(*) Nelson Valente
Jânio Quadros foi, sem dúvida, uma das figuras mais importantes da vida política do Brasil neste século, pelos muitos contrastes de sua extraordinária e seu estilo peculiar e exótico de tratar as coisas do Estado.
Contraditório, brilhante, inteligente, possuidor de uma loucura às vezes santa e às vezes grotesca, será sempre uma personalidade a merecer o exame e a meditação de todos aqueles que se interessam pela História da Política Brasileira.
Apoiando nos votos e nos ombros de Marrey Jr., elegeu-se prefeito de São Paulo. Daí em frente, ninguém mais o conteve.
Na carreira meteórica, que o levou de vereador a presidente em apenas 12 anos, ele já havia criado mitos suficientes sobre si mesmo: a fala rebuscada; a caspa deixada propositadamente no paletó para se assemelhar a um “homem comum”; o temperamento forte; o populismo levado ao extremo – Jânio pouco lembrava a figura “presidencial” de Getúlio Vargas ou Juscelino Kubitschek. Jânio é considerado um grande marqueteiro da política nacional.
Sua sintaxe era um caso à parte. Em seus discursos procurou sempre utilizar um vocabulário apurado, recheado por frases de efeito. É um enigma saber como conseguia se comunicar de forma eficiente com seus eleitores, a maioria sem instrução escolar.
Ninguém na história deste País arrebatou multidões tão apaixonadas, mãos levantadas em aplausos e tão plenas de esperanças quanto ele. Tudo era ao vivo. Suas maneiras de convencimento eram devastadoras. O comício era o grande cenário; ele, o próprio espetáculo. Ele foi o nosso primeiro e grande comunicador político a utilizar técnicas não convencionais. Carregava nos tons da voz, que levantava no exato instante os temas da paixão. Despertava o ódio, açulava a revolta, levando multidões ao delírio. Em seguida, suavemente dizia o que todos queriam ouvir: a mensagem salvadora. A multidão, aquele mar agitado, parava para escutá-lo, subjugada. Jânio da Silva Quadros, refez a linguagem política do País. Assim era Jânio.
Com tanto conhecimento dos estudantes, o que o senhor está achando do movimento estudantil hoje?
JÂNIO – O estudante brasileiro hoje não é melhor nem pior do que o estudante que eu fui ou que todos fomos. As várias gerações a que pertencemos não foram melhores nem piores. Considero-os menos dotados em termos políticos ou socioeconômico porque lhes foi vedada a atividade política. Não sei como a atividade política possa iniciar-se após a conclusão dos cursos. Antes de mais nada a escola deve ser, no mundo em que vivemos, centros sócio-políticos. A formação política é a formação do cidadão. Se não se permite a atividade política nas escolas como se pode esperar a criação de cidadãos?
É a única restrição que faço à juventude mas não posso culpá-la disso. Ela está sendo plasmada assim, com consequências terríveis para o futuro. Gostaria muito de dizer isso ao Ministro Ney, de quem sou amigo: “com consequências terríveis para o futuro”, (marca as palavras na mesa) Haverá – e já se registra – um vazio de lideranças políticas e socioeconômica capaz de prejudicar, e muito, nosso processo de desenvolvimento e de independência.
Mas não estão pensando no futuro. Qualquer pessoa com um pouco de vivência sabe que não se pode cercear o jovem numa hora em que o país está crescendo. Esse medo da atividade política do jovem é uma obsessão pela segurança nacional.
JÂNIO – Não é apenas o país. O mundo sofreu transformações das quais muitos podem não gostar mas nem por isso deixam de existir. Este é um mundo diferente, comunitário, de comunicações fáceis, de conscientização de massa. O estudante me faz lembrar muito o analfabeto, também marginalizado. Por que o analfabeto é marginalizado? Entende-se que não tem consciência cívica, o que não é verdade. O radinho de pilha, o sindicato, a conversa de esquina, já integraram o analfabeto à vida nacional. Já está conscientizado. Sempre vi o voto do analfabeto com muita simpatia. Para ser franco, receio menos o voto do analfabeto do que o de determinadas camadas urbanizadas que estão mais interessadas em si próprias, no seu status, nas suas vantagens. O analfabeto, sendo ingênuo em alguma medida, puro embora consciente, é capaz de votar melhor. Certa vez saí de São Paulo e fui ao Chile, presidido por Eduardo Frei, um homem magnífico. Lá estava um jesuíta holandês chamado Veekmanns que me fez uma observação guardada por mim para sempre. Veekmanns dizia que na América Latina – do México para cá inexiste uma sociedade. Toda sociedade – disse ele – lembra uma pirâmide cuja base se apoia na grande massa. A seguir vem o corpo médio e depois vem a cumeada, a elite da pirâmide. Essa pirâmide deve caracterizar-se também pela unidade solidariedade e pela permeabilidade, de modo que quem esteja cá embaixo pode ascender e chegar à classe média, quem esteja no corpo médio pode ir à cumeada, e quem esteja na cumeada pode resvalar para o corpo médio ou mesmo para a base. Ora – diz ele – se alija o analfabeto da sociedade latino-americana, constituindo 1/3 ou 1/2 da população, como pretender edificar uma pirâmide? Como pretender construir um corpo social? Examinando o argumento não encontrei nenhuma brecha e até hoje parece perfeito. Enquanto não construirmos a nossa pirâmide não teremos nenhuma possibilidade de estado democrático nem possibilidade de justiça social. Esse não é um pensamento esquerdista mas legitimamente democrático. E cristão.
Quando o senhor era presidente teve problemas com os estudantes?
JÂNIO – Tive problemas seríssimos.
Como é que o senhor agiu?
JÂNIO – Distingo entre a atividade política do estudante e a arruaça do estudante. Não sou a favor da arruaça, da desordem e da irresponsabilidade nos campi. Recordo-me por exemplo, do caso de Recife onde os estudantes pretendiam que eu destituísse o reitor. O reitor não é eleito por mim, mas pela congregação, quando muito me vem em lista tríplice como em São Paulo. Mandei dizer isso aos estudantes. Responderam-me que entravam em greve.
Mandou dizer através de um emissário?
JÂNIO _ Do Ministro da Educação Brígido Tinoco. Mandei dizer aos estudantes que entrar em greve era direito legítimo, apenas não contassem comigo para relevar as faltas.
Estudante que entra em greve tem que estar disposto a perder as aulas correspondentes ao período de greve. Se não tiver o número de aulas suficientes que lhe permita prestar exames depois, que pague o preço, (autoritário) E mais: que não se tocasse nos bens da universidade, que não pertenciam aos estudantes, mas ao povo brasileira Promoveram vários quebra-quebras dentro da universidade que eu corrigi com tanques do Exército. Mandei tanques para eles, aí vieram conversar comigo, depois de suspender a greve.
O senhor crê no direito de greve?
JÂNIO – Ah sim, acho que é sagrado.
Esses tanques fizeram o que?
JÂNIO – Reocuparam a universidade. Custou várias centenas de cruzeiros para reparar os danos causados a bens patrimoniais do povo brasileiro! E numa área paupérrima a do nosso país.
Houve algum estudante ferido?
JÂNIO – Não me recordo que houvesse. E quando vieram me procurar no Horto Florestal a conversa foi excelente.
Suas reivindicações não lhe pareceram justas?
JÂNIO – Eu nem sequer havia nomeado aquele reitor, mas o herdara da administração do presidente Juscelino. Ouvi que esse reitor deixaria a desejar. Nunca comprovei isso, até porque não tive tempo, renunciei alguns dias depois. Este movimento ocorreu logo antes do período de férias do meio de ano e em 25 de agosto eu ia embora. Mas não sou a favor da irresponsabilidade nem da subversão. Acredito muito em autoridade. A autoridade emana do povo para ser exercida em nome dele. No momento em que o povo me elege vereador, deputado, prefeito, governador ou presidente
Só faltou ser senador…
JÂNIO – … quer alguém seguro e eficiente, um homem rigoroso que cumpra a lei e a faça cumprir como está escrita. Eu costumava dizer àqueles que não gostavam da lei que não a havia redigido. Quando Presidente da República desci do Horto Florestal num Volks ao lado de Faria Lima. Eu mesmo estava guiando o Volks e entrei numa contramão. O guarda civil me deteve e me multou. Certo. O Presidente da República não tem imunidades para viajar na contramão.
Ele não te reconheceu?
JÂNIO – Nem me olhou na direção. Olhou minha carta, escreveu a multa, deteve-se no “Quadros”, deixou cair o livro de multas e o lápis e desapareceu em uma feira livre (risos).
Deve estar correndo até hoje.
JÂNIO – Juntei tudo e mandei para o Diretor de Trânsito com Cr$ 20 – uma multa de contramão àquela altura – e acrescentei uma observação para que chamasse o guarda e lhe dissesse: “O Presidente da República não tem imunidade para viajar na contramão”. Estou sujeito à lei como qualquer outro.
Voltando aos estudantes: O senhor acha que realmente está havendo infiltração entre os estudantes?
JÂNIO – Não sei. Tenho tido alguns contatos com eles. Anteontem esteve cá uma grande delegação da Faculdade de Economia da Álvares Penteado. Esses rapazes estão querendo montar uma série de palestras e. debates na faculdade, sugerindo nomes da mais alta respeitabilidade. Desejariam, por exemplo, o ex-Ministro da Educação, Jarbas Passarinho, Teotónio Vilela, Franco Montoro, Brossard e também me distinguiram com um convite. São moços da classe média, das melhores famílias, de excelente extração. Não registrei dentre eles nenhum comunista, se é isso que deseja saber. O que registrei neles foi o desejo de saber, de conhecer nossos problemas, e suas eventuais soluções, mesmo conflitantes (os depoentes certamente queriam soluções conflitantes). Mesmo conflitantes essas soluções iriam ajudá-los a encontrar sua própria solução.
Eu também acho que é isso que está acontecendo.
JÂNIO – Há quem suponha que, sendo favorável ao divórcio, ao voto do analfabeto, a uma lei severa de Remessa de Lucros, à Reforma Agrária seja eu um homem de esquerda ou tenha eu compromissos com a esquerda. Não tenho. Sou um democrata que acredita que as democracias modernas não sobrevivem a não ser no atendimento às reivindicações irresistíveis de todas as camadas da população e particularmente das mais sofridas e necessitadas, pois essas reivindicações serão atendidas de uma forma ou de outra. Acho que foi Abraão Lincoln quem disse: “Se você estiver segurando um elefante pela pata traseira e o bicho quiser soltar-se, o melhor é deixá-lo ir”. Essas reivindicações têm a força de um elefante. “Eu não vou continuar segurando um elefante pela pata traseira.
Foi isso que o senhor pensou ao renunciar? O senhor deixou de segurar o bicho?
JÂNIO – Até os mortos estão falando, não é”? Vocês viram o depoimento do Carlos Lacerda publicado ontem (24 de maio) no Jornal da Tarde? Hoje tem o depoimento de um jornalista ligado a ele dizendo que o Carlos teria me chamado de traidor. Traidor do quê? Nunca fui procurá-lo, ele é que veio à minha casa.
Até prefiro não falar mais porque qualquer diálogo com Carlos morto deve ser mais difícil do que com ele vivo. A não ser que fosse realizado em sessão espírita Deixo o Carlos agora a cargo do Pedroso Horta, que também está morto e deve estar o repreendendo lá em cima.
Eu gostaria então que o senhor contasse a versão verdadeira e definitiva sobre sua renúncia.
JÂNIO – A existência dessas diversas versões deve-se ao fato das pessoas desconhecerem os fatos da História do Brasil. Isso também aplica-se a você em alguma medida. Cá está a obra de Afonso Arinos de Melo Franco, “História do Povo Brasileiro” (mostra na estante). Os três últimos volumes cuidam dos vivos. Eu cuidei dos mortos e por isso não escrevi uma linha a respeito. De Cabral para cá posso escrever com segurança porque não me aborreça Afonso Arinos escreveu de D. João VI até Castello Branco.
Reconheço que essa obra eu não li, por isso estou pedindo que o senhor narre o que aconteceu.
JÂNIO – Bem, eu abri O Estado de São Paulo e lá estava um jornalista ilustre me atribuindo, em negrito, a expressão “forças ocultas”. Mandei-lhe uma carta dizendo: “Não é possível, você não deve sequer ter lido o documento. É um documento público e oficial. Falei em forças terríveis, porque ocultas nunca o foram”. Eram forças escarradas, escancaradas, á mostra. Toda a nação acompanhou o cerco que eu estava sofrendo, um cerco que ainda é atual.
O senhor não usou a expressão “forças ocultas”?
JÂNIO – Não ora Deus do céu!
Esse cerco continua?
JÂNIO – O cerco é ao poder.
E consequentemente é ao povo.
JÂNIO – Sobretudo ao povo extrapolando-se – como diria nosso Roberto Campos – para o poder. Era absolutamente impossível governar dentro daquela constituição voltada contra o Dr. Getúlio Dorneles Vargas. Essa constituição não foi feita a favor do povo brasileiro ou do presidencialismo, mas, contra um homem.
A semente plantada pela UDN – pela qual o senhor foi candidato – voltou-se contra ela mesma.
JÂNIO – Era possível governar sim, desde que se dividisse o País em capitanias entregando cada uma a um grupo político ou econômico. Quando cheguei à Presidência convoquei o General Afonso de Albuquerque Lima, alta expressão do nacionalismo em nossas Forças Armadas, a fim de convidá-lo para assumir o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Neste departamento haviam ocorrido todos os abusos que vocês possam imaginar. Convertera-se de Departamento da Viação em património de alguns chefetes políticos. Toda sua maquinaria e todo seu pessoal estava a serviço de latifúndios no Nordeste, pertencentes aos grandes senhores de engenho. A primeira coisa que pedi ao então Coronel foi que tirasse o DNOCS do asfalto de Copacabana e o levasse para Fortaleza. O Rio de Janeiro não conhece o drama da seca, a ecologia do Nordeste nem sua figura humana. Esse pedido foi atendido gostosamente pois por coincidência ele era cearense. Muito bem, o coronel só conseguiu reaver algumas das máquinas do DNOCS arrombando porteiras com tropa armada.
Há muito tempo estavam incorporadas em definitivo ao património particular de fulana beltrano e sicrana. Por que comprar trator, carregadeira, caminhões, pás e pagar pessoal quando o Governo Federal pode trazer isso em benefício de fulana beltrano e sicrano? E apenas um pobre detalhe, mas nesse instante alijei os setores dos donos de latifúndios no Nordeste.
Foi um detalhe das forças visíveis.
JÂNIO – No dia em que este General, ex-Ministro da Revolução, prestar esse depoimento ficarão assombrados. Tenho aqui as documentações, que um dia serão publicadas pelo José Aparecido de Oliveira. Não o será feito enquanto eu viver pois alcançam figuras da nossa vida pública julgada “modelares”.
O senhor acabou de se referir à oligarquia. Existe uma escala entre essas forças?
JÂNIO – Bem, isso reclama uma exposição cuidadosa e criteriosa. Em primeiro lugar, lembrem-se todos que não desejei ser presidente (peio menos naquela ocasião). Um pouco antes eu poderia ter me candidatado e preferi apoiar o General Juarez Távora, chefe da Casa Militar do Presidente Café Filho.
Disputou a eleição com Juscelino.
JÂNIO – Acredito que pudéssemos ter ganho. Empenhei-me nessa eleição viajando pelo país todo em pequenos aviões dos quais tinha e tenho muito medo. Estive por toda parte do Brasil. Sandra Cavalcante foi minha companheira nessa pregação. Juarez revelou um grande preparo, um grande destemor, e poderia ter sido um grande presidente. A ele eu sucederia, de forma quase inevitável. Juarez conhecia bem o país e se fizera um nacionalista vigoroso. Nasceu no Nordeste (13º filho) e conhecia bem o drama daquela área que representa o nosso problema mais grave, sem embargo de eu entender que todo o povo brasileiro vem empobrecendo (ressalta para o gravador): o povo. A inflação sempre favoreceu os ricos, sendo um meio de cultura para as fortunas fáceis, dos escândalos, da corrupção, dos favores ilícitos. Bem, a candidatura do Juarez foi arruinada por alguns artigos do Sr. Carlos Lacerda, publicados na Tribuna da Imprensa.
Como?
JÂNIO – Recordo-me do título de um deles: “A BARGANHA”, abrindo um artigo de extrema virulência e de uma injustiça brutal, ferindo Juarez Távora de tal sorte que renunciou á candidatura. Demovê-lo foi uma luta pessoal minha, com a grande ajuda do Café Filho, Presidente da República. Algum tempo depois, terminado o mandato do Presidente Juscelino, saio eu como candidato a Presidente da República, mas sofrendo pressões políticas de tal ordem que também renunciei à candidatura. Muito pouca gente se lembra disso: renunciei para valer! Escrevi uma carta duríssima, dando as razões pelas quais não desejava concorrer, e saí com minha família para local ignorado a fim de não ser convencido a voltar.
Como você fizera com o Juarez.
JÂNIO – Apôs ter recebido determinadas garantias de liberdade de movimentos fiz um discurso em Recife que não poderia enganar ninguém. Não enganei ninguém quanto à política externa que me propunha a realizar, pois seria uma política de janelas abertas, isto é, eu desejava relações com todos os povos sem nenhuma exceção. Não enganei ninguém quanto à política econômica de austeridade e seriedade. Não enganei ninguém quanto ao exercício da autoridade a que me propunha, nem no referente à reforma agrária, à reforma educacional visando à democratização do ensino… Havia também outros pontos que me pareceram essenciais. Tenho uma cópia do discurso aqui microfilmado. Foi proferido na presença dos próceres dos partidos que me elegeram. O governador de Pernambuco à época estava do meu lado e me recordo que foi um comício extremamente perturbado pelos comunistas, não queriam me deixar falar. Eis-me eleito por quase seis milhões de votos. Não tive a maioria absoluta que se propala pois não tive sequer a metade dos votos válidos.
Mas foi a maior votação que um presidente já tinha tido até então.
JÂNIO – Tenho a impressão de que Getúlio me sobrepujou quanto á proporcionalidade no seu confronto com Cristiano Machado. Como eu previa, fui eleito sem que se elegesse o Congresso comigo. Minoria no Senado e na Câmara Federal. E a maioria estava furiosa pois fora batida por mim nos seus respectivos redutos (esmurra a mesa) Maioria que sabia que se eu continuasse presidente dificilmente se reelegeria nas próximas eleições.
Isso foi mais um. pedaço das forças.
JÂNIO – Houve ainda um erro maior, tão sério e tão grave que me levou a considerar a hipótese de não tomar posse. O povo elegera como vice presidente o Sr. João Goulart, com quem eu não tinha relações de nenhuma espécie. Lá estava eu representando uma corrente política e o vice-presidente da República representando outra que acabava de ser batida fragorosamente nos comícios da Praça Pública. Minha política econômica necessariamente me alijaria boa parte da popularidade. Era uma política de sacrifícios.
A 204 caiu como um gravame nos ombros do povo, mas ou eu a adotava ou íamos para a insolvência. O processo inflacionário infrene era o preço que pagávamos por Brasília, preço que ainda estamos pagando.
O que era a 204?
JÂNIO – Desvalorizava o cruzeiro, estabelecendo um novo valor, o que aumentava enormemente com suas repercussões o índice de custo de vida, embora possibilitasse uma melhoria vital nas exportações.
Ao mesmo tempo eu gravava o preço dos combustíveis, do trigo e do papel, tomando uma cautela que podia (e devia) servir de exemplo: mandei antes oficiais superiores do Exército conferir os estoques de petróleo, óleo, trigo e papel a fim de evitar que aqueles que possuíam esses estoques se locupletassem com os novos preços. O governo promoveu uma espécie de confisco desses estoques para que fossem vendidos aos preços anteriores. Ninguém pôs no bolso um níquel! Um de meus melhores amigos aqui em São Paulo amanheceu com oficiais do Exército na sua usina.
O senhor disse que a 204 atingiria o povo, mas a resistência maior foi da classe dominante. Os interesses da classe dominante seriam outra força?
JÂNIO-Sem nenhuma dúvida. Irritei os moageiros poderosos em geral, irritei o mundo do petróleo e do óleo combustível…
E na política externa?
JÂNIO – Resolvi reestabelecer relações diplomáticas com a Rússia. Há dois anos havia estado com Khruschev em Moscou e notara o maior interesse da parte dele num intercâmbio legítimo. A troca de representações diplomáticas só poderia engrandecer às duas nações. A Rússia já estava a caminho de se tornar uma superpotência. O Brasil se afirmaria internacionalmente como nação soberana que mantém interesses com as nações que julga de relações repercutiu pessimamente e foi objeto de explorações sem tamanho.
O senhor antecipou a política africana em dez anos.
JÂNIO – A política africana que preconizei alcançou franceses, ingleses, americanos em cheio, as nações que ainda teimavam na velha política colonialista do Cabo ao Cairo.
Resumindo:
PRESIDENTE JÂNIO DA SILVA QUADROS ( 1917- 1992)
1917 – Nasce no dia 25 de janeiro em Campo Grande, Mato Grosso. Filho do médico e farmacêutico curitibano Gabriel Nogueira Quadros e Leonor da Silva Quadros .
1924 – A família volta o Paraná. Conclui o primário no Grupo Escolar Conselheiro Zacarias, em Curitiba.
1928 – Jânio inicia o curso ginasial no internato do Gymnásio Paranaense – atual colégio Estadual do Paraná. Entre os colegas de classe, o futuro ministro e governador do Paraná, Ney Braga e o futuro senador Alencar Guimarães.
1930 – Após a revolução, a família muda-se para São Paulo. Em 33, termina o curso ginasial no Colégio Diocesano.
1940 – Em 16 de janeiro, Jânio forma-se em Direito e inicia carreira na área criminal.
1942– Casa-se com Eloá, filha de um farmacêutico do bairro paulistano do Bom Retiro.
1943 – Nasce sua única filha, Dirce Maria, a Tutu.
1947 – Filiado ao Partido Democrático Cristão (PDC),Jânio se elege suplente vereador com 1.707 votos. Assume no mesmo ano e marca sua atuação por polêmicas em plenário.
1950 – Em 3 de outubro, escolhido por 17.840 eleitores, torna-se o deputado mais votado na Assembleia Legislativa de São Paulo, pelo mesmo PDC.
1952 – Apoiado pelos nanicos PDC e Partido Socialista Brasileiro conquista a Prefeitura de São Paulo com 284.922 votos. Mais que o dobro de todos os outros candidatos juntos.
1954 – Jânio se licencia da prefeitura para disputar o governo do estado. Vence a eleição de 3 de outubro com 660.264 votos. Exerce um governo moralista, com controle do dinheiro público e transformação do déficit estadual em superávit.
1956 – Alegando tratamento de saúde Jânio viaja à Europa por duas vezes em períodos de 60 dias. Ele sofria com um problema no olho direito, atingida por um estilhaço de um frasco de lança-perfume que estourou em um baile de carnaval.
1957 – Em 18 de maio, morre assassinado seu pai, Gabriel Quadros, então deputado federal. Jânio declara encerrada sua carreira política. Em dezembro, porém, registra sua candidatura a deputado federal pela seção paranaense do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
1959 – Deixa o governo paulista em 31 de janeiro para assumir a cadeira de deputado pelo Paraná, que conquistara em 3 de outubro do ano anterior, com o recorde estadual de 78.810 votos. Em abril, o Partido Trabalhista Nacional lança-o candidato à sucessão de Juscelino Kubitschek. Aqui, o ex-colega Ney Braga lança-se candidato a governador com o slogan “Quem é Jânio é Ney/Quem é Ney é Jânio”.
1960 – Em 3 de outubro, derrota o marechal Henrique Teixeira Lott, com 1,8 milhão de votos de diferença. Obtém 5.636.623 votos para a Presidência da República, ou 48, 57% do total dos votos.
1961– Assume a Presidência em janeiro. Em 5 de agosto, vem a Curitiba e entrega a Comenda da Ordem Nacional do Mérito a professora Maria Estrela Carvalho em 1925. Na sede do Colégio Conselheiro Zacarias, no Alto da Glória , há uma placa lembrando a homenagem.
1961 – Em julho condecora Che Guevara com Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul e, sem maioria no Congresso, enfrenta dura oposição a seu governo. Renuncia em 25 de agosto e dois dias depois viaja para Londres, a bordo do cargueiro Uruguai Star.
1962 – Retorna ao Brasil em março, lança-se candidato a governador de São Paulo e sofre sua primeira derrota nas urnas, para Adhemar de Barros.
1964 – Queixa-se do regime militar em carta ao marechal-presidente Castelo Branco e tem os direitos políticos cassados pelo prazo de dez anos.
1968 – É preso por quatro meses em Corumbá (MT) após discursos contra o governo militar.
1974 – Recobra seu título eleitoral, mas se mantém afastado da disputa de cargos públicos.
1982 – Surge como candidato do PTB ao governo de São Paulo, na primeira eleição direta após o golpe de 1964. Antes da eleição visita o presidente da Líbia, Muamar Kadafi, e sai do encontro elogiando “seus esforços pela paz mundial”. Termina em terceiro lugar.
1984 – Jânio lança-se candidato à prefeitura de São Paulo em 30 de abril.
1985 – Pelo mesmo PTB, elege-se prefeito da capital paulista com 1.572.454 votos derrotando Fernando Henrique Cardoso.
1986 – Assume o cargo de prefeito e pendura no seu gabinete um par de chuteiras, aposentando-se das disputas eleitorais.
1987 – Descobre-se que Jânio mantém uma conta numerada em Genebra, na Suíça. Notícia falsa.
1989 – Não comparece à entrega do cargo à prefeita petista Luiza Erundina. Sofre o primeiro de uma série de AVCs.
1992 – Morre em 16 de fevereiro.
(*) é professor universitário, jornalista e escritor