(*) Nelson Valente
Estas breves e inéditas reminiscências de infância e juventude constituem um dos raros depoimentos do presidente Jânio Quadros sobre sua vida pessoal. Gravadas em 26/09/1989, por Nelson Valente à Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero.
1ª Parte
Volto as minhas reminiscências da mocidade. Vejo-me no bonde pequenino e inseguro que me levava ao internato, onde fiz parte do curso secundário.
Meu pai experimentou os três regimes comigo: era aluno comum ou semi-interno e interno. Os dois últimos me causavam pavor. Ficar o dia inteiro enjaulado em imóvel frio, impessoal, de altas paredes, entregue às normas de disciplina rígidas e impessoais também.
De qualquer forma, meio aturdido pela surpresa, ali estava eu, prisioneiro das notas baixas do passado, sobretudo na aritmética, e sofria com a disciplina. Fora colocado entre os alunos menores, submetido por acréscimo à vigilância dos médios e dos maiores. Os últimos que gozavam de algumas regalias sentiam-se predispostos a exercer essa vigilância com tirania. Dentre eles estava um primo que viera do Mato Grosso, meu estado Natal. Era dos piores. Não perdoava nada, muito menos o toco de cigarro retirado das dobras do uniforme para uma chupada na privada mais próxima.
O colégio era enfadonho e triste: a rotina invisível, cronometrada, tornava-se um suplício.
Alegrava-nos a existência de um padre que considerávamos santo, o Mielli, quase cego. Generoso, fraternal, não só perdoava os nossos pecadinhos como parecia encorajá-los.
Arrastei o ano de 1930 nesse cárcere, onde, para agravar o quadro, tornando-o intolerável, havia um professor chamado Leopoldino que, a menos que reformado nos costumes e práticas, o Florentino deve tê-lo posto em um dos círculos mais temíveis do seu livro imortal. O Leopoldino personificava tudo que havia de mau. Apreendia os cigarros, que fumava depois, revelado com gestos e caricaturas o quanto se deliciava com o ato. Rondava-nos de surpresa para toas os livros e revistas que nos chegavam às mãos, filhos do difícil contrabando. Espancava os recalcitrantes. Homenzarrão atlético, causava-nos horror vê-lo dando bofetadas a alunos, que se cobriam com os braços para escapar aos muros, perante a plateia impotente.
Chegou a minha vez. Surrou-me o quanto queria. Enfurecido. Purpúreo. Não deixei de contar tudo a meu pai, à primeira folga, das raras que tive ao fim de semana, quando era lícito passar o domingo com a família em Curitiba. Meu pobre pai, com ira paternal, foi ao internato tomar contas ao Leopoldino.
Eram ambos sanguíneos e irascíveis. Não sei o que ocorreu, mas nada menos que um pugilato. Fui convidado, a seguir, a deixar o ginásio.
Corria o fim do ano e o quadro político sombrio previa o desfecho da praxe republicana. Eclodiu, de fato, a revolução que a Aliança Liberal prometia. E com ela, a vinda da família pra São Paulo.
2ª Parte
A vela da minha vida bruxuleia. Há dias, este para apagar-se levada pelo coração enfraquecido.
Ciente disso estão os meus amigos, exatamente os que mais prezo. Geralmente conquistados na vida pública, eis que ela os distancia. Encontra-se os supérstites nos chapadões no Mato Grosso ou nas araucárias do Paraná.
É raro nos vermos. De quando em quando eu era surpreendido por uma carta ou simples cartão com que a mão generosa vencia os espaços. Se, com endereço, respondia feliz. Agradava-me revelo nas linhas que me dirigia, sumido o colega nas vastas regiões do sul-mato-grossense ou nas planícies que caracterizavam o Estado nascido também da coragem e ambição paulistas.
Relembro agora minhas primeiras letras no grupo escolar de Curitiba. Depois de ter estado com os Maristas no colégio da Rua Quinze e ter sido aluno interno do ginásio religioso daquela cidade, vi-me arrancado pela revolução de 30, que expulsou a pobre família na direção do altiplano paulista.
Aqui prossegui os estudos no Arquidiocesano, após estágio de um ano – castigo, porque terrivelmente levado – no magnífico Colégio Salesiano de Lorena.
Diplomei-me pelos Maristas. A ele devo a minha autodisciplina, meu gosto pelas línguas, sobretudo a portuguesa, e o meu amor aos livros. Esse amor marcou-me como paixão solta, infrene.
Altas horas da madrugada, meu pobre pai batia à porta do quarto em que devia estar dormindo para ordenar que apagasse a luz incerta, eu lia para escapar a denúncia da réstia sob a porta.
Fui para a faculdade, a seguir. Com grandes professores.
Não posso esquecer, porque seria injusto, a figura extraordinária de Mário Mazagão que me impressionou pelo seu rigor na vida pública e privada. Rigor de asceta de uma nobre vida que, diariamente, exigia contas de si próprio. O resto é história conhecida. A rápida, fulminante carreira, regida pela moralidade, na política de São Paulo e do país.
A vaidade que tenho é não se terem perdido as lições que colhi de mestres notáveis, que revejo agora, os olhos nos olhos.
Nesta quadra da vida, quase cego e com a memória falha, dou graças a Deus por ter me conduzido a uma esposa virtuosa. Era um encantamento de mulher e deu-me uma filha da qual me envaideço.
Esta atravessou dificuldades sérias, mas venceu-me. Hoje é deputada federal, as netas bem casadas. A família feliz.
Não é muito o que tenho a contar, nem isso é um arremedo de biografia.
Detesto esse gênero literário que só canta loas a seu autor, quase sempre imerecidas.
Os homens são bons e maus. Raramente santos. Poucas vezes sábios.
3ª Parte
Não escrevo por motivos óbvios, nada sobre política, nem pretendo discorrer sobre matéria cediça. Literatura, por exemplo, sociologia ou o pobre e maltratado vernáculo. Não prossigo nas minhas reminiscências, recortadas até com sacrifício pessoal, dada a minha saúde precária.
Falava no artigo anterior de meu internato no Ginásio Paranaense. Vou dar aquele domingo a continuidade possível.
Dentre os fatos maiores ocorridos em 1930, devo destacar, também, o casamento da minha prima Lourdes com Afonsinho Camargo. Este era filho do governador do Estado e, possivelmente, o moço disponível e dos sonhos de cada donzela curitibana. Saudável, bonito, viril, o jovem Camargo ficara famoso por suas tropelias no belo sexo. Era o terror e, ainda, a esperança sussurrada das famílias que tinha uma jovem casadoura. Pois bem. O namoro com a prima, também mato-grossense e de rara beleza, marcou-se pela rapidez fulminante. Em pouco tempo, para desespero das rivais, a Lourdes levava o Afonsinho ao altar.
Ao mesmo tempo os céus da política turvavam-se, ameaçadores. Eclodiu a Revolução, vitoriosa num ápice, sem tiros no Sul ou resistências firmadas.
Desabava o nosso mundo. Meu pai, que fora nomeado médico do Estado, preparou-se para a vinda a São Paulo, à procura de um governo perrepista (PRP).
O governador paraense deixou o palácio e alcançando o litoral encetou uma penosa fuga na direção do norte, onde a temível Força Pública assegurava às autoridades centrais aparente solidez na tranquilidade.
Lembro-me bem da excitação que marcou nossa viagem. São Paulo é que dá café, dizia o verso patriótico de canção repetida por todas as bocas, inclusive a das crianças taludas.
De fato, desmoronava-se a estrutura da velha República.
Ocupando o Paraná e detidos os revolucionários em Itararé, com Minas sublevada e a figura rebelde Juarez no Nordeste, era tudo uma questão de tempo. O tempo necessário para que a guarnição do Rio de Janeiro constituísse a chamada junta militar com o dever precípuo de depor a Hidra do Catete – assim era chamado o honrado presidente Washington Luiz. Esse episódio, inglório antecedeu de pouco tempo a nossa chegada à Paulicéia.
Com energia singular, meu pai conseguira trazer com a mudança a humilde botica, agora em Santana, bairro que elegeu para a nossa residência, em uma altissonante, embora paupérrima, Farmácia do Povo.
A duras penas e com assombrosa firmeza, conseguia ele instalar-se e instalar-nos na capital. Alugou para residência um sobrado à Rua Voluntários da Pátria.
Desdobrava-se trabalhando. Médico e farmacêutico, infatigável e imaginoso, provia a família composta de minha mãe e uma irmã de nome Dirce, com o mínimo necessário. Nunca nos faltou nada. Excetuando o luxo, tudo o mais tínhamos com abundância.
Eu, porém, era um estorvo, Magricela, olhos tristes, refugiava-me na leitura, errando pela casa, na indolência forçada. Certa noite, ouvi do meu quarto que era traçado o meu destino. Cedo, à roda das sete horas, coube a minha mãe, uma santa e fadigada mulher, comunicar-me o decidido: seria internado no Colégio Arquidiocesano, com saída semanal aos domingos. Isso, se bem comportado.
Dava assim um adeus definitivo ao cinema ocasional, aos jogos mais ou menos inocentes, inclusive o futebol, às coleções de selos, à leitura errática, da qual consumia as noites até as primeiras luzes da aurora.
A seguir, o ginásio, a faculdade de Direito e a política.
Nasceu em janeiro, 25. Ano: 1917. Observem a coincidência: a 25 de janeiro comemora-se a fundação de São Paulo. Ouviu o galo cantar pela primeira vez em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Engatinhou em Curitiba. Em 1930 a família mudou-se para São Paulo. Depois, Lorena, Bauru, Garça, Cândido Mota. Novamente cidade de São Paulo. Jânio foi guri levado, cabeçudo, finca-pé. Não sei se os padres do Colégio Arquidiocesano chegaram a lhe puxar as orelhas, mas os castigos sucediam-se: decorar latim. Quousque tandem abutere. Virgílio, Horácio. Sabia poemas inteiros de cor. Talvez salteados. Daí as sementes de seus próprios versos. Fez poemas. Não sei se os recitava.
Mas falava como quem.
Vocês sabem quase tudo que sei sobre Jânio Quadros. Assim, vejamos como Jânio conseguiu subir nas árvores quase sempre flexíveis do poder. Árvores esguias às vezes, às vezes amplas de tronco, quebradiças, espinhosas, de raízes ávidas ou de fartas raízes: Vereador em novembro de 1947 com 1.707 votos. Deputado estadual em 1950 com 17.840 votos. Governador do estado de São Paulo em outubro de 1954 com 660.264 votos. Deputado federal pelo Paraná em outubro de 1958 com 78.810 votos.
Como será sua conta de chegada em 3 de outubro? Jânio obteve 5.636.523 votos em 1960 para Presidente da República.
Dizem que suas fontes de sabedoria jorraram de Cristo, Chaplin, Shakespeare e Lincoln. Quarteto heterogêneo, mas com predominante denominador incomum – conteúdo humano. Não se pode negar que soube escolher seus exemplos. Falavam também que pediu emprestado a Lenine algumas de suas táticas políticas (não ideológicas), mas não sei até onde iam suas intimidades com o líder russo. Seu bigode, meio sobre a escova desanimada, seria um empréstimo solicitado a Nietzsche. Estranha salada da qual resultou uma das mais estranhas personalidades desta república.
Um líder.
Em 1935, estava na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Fez política acadêmica. Foi primeiro-secretário do “Álvares de Azevedo” e do “XI de Agosto”. Havia três mulheres em sua vida: mãe, esposa e filha. Conheceu dona Eloá aos 21 anos. Ela, então brotinho de 15 anos, achou-o feio, mas alegaria mais tarde: – Quem vê cara, não vê coração. Casaram-se em 1942. São felizes ao que sei, e se entendem bem. O Jânio de então, decifrava palavras cruzadas, jogava xadrez, lia histórias policiais e frequentava (sem dançar) bailes de carnaval. Num desses bailes, um frasco de lança-perfume explodiu perto dele. Vem daí o pequeno defeito que tinha numa das vistas. Mas que não o impedia de enxergar longe.
Navalha & Pente
Por motivos que ainda não descobri, era inimigo da navalha e do pente. Parece que a barba o protegia do frio, da garoa paulista, dos inimigos, de si mesmo. Dizem que barba é amiga de meditações profundas. Acariciá-la equivale a aprimorar ideias. Cofiar um bom cavanhaque, confessou-me certa vez um amigo do Sul, o deixava afiado nos positivistas de sua cabeceira. O Jânio mudou ou foi mudado. Era barbudo, está escanhoado. Era pálido, está rosado. Era triste, está quase alegre. Era encurvado, está ereto . Era desconfiado, está mais ainda. Apresentava-se sempre bem barbeado, bem penteado, bem escovado, bem passado. Único senão à sua linha: usava suspensórios. Era quase elegante. Quase, eu disse. E as mulheres, principalmente suas eleitoras, já o consideravam quase bonito.
Quase, eu disse.
Observe-se que estou analisando seu lado humano, e não seu lado político. Brinca-se com um homem, mas não se brinca com suas ideias. O cidadão Jânio Quadros, por ser incomum, admitia considerações incomuns. Com o político Jânio Quadros não me meto. Ou não me meto nesta seção. Ele afirmava que iria salvar o Brasil, que definiria nossas estações, porquanto vivemos em permanente inverno, que considerava longo e tenebroso. Quando ingressou na política foi com a intenção de demonstrar que o regime democrático exige apenas honestidade e trabalho. Sempre se preocupou com os problemas brasileiros, sempre amou a pátria embora não seja personagem de hino. Em 1939, seu colega Nelson Coutinho escreveu artigo que dizia assim: – Nele tudo é patriotismo, é nacionalismo exaltado, é vibração cívica…
Nunca dormiu em berço esplêndido.
Ficou em moda ligar o substantivo carisma à personalidade de Jânio Quadros. Quem não o entendia, e o temia por não entendê-lo, ia logo dizendo de boca meio adernada: – Sei lá, ele é meio carismático. Nesse carismático vai um pouco de desconfiança, um pouco de intranquilidade, um pouco de velada admiração. Jânio era um político que usava armas inusitadas. Sempre procurou fugir ao lugar-comum administrativo. Seus bilhetinhos ficaram famosos em São Paulo. Sua administração sacudiu o funcionalismo público. Muita gente teve medo dele e muita gente o admirava fundo. Também o chamavam de “messiânico”. Já foi imaginado de túnica branca e ampla, cabelos derramados pelos ombros, pregando às margens do rio Ipiranga.
Daria um bom apóstolo.
Comia mal, bebia muito bem, dormia tarde, acordava cedo, era extremamente nervoso, mas não se considerava explosivo. Ou melhor: controlava as explosões, porque as temia. A explosão – dizia ele – exclui melhor decisão, melhor certeza, melhor juízo. Se era pai autoritário? Não se julgava. Se era marido exigente? Pensava que não. Diz que dava á filha e à esposa liberdade de gosto e preferência. Era condescendente com os namorados de Tutu. Não a trancava em círculos de ferro. Procurava compreendê-la e ser compreendido. Gostava muito de viajar. Teve a preocupação de correr mundo para aprender. Espera nunca de importar alguma coisa para nossa terra e nossa gente. Bisbilhotou o Japão, a Índia, a Rússia.
Guri e Totó
Considerava-se homem de formação clássica. Foi professor de português, geografia e história. Tinha uma gramática expositiva concluída. Em economia dizia-se acadêmico. Gostava de ler biografias de homens fortes: Bolívar, Lincoln, Bismarck. Detestava fazer compras ou ver vitrinas. Gostava de cães. Tinha alguns em casa: Guri e Totó, por exemplo. Nomes bem brasileiros. Ainda bem: – Sempre desconfiei de cachorro com nome sofisticado. Cachorro nacional tem que se chamar mesmo Joli, Sultão, Jagunço, Toco. Minha vizinha tem uma cadela chamada Blue Gardênia. Não confio nesse bicho. Conheço uma cadela chamada Sonata. Confio menos ainda –, parafraseou Jânio. Os Quadros souberam batizar seus mastins. Bom sinal. Note-se: mesmo com bichos Jânio era intransigente – quis despedir os cães da Polícia Militar, quando Governador de São Paulo, porque fracassaram na busca de criança perdida.
Sentia-se atraído pelo Oeste, pelos ocasos, pelas auroras, pelo céu, pelas nuvens livres do Oeste. Entendia-se com índios. Era amigo de Cláudio e Orlando Villas Boas. Gostava de caçar em Mato Grosso. Atirava bem. A noite de 3 de abril de 1955 foi a mais dramática de sua vida. Seria ou não candidato à Presidência da República? No último instante renunciou em favor de Juarez Távora. Licenciou-se do governo para fazer a campanha com o general. Perderam. Serviu o treino. Era amigo de Getúlio Vargas e isso lhe valeu expulsão do PDC (que depois reconsiderou a medida).
Dizia o padre Arruda Câmara que ele não foi expulso, mas convidado a sair do partido. Aumentam os problemas financeiros da família Quadros. O estudante Jânio não pode pagar a segunda prestação da anuidade escolar e pede moratória ao diretor da Faculdade, Francisco Morato.
(*) é jornalista, professor universitário e escritor