O ex-líder estudantil Gabriel Boric, de 35 anos, da coalizão de esquerda Apruebo Dignidad, foi eleito presidente do Chile no domingo (19/12) após derrotar, no segundo turno, o candidato da direita José Antonio Kast, de 55 anos, da Frente Social Cristiana, conhecido por suas posições mais próximas ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro.
Boric (pronuncia-se “Borich”) é definido até por seus mais ferrenhos críticos como conciliador e aberto ao diálogo. Mas esses opositores ressaltam, porém, sua “pouca experiência” e a presença do Partido Comunista em sua aliança partidária.
Já seus aliados observam que ele é “um animal político”, com “sensibilidade social”, que tem a cultura de trabalhar em equipe e a atitude de liderança.
Durante os debates presidenciais e entrevistas a imprensa antes de sua eleição, Boric chamou atenção pela circunspeção, mesmo diante de perguntas que poderiam complicar seu caminho rumo ao Palacio de La Moneda.
Foi o que ocorreu, por exemplo, no início de dezembro, quando um jornalista da emissora TVN, de Santiago, apontou para sua suposta mudança de discurso em relação a imigrantes, já que Boric passou a dizer que expulsaria os ilegais, ato que antes reprovava enfaticamente.
O Chile tem recebido um grande contingente de imigrantes venezuelanos. “Não serei como Donald Trump. Esse é um assunto humanitário. Mas temos que construir passagens para a imigração na fronteira e os que chegam devem ter vistos emitidos em seus países de origem”, disse Boric, buscando tom moderado.
Uma de suas frases emblemáticas é: “Sou partidário de que a imprensa tem que incomodar o poder.”
Seu desafio, durante a reta final da campanha presidencial, foi demonstrar e convencer que também governará para o eleitorado de centro e de direita.
“Gabriel tem um perfil de candidatura ligada à juventude e representa a esperança. Mas nenhuma pessoa ganha uma eleição só com seu nicho e Gabriel sabe disso. Por isso, ele aborda também assuntos como a segurança pública e a imigração”, disse a professora de ciências políticas da Universidade Diego Portales Carolina Garrido Silva, da Rede de Politólogas da América Latina, em entrevista à BBC News Brasil antes da vitória de Boric.
Agora eleito, Boric já deu sinais de que está aberto ao diálogo. Em seu discurso de vitória no domingo, acabou surpreendendo apoiadores ao dizer que, em seu governo, conversará, inclusive, com o candidato derrotado, Kast.
“Nosso objetivo é o bem-estar dos chilenos e para isso precisaremos dialogar com todos os setores”, disse.
O ex-líder estudantil também disse que “a esperança venceu o medo”, sinalizou o rumo que pretende dar ao seu governo, com diálogo com os diferentes setores, a busca do “crescimento com distribuição justa”, mais espaço para as mulheres e o feminismo, um cuidado maior com o meio ambiente e o fim da impunidade contra a violência e a corrupção.
Imigração e segurança
Quando perguntado qual foi seu erro na campanha no primeiro turno, Boric disse que foi não ter destacado a questão da segurança em seu programa de governo. A segurança foi uma das principais bandeiras de seu adversário político.
Mas apesar de ressaltar esses temas — imigração e segurança, além de maior foco na economia e na geração de emprego —, Boric disse que, caso eleito, o papel do governo e do Estado é fazer com que “as leis sejam respeitadas”. “Sim, não podemos apoiar o vandalismo”, disse posteriormente, em outra mensagem para os que não o apoiaram.
Mas o ex-líder estudantil deixou claro que não pretende seguir a linha defendida pelo governo atual do presidente Sebastián Piñera e por Kast com, por exemplo, a forte presença e repressão por parte de policiais militares no sul do país, onde existe conflito por terras envolvendo mapuches.
Em entrevista à BBC News Brasil antes da vitória de Boric, o ex-candidato Marcos Enríquez Ominami, que recebeu quase 8% da votação e apoiou o esquerdista no segundo turno, disse que o presidenciável é “pragmático”, “homem de diálogo, moderado e um animal político”.
Boric e Ominami se reuniram no dia seguinte ao primeiro pleito, quando o presidenciável iniciou a busca de apoio para além da sua base.
Líder estudantil
Deputado em seu segundo mandato, Boric, com antepassados da Croácia e da Catalunha, foi presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile e um dos rostos simbólicos das manifestações dos jovens chilenos em defesa da educação e por uma nova constituição. Apesar de ter recebido reformas em tempos democráticos, a Carta Magna em vigor data de 1980, da época do ditador Augusto Pinochet (1915-2006).
Diante das pressões daquele tsunami de manifestações, em 2019, e após a realização de um plebiscito, que contou com respaldo de Boric e rejeição de Kast, foi instaurada uma Assembleia Constituinte que discute a nova Constituição do Chile. O perfil da Assembleia, presidida por uma líder indígena e com quantidade igual de cadeiras para homens e mulheres, era visto como mais associado ao ex-líder estudantil do que ao seu opositor derrotado.
Sua escolha para disputar a Presidência, numa convenção que parecia ter o então pré-candidato do Partido Comunista, Daniel Jadue, como preferido, surpreendeu setores da política chilena.
Feminista
Após o resultado do primeiro turno, quando recebeu 25,8% dos votos contra 27,9% de Kast, Boric falou aos chilenos rodeado de mulheres, num claro sinal de seu respaldo aos movimentos feministas e a maior presença feminina nas decisões políticas e no âmbito do trabalho.
Inicialmente, pesquisas de boca de urna apontavam que ele venceria o opositor da direita no segundo turno, mas outras indicavam empate, possível contagem voto a voto e resultado incerto.
Boric acabou surpreendendo e obteve mais de 55% dos votos, contra 45% de Kast.
Analistas creditam a virada, entre outro fatores, à conquista de um eleitorado mais moderado.
Foi o que aconteceu, por exemplo, quando Boric exibiu satisfação pública com o apoio de políticos mais tradicionais no país.
Caso do ex-presidente de centro-esquerda Ricardo Lagos, que ganhou forte notoriedade ao dizer “não”, erguendo o dedo indicador, à continuidade de Pinochet, no plebiscito de 1988, e governou o Chile entre 2000 e 2006. Na sua gestão, Michelle Bachelet, atualmente nas Nações Unidas, foi ministra da Defesa e depois sua sucessora na Presidência.
Boric disse que, apesar de diferenças com Lagos, o respeita, e não só por aquele “não” que o emociona cada vez que lembra dele, afirma.
A aproximação foi vista como mais um gesto da sua guinada ao centro, apesar do desgaste da coalizão Concertación, da qual Lagos e Bachelet fizeram parte e que confirmou a fraqueza do centro nesta eleição presidencial, com dois candidatos extremamente opostos — Boric e Kast.
Os setores mais à esquerda viram com ressalvas essa simpatia por políticos históricos com ideologia mais de centro. Além de Lagos, Boric passou a contar com o apoio da candidata de centro Yasna Provoste, da Democracia Cristiana (DC), que fez parte da Concertación.
A interpretação é que os protestos de 2019 marcaram o caminho de uma “ruptura” com a política tradicional e os governos de centro-esquerda, mas que a reta final para a chegada à Presidência evidenciou a necessidade de Boric de ampliar o espectro político.
Aquelas manifestações, que levaram à convocação do plebiscito para a realização da Assembleia Constituinte, ocorreram na emblemática Praça Itália, onde está a imagem do militar chileno Manuel Baquedano, protagonista das principais guerras em que o Chile esteve envolvido no século 19.
Criticá-lo era algo quase impensável antes das manifestações de 2019, quando sua estátua acabou sendo retirada da praça.
Na entrevista na TVN, ao ser questionado sobre quem deveria estar na praça, Boric disse que sabia da importância do militar para a história do país, mas que ali poderia estar a escritora Gabriela Mistral — poetisa e Prêmio Nobel de Literatura.
E outra vez lançou mão de seu perfil conciliador. “Mas essa é uma opinião pessoal minha e tudo pode ser dialogado.” (Por BBC)