- Author, Fábio Corrêa, Role, De Belo Horizonte para a BBC News Brasil
As algemas nos braços e nas pernas durante o longo voo desde Alexandria (EUA) não assustaram Benny Shelter, de 51 anos. Ele diz que também não temeu a arriscada travessia na fronteira com o México.
Ambas as experiências tampouco foram novidade para o brasileiro, que desembarcou no Brasil na sexta-feira (7/2) após ter sido deportado pelas autoridades americanas, menos de três meses depois de passar pela mesma situação.
O mineiro nascido em Frei Gaspar, na região do Vale do Mucuri, conta que foi surpreendido pela polícia de imigração dos Estados Unidos pela primeira vez em agosto do ano passado, ainda durante o governo Joe Biden.
Ele diz que pagou cerca de 25 mil dólares (R$ 144 mil, na cotação atual) para fazer a passagem clandestina por terra com os coiotes. Shelter relata que atravessou o rio e chegou ao Texas, nos EUA, sem ser pego pelas autoridades.
De lá, ele esperava ir de carro até Boston, onde tinha vivido entre 2017 e 2022, como trabalhador da construção civil.
Mas o coiote sugeriu que ele pegasse um avião do Texas até Nova York.
Ao chegar no aeroporto, Shelter foi detido — e, depois de 59 dias na prisão, acabou mandado de volta ao Brasil, num voo que chegou ao país em 18 de outubro de 2024.
Shelter conta que, um mês e meio depois, repetiu a dose.
“Em 1º de dezembro, embarquei para o México, onde fiz novamente a travessia clandestina até o outro lado da fronteira.”
“Porém, cometi, a mando do coiote, o mesmo erro.”
Shelter diz que, no aeroporto, caiu de novo nas garras da imigração americana.
“Para ganhar 50 dólares a hora, quem não arrisca? São R$ 300. Aqui eu ganho R$ 250 por dia, com onze horas de trabalho. Lá, já ganhei 500 dólares em um só dia”, contou ele à reportagem da BBC News Brasil, no Aeroporto de Belo Horizonte (MG).
Shelter estava no avião que chegou ao Brasil nesta sexta-feira (7/2), que trouxe 111 compatriotas deportados dos EUA.
Diferentemente do primeiro voo despachado no início do governo Trump, no dia 24 de janeiro, desta vez os brasileiros deportados desceram em Fortaleza (CE), onde os passageiros do sexo masculino puderam tirar as algemas — crianças e mulheres não viajaram algemadas, segundo o governo brasileiro.
De lá, 88 pessoas seguiram viagem para Minas Gerais, destino de grande parte delas, em um avião da Força Aérea Brasileira (FAB).
De acordo com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, entre os brasileiros que embarcaram em Alexandria, nos EUA, a maioria (71) eram homens desacompanhados.
Além deles, havia 12 mulheres desacompanhadas e 28 pessoas em núcleos familiares, incluindo oito na faixa etária entre zero e 10 anos de idade.
O menor grupo, com 4 pessoas, incluía os brasileiros acima dos 50 anos. Um deles era Shelter.
Na capital mineira, os repatriados foram recepcionados pela ministra dos Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, e levados a um posto de acolhimento com água, internet e alimentação.
Eles receberam do governo de Minas Gerais um kit de alimentos, água, manta e itens de higiene.
“Para os Estados Unidos, eles são deportados. Para nós, são repatriados. Estão chegando em casa. E o que estamos fazendo é garantir que, nessa chegada, essas pessoas sejam tratadas como qualquer uma de nós nesse processo e que tenham um acolhimento”, afirmou Evaristo, em entrevista coletiva no Aeroporto de Belo Horizonte.
O Sistema S — conjunto de nove serviços sociais autônomos de interesse de categorias profissionais — também disponibilizou acomodação em suítes com ar condicionado e alimentação aos deportados que manifestassem a necessidade de permanecer na capital mineira nos próximos dias.
O transporte foi providenciado pela Federação do Comércio, Serviços e Turismo de Minas Gerais.
Dos 88 brasileiros que desembarcaram em Belo Horizonte, dez seguiram para as acomodações.
Agora são conduzidas entrevistas com os repatriados, para encaminhá-los a cursos profissionalizantes no Sebrae e no Senac, caso haja interesse.
De acordo com a ministra dos Direitos Humanos, o Ministério do Trabalho também foi acionado para auxiliar o grupo com recolocação profissional, por meio do Sistema Nacional de Emprego (Sine).
Operação acolhida
A operação para receber os deportados, construída numa articulação do governo federal com governos estaduais, municípios e organizações da sociedade civil, ocorreu depois do mal-estar diplomático causado pelo voo anterior, em janeiro, o primeiro enviado pelo novo mandato de Trump.
A aeronave enfrentou problemas com o ar condicionado e fez uma parada em Manaus (AM), durante a qual os passageiros, ainda com algemas, abriram a porta de emergência e desceram por uma ponte inflável.
No episódio, também ocorreram denúncias de agressões, que estão sendo apuradas pela Polícia Federal.
Eleito com a promessa de apertar o cerco contra os imigrantes, Trump já afirmou que pretende mandar para casa 1 milhão de estrangeiros sem documentos que estão nos EUA.
Dados do instituto Pew Center de 2022 estimaram em 11 milhões o total de estrangeiros que vivem irregularmente nos Estados Unidos — entre eles, 230 mil brasileiros.
Um levantamento feito pelo Itamaraty no mesmo ano apontou que a comunidade brasileira no país engloba um contingente de 1,9 milhão de pessoas.
Segundo a Polícia Federal (PF), um total 7.637 cidadãos do Brasil foram repatriados nos últimos cinco anos.
Eles retornaram em 94 voos fretados pela agência de imigração dos Estados Unidos, a ICE. A PF só começou a divulgar esses números em 2020.
Em 2020, ano em que Trump intensificou as deportações por causa da covid-19, foram 1.138 brasileiros enviados de volta, em 21 viagens.
Em 2021, no primeiro ano de governo de Joe Biden, houve o maior número de repatriados, com 2.188, que retornaram ao país em 24 voos.
Já no ano passado, foram 1.648 brasileiros, que retornaram em 16 aviões.
No geral, levadas em conta todas as nacionalidades, Trump deportou mais estrangeiros do que Biden, levando em consideração apenas o primeiro mandato do republicano.
De acordo com a ICE, 953,3 mil imigrantes sem visto foram enviados para casa entre 2017 e 2020, período em que Trump esteve na Casa Branca.
Já com Biden foram 545 mil, mas com um aumento significativo ao longo dos quatro anos do seu governo — foram 59 mil em 2021 ante 271 mil no ano passado.
‘Voltaria mil vezes’
Shelter conta que, durante o voo do ano passado, quando voltou deportado pela primeira vez, também houve discussão com os oficiais da imigração que não queriam liberar os detidos para ir ao banheiro.
“Mas agora foi tranquilo, porque o Lula mandou uma mensagem dizendo que brasileiro não é porco e tem que ser tratado igual os americanos. Porque somos seres humanos como eles também”, diz.
No total, o brasileiro teria empreendido quatro vezes a mesma travessia clandestina entre México e Estados Unidos — em 2005, ficou dois anos no exterior, e em 2017, ficou mais cinco.
Ele diz que trabalhou no ramo da construção civil e voltou ao Brasil por iniciativa própria nessas duas ocasiões.
Da primeira vez, há vinte anos, ele resolveu viver no país por “curiosidade”, depois de uma temporada de trabalho na Espanha e em Portugal.
Entre idas e vindas, Shelter passou cerca de dez anos em território americano, nunca com um visto.
Apesar das privações de sono e comida e de ter ouvido relatos de assassinatos sofridos nas travessias, ele diz nunca ter sentido medo.
“Achei maravilhoso, por todos os lugares e pessoas que conheci. É, para mim, um ‘safari’ humano”, acrescenta ele.
Segundo Shelter, no entanto, a situação piorou neste início de segundo mandato de Trump.
“Em 2017, quando fui pela segunda vez, era difícil, mas agora está mais ainda, porque ele [Trump] usou a imigração para ganhar [a eleição]. Eu tentaria voltar de novo outras mil vezes, mas não enquanto ele estiver no poder. A Kamala Harris seria muito melhor do que ele”, afirma.
Do aeroporto, o mineiro comprou uma passagem de ônibus até a rodoviária de Belo Horizonte, onde planejava ficar durante a noite.
“Estou com a roupa do corpo, há 40 dias sem tomar banho”, despediu-se ele, antes de seguir mais uma viagem — desta vez para casa, em Campanário (MG), na região do Vale do Rio Doce, a cerca de 8 horas de ônibus da capital mineira.