Seis meses depois, mais de 1,6 bilhão de doses foram aplicadas. A maioria delas, porém, em braços de habitantes de países ricos
Em dezembro do ano passado, uma britânica então com 90 anos fez história ao receber a dose que inaugurou a vacinação contra a Covid-19 no mundo. Seis meses depois, mais de 1,6 bilhão de doses foram aplicadas. A maioria delas, porém, em braços de habitantes de países ricos.
Com 15% da população mundial, esses países concentram quase metade das vacinas disponíveis. Enquanto um terço de seus habitantes recebeu ao menos uma dose, nas nações pobres a proporção é de apenas 0,2%.
Assim como ocorreu com o acesso a respiradores e máscaras ao longo da pandemia, os países que tinham mais recursos e poder na geopolítica global chegaram primeiro e reservaram para si a maior parte dos imunizantes disponíveis. As primeiras compras foram feitas pelos EUA e pelo Reino Unido em maio de 2020, quando as vacinas ainda estavam em desenvolvimento.
“Isso cria uma reserva de mercado. Os países disputam quem vai sair antes da crise econômica, e os que se posicionaram estrategicamente entraram na frente na fila da vacina, que é fundamental para essa retomada”, diz o médico sanitarista Ulysses Panisset, da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), especialista em cooperação internacional na área da saúde.
Como resultado, os Estados Unidos, por exemplo, têm quantidade suficiente para vacinar três vezes sua população e o Canadá comprou 10 doses por habitante. Enquanto isso, países como Guatemala, Honduras e Mali não imunizaram nem 1% de seus moradores, e seis países africanos nem começaram suas campanhas.
O cenário é o que o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, definiu, na última semana, como “apartheid das vacinas”. Adhanom, que também classificou a situação como um “fracasso moral catastrófico”, fez um apelo para que os países doem parte de seus excedentes ao Covax Facility, consórcio global criado para distribuir os imunizantes aos países de renda baixa e média.
E não somente por altruísmo. Cientistas alertam que a reserva de doses pode se voltar contra os mais ricos.
Se o vírus continuar circulando descontroladamente, pode sofrer mutações que resultem em variantes mais perigosas, como a B.1.617, que surgiu na Índia. Essas variantes se espalham pelo mundo e podem ser, eventualmente, resistentes às vacinas.
Em suma, o chamado “vacinacionalismo” pode vir a ser contraproducente inclusive para aqueles países com imunização eficiente.
“Só estaremos seguros quando todos estiverem seguros”, diz Joan Costa-i-Font, professor de economia da saúde na London School of Economics. “Uma variante pode surgir a qualquer hora. Isso não pode ser uma competição entre ganhadores e perdedores.”
Costa-i-Font, que considera a reserva excessiva de vacinas um “autointeresse míope”, afirma que esses países “logo vão perceber que, para que suas economias se recuperem, seus vizinhos e parceiros comerciais também precisam ficar livres do vírus.”
“Na Europa, isso é uma preocupação muito forte atualmente”, diz o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, pesquisador da USP e da Universidade de Paris. “Na França, por exemplo, há muito intercâmbio com países da África francófona. Deixar o vírus circulando nos países pobres pode derrubar a estratégia de vacinação de todo mundo”, afirma.
Para Dourado, o abismo entre os países no acesso à imunização já era esperado. “A lógica da vacina é a lógica de mercado. Os países centrais têm mais recursos e capacidade de produção, e os periféricos dependem de doações.”
Ele faz uma analogia com a fome no planeta. “Tem comida suficiente para todo mundo, mas continua havendo fome. Da mesma forma, em breve teremos vacinas suficientes para imunizar o mundo inteiro, mas não significa que vão ser bem distribuídas.”
Até o fim de 2021, estima-se que a indústria farmacêutica consiga produzir 11 bilhões de doses, o suficiente para a população adulta mundial, diz um documento divulgado na última quarta-feira (19) por associações profissionais do setor na Europa e nos EUA.
Com a meta de distribuir 2 bilhões de doses ao longo de 2021, o Covax Facility só conseguiu entregar 70 milhões até agora, 100 milhões a menos do que o previsto.
O recente agravamento da pandemia na Índia, de onde viria mais da metade das doses para o consórcio, atrasou o cronograma. Em março, o Instituto Serum, maior fábrica de vacinas do mundo, suspendeu as exportações para atender à demanda interna. Com isso, o déficit de doses para o Covax deve chegar a 190 milhões até o fim de junho.
Questionada pela Folha, a Aliança de Vacinas Gavi, que está à frente do Covax junto com a OMS, afirmou que mantém a meta inicial e busca atendê-la diversificando o portfólio de vacinas por meio de acordos com mais sete fabricantes. A iniciativa tenta conseguir mais doações de entidades filantrópicas e governos e precisa de ao menos US$ 1,6 bilhão até junho.
Segundo um estudo financiado pelo Unicef, o Covax ganharia 153 milhões de doses se os países do G7 e da União Europeia doassem 20% de suas reservas de junho, julho e agosto, sem prejuízo à imunização de suas populações. Só o excedente do Reino Unido poderia vacinar 50 milhões de pessoas em países pobres.
A OMS também pediu que esses países abram mão de imunizar crianças e adolescentes, menos propensos à Covid-19 grave, para destinar as doses aos grupos de risco em países pobres.
França e Alemanha reagiram à pressão da OMS anunciando, nesta sexta-feira (21), a transferência de 60 milhões de doses ao Covax. O presidente francês, Emmanuel Macron, falou em um “multilateralismo vacinal”.
Em abril, os EUA haviam anunciado o envio de 80 milhões de doses para o exterior, mas não definiram ainda para quais nações as remessas serão encaminhadas.
O presidente Joe Biden tenta ganhar espaço na diplomacia da vacina, hoje comandada pela China, que já exportou 35% de sua produção e tem feito doações especialmente para países africanos.
Alguns prefeitos de cidades americanas, porém, optaram por usar seu excedente para aquecer a retomada do turismo. Miami está vacinando visitantes no aeroporto, e Nova York anunciou a imunização de viajantes em atrações icônicas como o Central Park.
É o chamado turismo da vacina, que tem sido um chamariz inclusive para brasileiros, mesmo com a exigência de que façam quarentena de 14 dias em outro país antes de entrar em território americano.
Para Daniel Dourado, é uma prática que sozinha não desequilibra o sistema, mas acaba reforçando a desigualdade. “Do ponto de vista individual, de quem viaja, pode até haver um dilema moral, mas não vejo problema ético. A discussão maior é em relação aos governos que promovem isso, reforçando a lógica de ter vacina para quem tem mais dinheiro, e não para quem mais precisa.”
Além da doação de doses, outras soluções são discutidas para reduzir a desigualdade no acesso às vacinas. Uma delas é a suspensão das patentes desses produtos enquanto durar a pandemia, proposta na Organização Mundial do Comércio por Índia e África do Sul e apoiada por mais de 110 países, incluindo os EUA.
Os críticos à medida dizem que ela acabaria com o incentivo à inovação pelas farmacêuticas, geraria uma queda na produção e não resolveria o problema, já que os imunizantes são de alta complexidade, e pouquíssimos países conseguiriam fabricá-los apenas com a “receita” em mãos.
Mas há quem defenda que a quebra das patentes, especialmente das vacinas de tecnologia mais simples, pode ser útil em médio prazo —até porque existe a possibilidade de que a imunização contra Covid-19 tenha que ser recorrente.
“Precisamos de uma combinação de ações. A doação é o que vai resolver agora, mas a quebra de patentes e a transferência de tecnologia também são fundamentais”, diz Ulysses Panisset, da UFMG.
Para ele, falta também mais investimento em novos imunizantes, inclusive no Brasil. “O Brasil é um dos poucos países com um parque de produção de vacinas e tinha condições de ter investido mais. Teríamos que ter sido mais estratégicos nos primeiros momentos [da pandemia].”
As informações são da FolhaPress