está dispensado da citação.
– Não, mas é…
– Está dispensado da citação…
– O fato ele cita…
– … porque o senhor acaba de querer citar as escrituras valendo-se de Asmodeus ou de Satanás. Não quero ouvi-la.
Mas ficou por aí…Nenhum político brasileiro seria capaz de um repente desses.
Lacerda, em verdade, deu a sigla da UDN para Jânio e rompeu com ele poucos dias antes da renúncia, acusando-o de tramar um golpe. Foram amigos e inimigos em momentos sucessivos.
O livro era “Depoimento” (Nova Fronteira, 1977), hoje na terceira edição, revista e ampliada. Tratava-se de uma entrevista feita pelo “Jornal da Tarde”, de S. Paulo, cerca de um mês antes da morte prematura do líder político e por isso transformada em livro.
Jânio aparece em vários trechos do livro, para falar da renúncia e de outros assuntos também.
Jornalista que se converteu em um dos políticos mais importantes da segunda metade do século 20, Lacerda começou a vida como militante comunista. Democrata por convicção, afastou-se definitivamente dos comunistas brasileiros quando eles fizeram o seu acordo com Getúlio Vargas, depois de 15 anos de ditadura.
Tornou-se o paladino da luta contra o ex-ditador e, em 1954, foi o responsável pela crise na qual, para não cair, Vargas preferiu o suicídio. Tornou-se o principal líder da UDN, mas odiado pelos varguistas, em 1961 decidiu não se candidatar à Presidência, preferindo apontar Jânio. Quando acreditou que tinha chegado sua vez, logo depois do golpe de 1964, quando achava que a democracia seria restabelecida, viu seu sonho político ir-se embora com a eleição do general Costa e Silva para um segundo mandato militar. Passou então a articular uma resistência civil com todos os líderes anteriores ao Golpe, seus antigos inimigos: Juscelino Kubistchek, João Goulart (cassados e exilados) e Jânio (só cassado). O gesto foi visto como uma provocação pelos militares, que cassaram também os seus direitos políticos por dez anos.
Depois desse período, em 1977, quando se esperava que voltasse a ter alguma expressão política, morreu de um ataque cardíaco fulminante. Na mesma época, quando os militares anunciavam sua abertura lenta, segura e gradual, morreram também Juscelino (acidente de carro) e Jango (enfarte), deixando até hoje suspeitas de uma trama maligna para que os líderes civis anteriores ao golpe não se beneficiassem da abertura.
Selecionei alguns desses trechos que mostram a intimidade do homem que, em sete meses, pulou do posto de político mais popular da história do País até aquele momento para o ostracismo, do qual só saiu quando se elegeu prefeito de São Paulo em 1985 (contra o candidato Fernando Henrique Cardoso).
Pág. 63
Sobre a falta de politização do povo brasileiro:
Acho que hoje somos dos países do mundo em que a ignorância domina mais – e uma das coisas mais terríveis, um dos fracassos mais terríveis da Revolução de 64, foi a despolitização, a desinformação do povo brasileiro justamente quando ele começava a se informar, a se politizar:
Primeiro, a loucura do Jânio Quadros, desapontando e decepcionando milhões de brasileiros que acreditaram que era possível… Pela primeira vez esse homem tinha o apoio popular quase unânime, pela primeira vez o Congresso estava de joelhos diante dele pedindo, pelo amor de Deus, que mandasse projetos para serem votados, pela primeira vez o Exército, a Marinha e Aeronáutica estavam de acordo com tudo isso. Esse homem jogou fora tudo e mais tarde a Revolução, em vez de fazer um processo de informação e de politização do povo brasileiro, despolitizou-o completamente, de tal modo que hoje ou o sujeito é um guerrilheiro ou um alienado. Essa é a meu ver a tragédia.
Pág. 239
Sobre a época de articulação do apoio da UDN a Jânio: Então surgiram as dificuldades. Por exemplo, fomos à Bahia eu e o Herbert Levy, e o Herbert, em casa do Juraci (Magalhães, político popular, também candidato à legenda – N.R.), começou a contar coisas do Jânio profundamente indiscretas, coisas cabeludas e desagradabilíssimas, coisas que até hoje me pergunto como é que podiam ser justas. Ao mesmo tempo em que elogiavam o Jânio em público, contavam em particular coisas como aquelas. Esse pessoal de São Paulo tem uma responsabilidade enorme nessa história do Jânio Quadros. Não sei como é que, até hoje, eles não têm vergonha (…) de terem contribuído para que nós todos mentíssemos ao país da maneira como mentimos. Eles nos descreviam publicamente um Jânio Quadros completamente diferente do Jânio verdadeiro. Particularmente contavam intimidades e até casos da vida pública mesmo, negócios, sujeito que ganhou dinheiro de fulano, comendas, empreitadas, e não sei mais o quê. (…), mas o Jânio acabou lançado pela UDN, apesar de tudo.
Pág. 240
Sobre a renúncia à candidatura, antes da renúncia à Presidência: Quando em casa do Roberto Sodré (político udenista, no regime militar chegou a Governador de São Paulo – N.R.) impõe-se a ida do Leandro Maciel ao Acre (acompanhar Jânio em campanha – N.R.), o Jânio já tinha convidado o Fernando Ferrari, que corria por fora como candidato “das mãos limpas” – para ir com ele. E aí o pessoal da UDN fechou questão: não, tem que ir é com o Leandro Maciel; e o Magalhães Pinto (foi Governador de Minas e líder civil do golpe de 1964 – N.R.) lá, o José Aparecido (político mineiro, foi secretário particular de Jânio na Presidência – N.R.) e toda aquela gente na casa do Sodré.
O Jânio foi para um canto, bate um negócio na máquina, veio assim com ar de quem está se despedindo, entregou o papel para o Aparecido e disse: “Dê aí a esses senhores”. E saiu, Era apenas sua renúncia à candidatura à Presidência da República. Aí, pânico! Pânico geral. Puxou o tapete debaixo de todo mundo.
Pág. 241
Lacerda vem a São Paulo para demover Jânio: Eu digo: “Então Jânio, que papel foi esse? Você briga aí com esses sujeitos e renuncia à ´Presidência` e desaponta o país inteiro?” Eu estava falando em Presidência porque já o considerava eleito, nunca tive a menor dúvida de que ele seria eleito.
Jânio me disse: “É, mas eu tenho motivos, Carlos. Primeiro não aguento esses políticos, e as exigências que de antemão me fazem antever um governo terrível. Não posso me submeter a essa gente”. “Eu digo: “Mas a quem você diz isso? Eu tenho por tudo isso o mesmo nojo que você, mas ou você suja a mão ou não entra para a vida pública. Você vai ter a eleição garantida, vai ter todo o apoio popular.
Pág. 244
A “renúncia” ao comício que Jânio tinha combinado de organizar, mas que não tinha divulgado:
Eu assustado, reclamei: “Escuta, estou passando por São Paulo e não vi um cartaz, não vi uma faixa, não vi nada de propaganda, não vi absolutamente nada desse comício. E ainda por cima está chuviscando. O comício vai ser um fracasso”. Aí responde o Horta: “Pois é, exatamente por isso é que o Jânio está hesitando muito em ir, porque ele não pode arriscar sua popularidade num comício fracassado”. Fiquei irritado: “Bom, se o comício fracassar, a culpa é de vocês, que ficaram de organizar tudo e de fazer propaganda, mas não vi propaganda nenhuma”. E o Afrânio completou: “E, Carlos, o Jânio mandou dizer que não vai ao comício”. Aí me deu aquela indignação: “Eu vou a esse comício, porque não vou permitir que vocês façam isso (…) e faço desse comício o maior ataque que ele já teve em toda sua vida. E amanhã ele não será mais candidato de pipoca nenhuma. (…)”
Começou um chuvisquinho, umas 500 pessoas de guarda-chuva aberto. Dali a pouco, foi chegando gente, foi chegando mais gente. Não sei mais quem abriu o comício, os oradores foram se sucedendo e eu vendo chegar a minha hora de falar. Pensei: é agora que vai “roncar o pau”. E fiquei preparando, pensando o que é que eu poderia dizer de pior do Jânio Quadros.
De repente, enrolada num cachecol, chega a figura de Jânio da Silva Quadros, na hora H. Vem para o Mangabeira e diz: ‘Meu querido Dr. Mangabeira”. Já estava lá uma pequena multidão aplaudindo e gritando Jânio! Jânio! e eu me sentindo parte de uma comédia. Ele abraça o Otávio Mangabeira e aí vem para mim e diz: “Meu amigo querido”. O maior abraço. E aí parte para o discurso que começou exatamente com essas palavras: “Povo de São Paulo, doente embora, não fujo aos meus compromissos com o povo. Aqui estou, aqueles que prometeram e não vieram que respondam pela sua consciência”. Isso era para o Carvalho Pinto.
Pág. 247
Lacerda explica sua opção por Jânio apesar do estranho comportamento do candidato: Todos agora têm o direito de perguntar: por que eu, sabendo de tudo isso que contei, apontei o Jânio? Porque o Jânio ganharia de qualquer maneira – ou ganhava conosco ou ganhava com o PTB – e, se ganhasse com o PTB, representaria de novo a permanência de toda aquela má gente. Ele seria ditador do Brasil, ao passo que conosco, ainda que não cumprisse os compromissos, nos daria condições de fazer um governo mais ou menos udenista, de cercá-lo de Ministros da UDN.
Pág. 297
Depois de sete meses de governo, Lacerda está decepcionado com o Jânio que ele indicou à UDN. Pede uma visita ao Presidente para dizer isso e vai a Brasília. Jânio o convida para ficar no Palácio, mas em seguida pede-lhe que vá até o Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta. Lacerda descreve o diálogo com o Ministro, com forte tom golpista: Horta disse: “O Jânio me incumbiu de ter uma conversa com você”. Eu disse: “Achei muito estranho porque vim para ter uma conversa com ele”. “Pois é, mas ele me encarregou de ter essa conversa. Você escreveu, nas alturas do governo Café Filho, uma série de artigos sobre o regime de exceção?”
“Escrevi. Eu era contra a eleição naquele momento e achava que se deviam adiar as eleições, fazer uma nova lei eleitora, talvez reformar a Constituição, enfim, mudar o país (…)” Então o Horta pediu: “Você poderia me mandar um jogo desses artigos para eu ler? Gostaríamos de ter uma série desses artigos porque o Jânio tem se preocupado e tem se lembrado muito desses artigos’. Respondi: “Mas por quê? Qual a analogia que há? Não percebo bem por que ele quer reler esses artigos agora. Esses artigos representaram uma posição minha em face de uma conjuntura completamente oposta. O Jânio foi eleito por maioria esmagadora, foi o primeiro candidato de oposição eleito no Brasil Presidente da República. Tem o apoio maciço das Forças Armadas. O Congresso não quer outra coisa senão apoiá-lo, com uma resistência aqui ou ali, mas não importa. (…)”
Então ele disse: “É, mas há umas modificações a fazer, que ainda estão no ar, e o Jânio conta com a aquiescência do Ministro da Guerra (que era o Denys) e do Ministro da Marinha (que era o Sílvio Heck). (…) Daí que está faltando uma conversa com o Brigadeiro Grün Moss (que era o Ministro da Aeronáutica) e creio que você ainda conserva suas ligações com a Aeronáutica e queria ver se você teria uma conversa com o Brigadeiro Moss, que está no Rio, para obter dele a concordância porque dos Ministros militares é o único que está faltando concordar com certas providências que o Jânio quer tomar” .
“Bom, a primeira coisa é saber quais são essas providencias”. Ele disse: “É uma reforma muito séria e profunda no país”. “Olha, Horta, acho que o país precisa de uma reforma muito séria e profunda, realmente, e foi a razão por que eu votei no Jânio. Agora, acho que as condições em que ele ganhou a eleição e as condições em que está o país permitem que essa reforma seja feita pelo processo normal, democrático.
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Jânio não honra o convite para que Lacerda durma no Palácio e o carioca explica as possíveis razões: Então o João, na hora que eu ia subir para o apartamento, foi numa poltrona e pegou minha valise preta e disse: “O Dr. Jânio mandou reservar um apartamento para o senhor no Hotel Nacional’. E isso também tem sido interpretado como um gesto de despeito meu, de amor-próprio ferido! Não foi nada disso. Achei apenas estranho, grosseiro! Então o sujeito o convida, põe a sua mala dentro do apartamento do palácio e depois manda reservar um quarto no hotel. Mas assim como correram lendas a meu respeito por causa dessa famosa entrega da valise, também correram lendas a respeito dele, que prefiro não repetir, porque nunca as tirei a limpo.
Em suma, das lendas que sugiram a respeito de tudo isso, o que posso dizer, sem ser indiscreto nem calunioso, é que ele tinha motivo para não me querer no palácio porque teria outra companhia, digamos, uma companhia mais agradável do que a minha. Mas eu não sei disso. Então fui para o hotel.
Pág. 300
Lacerda descreve as razões que Jânio alegava para o possível Golpe: Quase duas horas da manhã. O Horta disse: “Carlos, parece que você não entendeu bem. O Jânio acha que é impossível governar com o Congresso e pretende fazer uma reforma na Constituição que reforce o Poder Executivo de maneira que ele possa fazer umas reformas profundas no país.
Pág. 308
Nos dias seguintes à visita ao Palácio, em Brasília, Lacerda vai à TV várias vezes denunciar os sinais de golpismo de Jânio, que começam a ficar visíveis para outros políticos. Até que no dia 25 de agosto, quando estava reunido com seu secretariado para discutir essa possibilidade, toca o telefone: É o Governador Carlos Lacerda?” Eu disse: “É”. “Aqui é o Ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta”. Disse: “Oh, Horta, como vai?
Como vão as coisas aí?” Ele disse: “O meu telefonema é curto. Estou apenas lhe comunicando, em nome do Presidente da República Jânio Quadros, que acabo de entregar ao Congresso a carta de renúncia do Presidente. E como essa decisão pode provocar graves perturbações da ordem, na qualidade ainda de Ministro da Justiça quero comunicar ao Governador de Estado a fim de que tome as providências necessárias para manter a ordem no seu Estado’. E desligou o telefone.
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Sobre a tendência de Jânio para seguir exemplos de políticos autoritários: A renúncia foi uma surpresa para mim porque, entre outras coisas, eu não acreditava nela, porque o Jânio uma vez também me tinha dito que o homem que ele mais admirou na vida, o homem público que mais impressão lhe tinha causado, fora o Nasser. Depois falou na estranha influência que o Perón exercia no povo argentino. E depois, era notória a admiração e as relações dele com o Fidel Castro. Reparem que todos três renunciaram e voltaram como ditadores.
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Mais um sinal de que a renúncia era tentativa de golpe: De repente, o Jânio nas vésperas de tudo isso, quando tudo isso já estava armado (não sei dizer se já tinha havido a tal conversa de Brasília comigo, mas se não houve foi logo depois, foi nessa fase, exatamente, mas o dia preciso não posso me lembrar), de repente ele incumbe o Jango de uma missão à China, quer dizer, aos antípodas, ao outro extremo da Terra. Missão que foi interpretada por muitos jornais da época como um gesto de reconciliação com o Jango. A minha interpretação, que hoje é mais ou menos a de toda gente, é a de que ele estava convencido de que os Ministros militares não dariam posse ao Jango. Então, tocou o Jango para o mais longe possível a fim de dificultar qualquer solução nesse sentido e dar tempo de os Ministros militares dizerem: “O senhor não pode renunciar, tem que ficar aí. Quais são os poderes que o senhor quer? Estão aí os poderes que o senhor quer.
Conversei durante horas e horas a respeito do livro “Depoimento”, de autoria de Carlos Lacerda, o que levou Jânio Quadros, ironizar:
– “Nelson, a verdade sobre a renúncia você já sabe. Se quiser ingressar na ficção, converse com o Vladimir Toledo Piza, que tem mais de dezoito versões. E acrescente a do senhor Lacerda. Escolha uma delas. Se eu tivesse repartido o governo, teria ficado não cinco, mas dez anos na Presidência da República. Sobre mim inventaram de tudo, até que atravessei o Mar Egeu nadando.”
Acrescentando:
– “Se houve golpe, eu não o comuniquei a nenhum militar. A Presidência da República não me deu nada. Pelo contrário: andou me tirando. Lá furtaram-me um terno, uma camisa e um par de sapatos. Deixei o Governo porque não podia ser Presidente. Como podia governar com o embaixador americano ameaçando-me em meu gabinete, pedindo uma brigada para invadir Cuba. Por alguns segundos pensei em fechar o Congresso. E ter-me-iam bastado um cabo e dois soldados. Eu só tomei conhecimento disso (que a Câmara ia transformar-se em Tribunal Regional de Inquérito) quando cheguei ao Palácio, cerca das sete horas da manhã. Então tinha duas hipóteses: 1º) fechava o Congresso, o que seria fácil, mas teria consequências imprevisíveis. 2º) renunciava ao poder, já que tinha tido a minha autoridade alcançada. Cair à frente do Congresso Nacional de joelhos eu nunca faria, porque significava abrir o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal à voracidade da politicalha que (ele, Jânio da Silva Quadros) vencerá nas eleições.”
– “Nelson, minhas memórias não virão tão cedo, pelo menos enquanto alguns cavalheiros estiverem vivos.” Finalizou.
Precisamos levar o governo Jânio Quadros a sério, apesar de tudo. O que está nos livros de história é que ele proibiu brigas de galo, lança perfume, corridas de cavalo durante a semana. Mas o que ninguém lembra é que Jânio Quadros implementou uma dura lei contra o contrabando, o 1º Decreto Ecológico no mundo (pioneiro), além de ter criado uma nova política externa para o Brasil, que dura até hoje. Restabeleceu relações diplomáticas e comerciais com a URSS e a China. Algo impensável dentro do plano geopolítico e geoestratégico de inserção brasileiro. Nomeou o primeiro embaixador negro da história do Brasil. A ideia de criação do Parque Nacional do Xingu tomou forma numa mesa-redonda convocada pela vice-Presidência da República em 1952, da qual resultou um anteprojeto de um Parque muito maior do que o que veio finalmente a se concretizar. A despeito dos poderes legislativo e executivo do Mato Grosso estarem representados nessa mesa-redonda, inclusive por seu Governador, o Estado começou a conceder, dentro desse perímetro, terras a companhias colonizadoras. Por isso, quando foi finalmente criado o Parque Nacional do Xingu, pelo Decreto nº 50.455, de 14/04/1961, assinado pelo Presidente Jânio Quadros, sua área correspondia a apenas um quarto da superfície inicialmente proposta. O Parque foi regulamentado pelo Decreto nº 51.084, de 31/07/1961; ajustes foram feitos pelos Decretos nº 63.082, de 6/08/1968, e nº 68.909, de 13/07/1971, tendo sido finalmente feita a demarcação de seu perímetro atual em 1978.
Instalou uma comissão política de gastos públicos, enxugando onde fosse possível a máquina governamental. Abriu centenas e centenas de inquéritos e sindicâncias em um combate aberto à corrupção e ao desregramento na administração pública. Jânio Quadros – simbolizado pela vassoura – levou adiante duras investigações de corrupção no Congresso Nacional. Os parlamentares, que apareciam em quase todos os processos de desvios de verba, principalmente no que se refere à polêmica máfia das construtoras durante as obras de criação de Brasília, foram desmoralizados publicamente, o Legislativo entrou em crise.
JÂNIO QUADROS:- “Há instantes em que é preciso tomar uma decisão. As pontas do meu dilema eram: fecho o Congresso ou me deixo cair de joelhos. No momento em que caio de joelhos desapareceu a autoridade que o povo me emprestou! Lá sigo eu para a velha política das capitanias e dos feudos: devo entregar o Ministério da Fazenda a um grupo, o Ministério da Agricultura para outro, o IBC para um terceiro, o Ministério da Viação para um quarto, o Ministério do Trabalho para um quinto… Assim eu me acomodo e governo cinco anos. (em tom de comício) Saio daqui com a pior de todas as imagens, porque então sim terei frustrado todas as minhas ideias reformistas e todas as esperanças que o povo depositou num governo limpo, corajoso, independente e honrado! Governo sério! Governo que não furta e não deixa furtar!”
Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor.