sexta-feira, 31/10/25
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Insensibilidade geral

Ilustração gerada por IA

 

Miguel Lucena – Delegado de Polícia aposentado, advogado e jornalista

Havia um personagem de desenho animado que gritava “carnificina!” — um brado caricatural que agora soa como profecia. A palavra, dita com humor de outrora, parece hoje ecoar nas manchetes: cidades sangram, campos viram ruínas, e a repetição da tragédia já não desperta surpresa, apenas zumbidos de indiferença. A carnificina cresce — e junto com ela cresce uma espécie de anestesia coletiva. O mundo, em estado binário, polariza-se em zeros e uns: amigo ou inimigo, culpado ou descartável. A empatia vai ficando para depois, se é que chega a existir.

Essa insensibilidade não nasceu do nada. Ela é filha de várias causas que se retroalimentam. Primeiro, a saturação informacional: somos bombardeados por imagens e dados, notícias que não param de chegar. No começo chocam; depois estressam; e por fim, entorpecem. Quando o horror vira rotina na tela do celular, os nervos se habituam. A repetição transforma o espanto em estatística — e estatística é terreno fértil para o esquecimento.

Segundo, a polarização política e cultural reduz o outro à caricatura. Se for “do lado de lá”, pode morrer aos montes — afinal, “quem manda o Hamas ser de lá?”, “que culpa tem aquela favela?” — frases que, disfarçadas de raciocínio, correm como gasolina em brasa. O problema deixa de ser humano e vira rótulo. Tornamo-nos juízes sumários, com fichas criminais que se escrevem antes do fato, com condenações proferidas sem julgamento. A desumanização facilita o tiro, literal ou simbólico.

Terceiro, a economia da atenção transforma a compaixão em moeda escassa. Há sempre algo mais urgente, mais clicável, mais rentável. Emoção que não gera audiência é descartada; dor que não converte em engajamento vira ruído. Na praça pública das redes, o sentimento genuíno perde terreno para o espetáculo: o choro é coreografado, o luto é tendência, o escândalo é produto. Assim, o humano se liquefaz em conteúdo.

Mas há ainda uma raiz mais íntima: o medo. Mais fácil é negar a complexidade alheia do que confrontar a própria impotência. Reconhecer que alguém sofre exige tomar posição, partilhar recursos, mudar rotas de viagem moral. Melhor responsabilizar um grupo, culpar um líder, alimentar a tese do “justo castigo”. A indiferença, então, vira mecanismo de defesa: se eu desumanizo, não preciso agir; se eu reduzo o outro a estatística, não preciso partilhar a dor.

O resultado é devastador. Sociedades que se acostumam com a morte — seja ela produzida por políticas, por violência urbana, por guerras distantes — perdem os vínculos que permitem a solidariedade. As instituições erodem-se; a confiança mútua murcha; a ideia de bem comum enfraquece. E, quando a indiferença vira norma, a violência ganha um único beneficiário: a continuidade da própria violência. Porque onde ninguém se importa, ninguém precisa prestar contas.

O antídoto, porém, não é simples e tampouco imediato. Exige trabalho moral e político. Requer recuperar a narrativa do outro como pessoa inteira, com rosto, nome, rotina e futuro — não apenas um rótulo conveniente. Requer restaurar a prática da escuta: não a audição passiva, mas a disposição de se deixar afetar. Requer políticas públicas que humanizem: acesso à saúde, educação, emprego e justiça. Requer meios de comunicação que não tratem a dor humana como espetáculo e cidadãos que resistam ao reduzido impulso de transformar o próximo em inimigo.

Há gestos pequenos e eficazes. Ler uma reportagem inteira antes de compartilhar; perguntar “quem são essas pessoas?” quando uma notícia apresenta uma massa anônima; ouvir histórias reais ao invés de opiniões pré-empacotadas; apoiar iniciativas locais que reconstituam redes de cuidado. São ações que não apagam a carnificina, mas enfraquecem sua naturalização.

Por fim, voltar a dizer “não” à carnificina é também uma escolha estética: recusar o humor que se alimenta da desgraça alheia, recuperar a tristeza como sentimento legítimo, permitir que o espanto volte a ser último recurso e não primeira resposta. A insensibilidade geral se combate quando cada um — em sua esfera — decide que a vida humana não é compatível com o sistema binário do amigo/inimigo. Decidir que o outro, mesmo quando diferente, merece o mínimo: ser visto.

Insensibilidade é luxo que sociedades em ruínas não podem mais pagar. Reconhecer isso é o começo de uma reconstrução moral que ainda cabe em nossas mãos, se tivermos coragem de deixá-las abertas para tocar, e não para apontar.

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