FILHOS ÓRFÃOS DE PAIS VIVOS
Maria José Rocha Lima*
No último domingo, Brasília foi palco de um espetáculo de covardia protagonizado por pais de um menino que teriam segurado uma criança de seis anos para que o filho lhe batesse na cara. Tudo aconteceu durante uma partida de futsal entre crianças na quadra de um condomínio, na Octogonal. A criança, ao dar um drible com a bola, caiu e se machucou, em seguida correu para casa. Minutos após a queda, o pai do menino machucado o conduziu na direção de uma criança de seis anos, imobilizando-a para que o seu filho lhe batesse. O menino ferido bateu no rosto do colega; em seguida, a sua mãe empurrou o garoto, que já havia levado um soco. E, pior, tudo não passou de um mal-entendido, a criança se machucara sozinha.
Em imagens exibidas no Fantástico do último domingo, enquanto a agressão acontecia, as outras crianças ficaram acuadas próximo às grades da quadra. Algumas delas apareceram chorando. A tia do menino agredido registrou um boletim de ocorrência na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), denunciando a agressão contra o sobrinho, um baianinhoque veio a Brasília visitar parentes. A agressão psicológica que o baiano sofreu é traumatizante, mas o menino forçado a batê-lo não fora menos prejudicado. Ele foi fortemente afetado pelo mau exemplo dos seus pais. Poderá vir a ser um dos milhões de órfãos de pais vivos, porque os pais são a primeira referência para o comportamento da criança, portanto é comum que imitem deles não só o jeito de falar, como também gestos, atitudes e hábitos.
Por isso, servem de alerta as formulações, bem atuais, do psicanalista argentino Sérgio Sinay, na sua obra Sociedade dos Filhos Órfãos (2012). Sinay compreende que há crianças e adolescentes vitimados por várias orfandades: emocional, ética, normativa, entre outras. A esses órfãos não é dado o direito de internalização das regras de conduta e menos ainda a oportunidade de aprender sobre o cumprimento das leis.
Os órfãos de pais vivos são vítimas de pais despreparados que vivem a transgredir as leis, sem preocupação com o mau exemplo no qual se constituem para os seus filhos.
Também como Sinay, não podemos entender como naturais os comportamentos de crianças e jovens que se matam entre si; vão às escolas para disputar e se maltratar e não para aprender; que criam mundos isolados, que os seus próprios pais desconhecem; que conversam mais com vendedores de álcool e com traficantes de drogas do que com os seus pais. Tudo isso não é natural, mas o resultado de uma falta de modelo, da falta de fontes das quais eles possam retirar os recursos emocionais e afetivos para a interação social.
Essas tragédias que afetam as crianças não são fenômenos naturais, não são resultados do azar, mas sim de um tipo de vínculo humano. Muitos desses órfãos foram afetados por comportamentos de adultos que naturalizam pagamento ou recebimento de suborno; atravessam o sinal vermelho, alegando pressa; ultrapassam os limites de velocidade; avançam, sem dó, pelos acostamentos; jogam lixo onde é mais cômodo; furam filas, enfim burlam todas as normas e fogem de todos os seus deveres. Aliás, em muitos casos, são pais que ensinam a transgressão da lei, como o fez o pai do menino de Brasília.
Na sociedade atual, crescem geometricamente o número de crianças que vivem à deriva, entregues a pais que não têm maturidade, que não lhes servem de exemplo. Os órfãos de pais vivos nunca se tornam adultos e provocam tragédias de todos os tipos, tanto na vida pública, como na vida privada. Sem internalizarem a lei, são flagrados bêbados ao volante; dirigem sem responsabilidade; participam de grupos de depredadores, quebram por quebrar; brigam por brigar; enganam por diversão; sujam por sujar, em constante desafio público, reproduzindo a conduta doméstica. Essas crianças e adolescentes vítimas da orfandade de pais vivos estão à deriva, abandonados a um destino incerto. Temos os órfãos mais pobres literalmente abandonados e excluídos, não só por familiares, mas pelos políticos e empresários corruptos, que já estão pagando a conta, com a tremenda onda de violência que afeta toda a sociedade. E temos os órfãos que vivenciam uma orfandade de outro tipo, como o garoto obrigado pelos pais a espancar o colega. A estes são ofertados bens materiais, bons colégios, mas não conhecem frustrações, perdas, impossibilidades. São crianças e adolescentes que estão cercados de adultos que se comportam tão infantilmente quanto eles. São pais que podem ser bem- sucedidos, poderosos, admirados, mas se recusam a amadurecer. Eles estão mais preocupados em parecer jovens, usando roupitas infantis; realizando procedimentos estéticos; se encharcando de bens; enchendo a agenda de atividades; tomando todos os tipos de fármacos e às vezes outras drogas; freqüentando terapias, mas têm pavor da responsabilidade de criar, educar, orientar, limitar, dar ordens aos filhos. Aliás, nem sabem lhes dar ordens. São pais que ostentam filhos, fantasiando maternidade e paternidade como quem brinca de boneco. São pais e mães que não estão preparados para transmitir valores através do exemplo. Eles são pais e mães que não têm condições de oferecer recursos emocionais, recursos íntimos, com os quais os seus filhos possam construir relacionamentos saudáveis e vidas com responsabilidade. Por tudo isto, mais do que lamentar o ato covarde dos pais do garoto de Brasília, precisamos reagir, mobilizando pessoas, autoridades, para o enfrentamento da grave crise do modelo social vigente, que reduz a importância da família, que transformou a maternidade e paternidade em meros atos de procriação, como adverte Sérgio Sinay. Precisamos retomar os valores de respeito à vida, à humanidade, cultivando, entre as crianças e adolescentes, a fraternidade, a humildade, a cortesia, a responsabilidade e a solidariedade.
*Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em Educação. Ex-deputada estadual pela Bahia (1991 a 1999), preside a Casa da Educação Anísio Teixeira em Brasília.