A história da ivermectina começou num lugar bastante inusitado: um campo de golfe
Os moradores de alguns vilarejos na África Central tinham duas certezas na vida: a primeira era que, na infância e no início da adolescência, eles precisariam guiar e auxiliar os familiares e vizinhos mais velhos, a maioria deles vítima de cegueira.
E o destino inexorável se certificava que, após os 20 e poucos anos de idade, eles também seriam acometidos pela deficiência visual e necessitariam do auxílio dos mais jovens para sobreviver.
O drama, que se repetia geração após geração, era causado pelo verme Onchocerca volvulus, transmitido pela picada de mosquitos borrachudos muito comuns nessa região (e também na América Latina e no Iêmen).
O parasita pode viver escondido no corpo por até 15 anos — com o passar do tempo, ele libera milhões de larvas microscópicas que afetam a pele, o sistema linfático e o nervo óptico, que nos dá a capacidade de ver o mundo.
O quadro, conhecido como oncocercose ou cegueira dos rios, ainda afeta cerca de 18 milhões de pessoas todos os anos.
A condição acomete principalmente um grupo de 28 países africanos, que respondem por 99% dos casos.
A cada 12 meses, um total de 6,5 milhões de pessoas desenvolvem sintomas da infecção, como lesões na pele e dificuldade para enxergar.
Dessas, 270 mil perdem a visão de forma definitiva.
Mas a situação já foi ainda pior e só começou a melhorar a partir 1988, com a adoção de um remédio que acabara de ser aprovado para uso em humanos: a ivermectina.
No final dos anos 1980, esse medicamento passaria a fazer parte de um gigantesco programa de doação e alcançaria um dos maiores sucessos de saúde pública da história recente.
Mas para entender como esse fármaco saiu das bancadas de laboratórios, mudou a realidade do mundo e voltou aos holofotes durante a pandemia de covid-19 por causa de disputas politizadas em torno de sua suposta eficácia (que ainda não foi comprovada por estudos científicos rigorosos), é preciso voltar ao ano de 1973 e acompanhar uma descoberta inusitada que aconteceu num campo de golfe da cidade de Ito, no Japão.
Ali começaria a história que mudaria a vida de milhões de pessoas pelos próximos anos.
Surpresas da terra
Desde o início de sua carreira, o bioquímico japonês Satoshi Õmura se especializou em estudar a produção de enzimas por micro-organismos.
Sua ideia era identificar moléculas com potencial farmacológico, que poderiam eventualmente ser utilizadas como tratamento para várias doenças.
Vale lembrar que esse tipo de pesquisa já rendeu grandes avanços à humanidade. A penicilina, o primeiro antibiótico da história, por exemplo, foi obtida pela primeira vez a partir de uma colônia de fungos, cultivada em 1928 pelo cientista escocês Alexander Fleming.
No início dos anos 1970, o trabalho de Õmura no Instituto Kitasato, em Tóquio, consistia em coletar amostras do solo e investigar o comportamento dos seres microscópicos que viviam ali.
As substâncias que mostravam algum potencial eram então enviadas aos laboratórios da farmacêutica Merck, Sharpe & Dome (MSD), nos Estados Unidos, onde passavam por uma nova rodada de testes mais aprofundados.
Foi assim que surgiu a ivermectina: o bioquímico japonês coletou um pouco de terra nas cercanias de um campo de golfe da cidade de Ito, que fica a 130 quilômetros de Tóquio.
“Foi lá que ele descobriu uma cepa da bactéria Streptomyces avermitilis“, conta o microbiologista Gabriel Padilha, coordenador do Laboratório de Bioprodutos do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).
Nas análises, Õmura isolou uma enzima chamada avermectina, que parecia ter algum potencial para inibir vermes, insetos e aracnídeos.
O material foi entregue aos colegas americanos em 1974. Cinco anos depois, foram publicados os primeiros artigos científicos que descreviam a molécula e suas propriedades.
Após uma série de experimentos que perduraram até o final dos anos 1970, um time da MSD liderado pelo bioquímico irlandês e americano William Campbell chegava à formulação final do novo medicamento.
Nascia, assim, a ivermectina.
Mas a droga ainda demoraria quase uma década para chegar aos seres humanos: antes, ela seria usada por um bom tempo na medicina veterinária.
Remédio para gado
As experiências iniciais indicavam que a ivermectina era uma ótima molécula para tratar dois tipos de parasitas: aqueles que se instalam no sistema digestivo ou na pele.
“Ela foi uma maravilha para a pecuária. Os rebanhos costumavam sofrer muito com verminoses intestinais, que fazem os animais perderem peso, e com os carrapatos, que se fixam no couro e inviabilizam seu uso comercial”, descreve o biólogo Carlos Eduardo Winter, professor do Departamento de Parasitologia do ICB-USP.
Em pouco tempo, o medicamento começou a ser usado em larga escala em bois, cavalos, porcos e ovelhas.
Nos primeiros cinco anos após seu lançamento, a ivermectina foi aprovada em 46 países e chegou a ser aplicada em quase 500 milhões de animais.
Seu uso nos Estados Unidos chegou a quase extinguir um verme chamado Onchocerca cervicalis, que afeta os cavalos e representa um verdadeiro pesadelo para os criadores.
Com o sucesso da aplicação no universo da veterinária, os cientistas puderam entender um pouco mais a fundo o mecanismo de ação do medicamento no combate aos vermes.
“Sabe-se que a ivermectina atua no sistema nervoso dos parasitas, causando uma paralisação do organismo deles”, detalha o parasitologista Marcelo Beltrão Molento, professor da Universidade Federal do Paraná.
“Eles deixam de comer e de ter trocas com o hospedeiro. Com o tempo, morrem aos poucos e são metabolizados”, completa.
Esse processo de matar os vermes acontece de forma relativamente lenta — e isso é essencial para o sucesso da terapia medicamentosa.
Se a ivermectina aniquilasse todos os parasitas numa só tacada, isso poderia causar uma inflamação no corpo, que não teria condições de lidar com tantos “bichos mortos” de uma só vez.
Com os bons resultados na pecuária no início dos anos 1980, chegava a hora de entender se o remédio seria capaz de repetir o mesmo sucesso quando usado em seres humanos.
Mudança de paradigma
Os testes clínicos que avaliaram o uso do medicamento contra verminoses que atingem as pessoas se arrastaram entre 1982 e 1986.
Em 1987, a ivermectina ganhou na França seu primeiro reconhecimento como tratamento médico.
Nesse mesmo ano, a MSD, farmacêutica detentora dos direitos comerciais do produto, assinou um acordo com a Organização Mundial da Saúde e outras instituições em que se comprometeu a fazer doações de doses por tempo ilimitado.
O objetivo? Eliminar definitivamente a oncocercose da face da Terra.
Desde então, a ivermectina é distribuída gratuitamente em países da África e da América Latina.
Nos locais onde essa parasitose é comum, os moradores chegam a receber as doses todos os anos, como tratamento profilático, até que a doença seja controlada e eliminada daquela região.
Esse foi o primeiro programa massivo de doação de drogas da história e está ativo até hoje, com mais de 4 bilhões de doses distribuídas para 49 países.
Com 34 anos, o programa já produziu inúmeros resultados significativos, com mais de 300 milhões de pessoas tratadas todos os anos.
Conquistas na América Latina
“Em nossa região, a iniciativa começou em 1992 e nós já conseguimos eliminar a oncocercose de quatro países: Colômbia, Equador, México e Guatemala”, relata o médico Mauricio Sauerbrey, diretor do programa de eliminação da doença nas Américas mantido pelo Carter Center, uma instituição sem fins lucrativos criada pelo ex-presidente americano Jimmy Carter.
Por ora, a cegueira dos rios só persiste em dois lugares da América Latina: Brasil e Venezuela.
“Os casos se concentram em regiões de difícil acesso, como as áreas de fronteira na Floresta Amazônica, e afetam principalmente populações nômades que vivem em comunidades muito pequenas, como os ianomâmis. É mais difícil encontrá-los e oferecer o tratamento duas vezes ao ano”, detalha Sauerbrey.
“Mas tenho certeza que também vamos ser bem-sucedidos no Brasil e na Venezuela e teremos boas notícias para compartilhar nos próximos anos”, acredita o especialista.
Resultados na África
Do outro lado do Atlântico, os resultados também são considerados excelentes, embora nenhum país tenha eliminado a doença definitivamente de seu território.
De acordo com relatórios disponibilizados no site da Organização Mundial da Saúde, o número de pacientes com oncocercose caiu 61% nas regiões africanas beneficiadas pelo projeto.
No mesmo período, a notificação de casos de cegueira relacionados à infecção foi reduzida pela metade.
Além da cegueira dos rios, a ivermectina mostrou ser uma ótima terapia contra a filariose, outra enfermidade muito comum nesses mesmos lugares do planeta.
Também conhecida como elefantíase, a condição é provocada pelo parasita Wuchereria bancrofti e está relacionada a inchaços e deformações nas pernas e na região genital.
Droga-maravilha
Tantos serviços prestados fazem a ivermectina entrar para o seleto rol das “wonder-drugs” (ou “drogas-maravilha”, numa tradução literal), ao lado de aspirina, penicilina e morfina.
“Esse é um grupo de medicamentos que realmente mudou a face da saúde pública”, constata Molento.
A descoberta do medicamento rendeu até o Prêmio Nobel de Medicina e Fisiologia de 2015 aos pioneiros nos estudos: o japonês Satoshi Õmura e o irlandês/americano William Campbell.
Naquele ano, eles dividiram o reconhecimento com a farmacologista chinesa Tu Youyou, que desenvolveu a artemisinina, um tratamento contra a malária.
Reposicionamento de drogas e a covid-19
A ivermectina foi alçada a um novo patamar de fama com a chegada da pandemia de covid-19: a partir do segundo semestre de 2020, ela passou a ser apontada como um possível tratamento contra o novo coronavírus, apesar da falta de evidências científicas suficientes para dar suporte a essa afirmação.
Mas como que o remédio entrou nessa história?
Tudo começou com uma estratégia bastante comum na área da farmacologia: o reposicionamento de drogas.
Com o auxílio de plataformas de tecnologia e programas de computador, os cientistas avaliam, de uma vez só, o potencial de centenas ou até milhares de medicamentos contra uma determinada doença.
“Essa é uma estratégia excelente, pois seleciona produtos já utilizados e comprovadamente seguras para ver se podem ajudar num outro contexto”, avalia o microbiologista Leandro Araújo Lobo, professor do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O reposicionamento permite acelerar algumas etapas na criação de um novo tratamento — o que certamente é desejável quando uma enfermidade recém-descoberta está matando milhares de pessoas todos os dias em vários países.
A ivermectina, então, foi testada nos laboratórios da Universidade Monash, da Austrália, e mostrou ali que seria capaz de contra-atacar o coronavírus.
Repare bem: os experimentos eram simples e foram realizados em culturas de células, que estão longe de representar toda a complexidade de uma infecção no corpo humano.
E a situação fica ainda mais distante da vida real porque a dose empregada nestes testes iniciais era muito superior ao limite considerado seguro para as pessoas.
“Nos trabalhos iniciais, a dosagem chegava a ser proporcionalmente 17 vezes mais alta do que poderíamos dar a uma pessoa”, calcula Lobo.
Outro problema: o reposicionamento de drogas é apenas o primeiro passo e deve ser sucedido de estudos mais rigorosos, que comprovem ou não a eficácia e a segurança daquele fármaco contra a doença.
“No laboratório, até vinagre, sal, açúcar ou refrigerante podem mostrar alguma atividade. Mas quando passamos para a próxima fase dos testes, que envolvem animais, esse efeito geralmente desaparece ou fica tóxico demais”, explica Padilha.
“Em praticamente 99% das vezes, aquilo que vai bem nos experimentos in vitro não funciona nas pesquisas posteriores”, concorda Winter.
Leite derramado
Quando os resultados iniciais da ação da ivermectina contra o coronavírus foram divulgados, já era tarde demais: em questão de dias, numa espécie de telefone sem fio potencializado por redes sociais, as informações sobre o potencial do remédio foram distorcidas e exageradas, de tal forma que muitas pessoas passaram a utilizá-lo até para tentar prevenir a infecção.
“Em maio e junho do ano passado, nós já assistimos a um aumento do interesse pela ivermectina, inclusive com a ação direta de prefeitos e secretários municipais da Saúde brasileiros, que naquela época começaram os planos de um tratamento em massa”, rememora Molento.
Prova disso são os números do Conselho Federal de Farmácia (CFF): em comparação com 2019, as vendas de ivermectina dispararam 557% no país ao longo de 2020.
A título de comparação, a hidroxicloroquina, outro princípio ativo muito debatido nos últimos meses, teve um crescimento de 110% no mesmo período.
Outros integrantes do comprovadamente ineficaz kit-covid também tiveram uma maior procura, mas os números nem chegam perto do “sucesso” da ivermectina: vitamina D (81%), vitamina C (59%) e nitazoxanida (9%) também figuraram no ranking divulgado pelo CFF.
Um dos mais contumazes defensores do tratamento precoce e da ivermectina foi (e continua sendo) o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Foram várias as manifestações de apoio a esse coquetel farmacológico.
Numa conversa com apoiadores no dia 16 de abril, o presidente voltou a afirmar: “É o tempo todo o pessoal só atrapalhando. Isso não dá certo. Ô idiota, o que dá certo? O cara é um jumento. Fica falando: ‘Ivermectina não pode, não tem comprovação científica’. E não dá alternativa. Deixa o cara tomar, pô. O médico vai decidir o que o cara vai tomar.”
O que diz a ciência
Ao longo dos últimos meses, diversos grupos de pesquisa se debruçaram sobre o efeito da ivermectina nas várias etapas da covid-19.
Os resultados, porém, não foram nada animadores e não mostraram resultados satisfatórios.
Isso fez com que várias instituições mundo afora contra-indicassem seu uso na prevenção ou no tratamento da infecção pelo coronavírus.
A Food and Drug Administration (FDA), a agência regulatória dos Estados Unidos, atualizou suas recomendações sobre o assunto no dia 5 de março de 2021:
“A FDA não revisou dados que justificam o uso da ivermectina em pacientes com covid-19. Contudo, algumas pesquisas sobre o tema ainda estão em andamento. Tomar um remédio que ainda não foi aprovado pode ser muito perigoso”.
Duas semanas depois, foi a vez de a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) se posicionar oficialmente a respeito do tema:
“Acompanhando as recentes discussões sobre o uso da ivermectina, a EMA revisou a evidência publicada a partir de estudos em laboratório, estudos observacionais, testes clínicos e meta-análises […] A maioria dos trabalhos que revisamos foram pequenos e apresentam uma série de limitações, incluindo diferentes regimes de doses e o uso de outras medicações. Com isso, concluímos que a evidência disponível até o momento não é suficiente para indicar o uso da ivermectina contra a covid-19”.
No dia 31 de março, a OMS também divulgou o seu parecer sobre a discussão:
“A evidência atual sobre o uso da ivermectina para tratar a covid-19 é inconclusiva. Enquanto não possuímos mais informações, a OMS recomenda que essa droga só seja utilizada em estudos clínicos. Essa recomendação se aplica a todos os graus da doença e passa a fazer parte de nossas diretrizes de tratamento”.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já havia publicado a sua avaliação sobre a questão em julho de 2020, também refutando o uso da medicação para conter a pandemia.
Efeitos futuros (e imediatos)
O descompasso e a desinformação sobre a ivermectina e outros remédios usados indiscriminadamente nos últimos meses já apresentam efeitos adversos palpáveis.
Numa reportagem da BBC News Brasil do dia 23 de março, diretores de Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) de hospitais de referência no Brasil afirmam que a promoção kit-covid contribuiu para aumentar as mortes no país.
Outra matéria, publicada no mesmo dia no jornal O Estado de S. Paulo, mostra que o tratamento precoce causou graves problemas no fígado e fez com que muitos pacientes precisassem ir para a fila de transplante.
“Infelizmente, mais casos como esses serão registrados. O que vemos é uma overdose de ivermectina que sobrecarrega o fígado e pode provocar sérios problemas”, observa Lobo.
O uso do fármaco sem acompanhamento e em doses exageradas também está relacionado a casos de diarreia, tontura, dor de cabeça, náusea, intoxicações renais e até hepatite medicamentosa.
Um dos argumentos mais usados por adeptos do remédio como tratamento da covid-19 é a experiência pessoal: muitos dizem que tiveram a doença e se recuperaram após tomarem esses comprimidos.
“A questão é que mais de 95% dos infectados vão ter uma cura espontânea, independentemente se fizerem um tratamento ou apenas ficarem em repouso”, responde Molento.
“Eu também posso dizer que peguei covid-19, subi no telhado da minha casa, tomei duas xícaras de café olhando para o Sul e me curei”, compara.
É óbvio que não há validade científica nesse tipo de relato e ninguém deve tentar repetir essa e outras ‘experiências’ em casa.
“Nossa população está passando por testes toxicológicos de forma voluntária. As pessoas estão se intoxicando como animais de laboratório sob o pretexto de uma promessa de cura, sem que exista qualquer evidência científica sobre isso”, completa o especialista.
BBC NEWS* (André Biernath – Da BBC News Brasil em São Paulo)