Ministério da Cultura rompe diálogo com grupo de artistas independentes que exigiam livre expressão e os acusa de serem financiados pelos Estados Unidos. Fundador e integrantes do Movimento San Isidro falam ao Correio e denunciam aumento da repressão na ilha
O sonho da liberdade de expressão — uma das principais demandas de um grupo de artistas cubanos independentes — foi frustrado às portas do Ministério da Cultura, em Havana. Criado em 12 de setembro de 2018 por 12 pessoas, o Movimento San Isidro (MSI) esperava dialogar com o regime do presidente Miguel Díaz-Canel e apresentar suas exigências. Parte do coletivo chegou a manter vigília diante do prédio governamental, na expectativa de ser recebida pelo ministro da pasta, Alpidio Alonso. Em nota oficial, o Ministério da Cultura da República de Cuba afirmou que “não se reunirá com pessoas que tenham contato direto e recebam financiamento, apoio logístico e respaldo propagandístico do governo dos Estados Unidos e de seus funcionários”.
“Não somos um governo na clandestinidade. Somos uma revolução no poder, que tem, entre suas forças mais formidáveis, a cultura, uma cultura soberana, independente e anti-imperialista desde a raiz. Com mercenários, não nos entendemos”, sustenta o comunicado, segundo o qual “permaneceram abertas as oportunidades de diálogo” com todos aqueles “que não comprometeram seu trabalho com os inimigos da nação cubana”. No mesmo comunicado, o Ministério denunciava ter recebido “um e-mail insolente, em que o grupo que se colocou como a voz de todos busca impor, unilateralmente, quem, com quem e para quê concordarão em dialogar”.
O Correio entrou em contato com Luis Manuel Otero Alcantara, fundador do Movimento San Isidro, e com membros e apoiadores do grupo. De acordo com eles, além de romper o diálogo com os artistas, o governo cubano reforçou a repressão e sitiou alguns dos integrantes em suas casas. “O regime considerou um perigo o MSI, pelo fato de conectarmos artistas e cidadania. Já fui sequestrado no meio da rua e fiquei preso durante quatro dias. Também ameaçaram a mim e à minha família”, disse Luis Manuel. “Estou em prisão domiciliar e colocaram uma câmera apontada para a porta de minha casa”, acrescentou o artista contemporâneo de 33 anos, que chegou a se apresentar em Curitiba.
Moradora de Havana, a escritora Maria Matienzo Puerto, 41, afirmou que prefere não usar a palavra “ruptura” para definir a posição do Ministério da Cultura. “Na verdade, nunca existiu um diálogo. O que está acontecendo por aqui é uma tentativa de estabelecer um espaço de negociação entre um governo totalitário e grupos independentes de artistas, jornalistas e ativistas. O governo acaba de mostrar que não está disposto nem mesmo a reconhecer a existência de grupos independentes”, comentou. “Isso ficou tácito com a negativa pública, com campanhas de difamação e com a criminalização daqueles artistas que se pronunciaram. Exigimos liberdade de associação, de expressão e de podermos criar sem que haja censura.”
Filosofia
O fundador explicou que o MSI tem, por filosofia, velar e proteger a liberdade de expressão e, em especial, as liberdades artísticas. “Nossa função principal é educar a cidadania sobre como se defender e lutar pela cultura e pela criação livres. Articular o pensamento em prol de uma nação livre”, disse Luis Manuel. De acordo com ele, o Movimento San Isidro surgiu em 12 de setembro de 2018, à raiz do decreto nº 349. “O documento bania a criação artística dentro da ilha. Tudo o que fosse criação independente precisaria da permissão do Ministério da Cultura”, comentou.
O artista contemporâneo comemora um suposto triunfo da campanha do MSI, que começou com 12 integrantes e reuniu mais de 600 em frente à sede do Ministério da Cultura. “Pela primeira vez, o regime reconheceu que se equivocou ante a cidadania. Viramos símbolo para o grêmio cultural cubano e para a política. Por causa de nós, muitos cubanos aprenderam a acreditar nas mudanças e a ter ferramentos políticas e cívicas para impulsioná-las.”
Colaborador do MSI, o jornalista independente Héctor Luis Váldes Cocho, 29, ironiza as acusações do ministro sobre vínculos entre membros e os EUA. “Nunca recebemos nem um peso de nenhum instituição ou governo estrangeiro. Somos jovens ressentidos com a política de Estado de Cuba. O governo não está preparado para conversar com 1% da sociedade civil cubana, que clama por mudança, de modo pacífico”, observou. Cocho relatou que, na manhã de ontem, foi surpreendido com vigilância extrema diante de sua residência. “Não permitem que eu saia de casa. Há dois agentes de segurança do Estado em uma viatura, do lado de fora. Lançamos uma campanha sem precedentes em prol da liberdade de expressão. Por isso, tanta repressão.”
Anamely Ramos González, 35, professora, doutoranda em antropologia e crítica de artes, afirmou que a atitude do Estado cubano “não é nova”. Há sete dias impedida de sair de casa pela polícia e detida por 12 horas na madrugada de 27 de novembro, a também colaboradora do MSI explicou que, em Cuba, todo projeto independente é visto com suspeita pelas autoridades. “O não diálogo se intensifica, à medida que as autoridades veem o outro como ameaça.”
O Correio tentou entrar em contato com o embaixador de Cuba em Brasília, José Emilliano Caballero, para que comentasse o tema. A embaixada enviou reportagens sobre o assunto, inclusive uma declaração do presidente Díaz-Canel de que o MSI é uma “farsa” e um pronunciamento da União de Escritores e Artistas de Cuba (UNEAC), o qual classifica os integrantes do MSI como “pessoas inescrupulosas” que “impõem internacionalmente uma matriz de opinião que tergiversa a realidade social e cultural” da ilha.
Vozes da cultura
“O regime cubano está a cada dia mais vulnerável. Sem soluções democráticas, o que faz é reprimir. Nós, artistas, estamos mais conectados, o que leva o regime a tremer. A única resposta que o regime tem para nós é violência e repressão. As autoridades construíram uma mentira e divulgaram que trabalho para a CIA (Agência Central de Inteligência). A repressão aumentou a níveis exorbitantes. Há uma câmera instalada a menos de cinco metros de minha casa. Quando saio, vejo policiais na esquina.” Luis Manuel Otero Alcantara, 33 anos, artista contemporâneo, fundador do Movimento San Isidro.
“O futuro do Movimento San Isidro dependerá dos integrantes do coletivo. Sou jornalista e tenho seguido o movimento desde a sua fundação. Parece-me que, até o momento, o grupo tem sido consequente com sua estética, assim para saber quais os próximos passos. A partir da criatividade e das mensagens sobre a paz… É justo que Cuba precisa se curar e viver em paz. A resposta do Movimento San Isidro atende ao acúmulo de muita tensão dentro da sociedade. Contestamos a existência de lojas que recebem dólares, enquanto a população não tem acesso à moeda americana. Também repudiamos o fato de que crianças sejam vítimas de abusos sexuais e as leis mostrem-se permissivas.” Maria Matienzo Puerto, 41 anos, escritora, moradora de Cuba e membro do Movimento San Isidro.
“O governo de Cuba faltou, mais uma vez, com sua palavra. Prometeu um diálogo entre eles e a comunidade independente. Não cumpriu com essa promessa. Nós somos artistas e jornalistas independentes. As autoridades criaram uma campanha de difamação dentro do Movimento San Isidro e da comunidade artística independente, ao dizer à sociedade que somos agentes pagos pela comunidade de inteligência dos EUA para atos subversivos dentro da ilha.” Héctor Luis Valdés Cocho, 29 anos, jornalista independente, morador de Havana e colaborador do Movimento San Isidro.
“Os jovens artistas e intelectuais cubanos têm se manifestado publicamente contra as instituições e contra a política cultural de Cuba. As nossas demandas excedem o campo da cultura. Nós exigimos liberdades sociais e cívicas. Uma de nossas demandas era a de que estivessem presentes, nas futuras reuniões, representantes de governo de outros ministérios, como as pastas da Justiça e do Interior, responsáveis pela repressão aos artistas.” Reynier Leyva Novo, 37 anos, artista visual, morador de Havana.
Fonte: CB