A segurança da vacina para a Covid em desenvolvimento na Rússia e a veracidade de seus dados foram colocadas em xeque após o governo dizer que pretende vacinar a população já em outubro.
A produção da vacina a partir de setembro, antes da conclusão de todos os testes e da divulgação dos resultados que comprovem eficácia e segurança, gerou críticas de especialistas, além de desconfiança.
A Rússia não é o único país a prometer uma vacina ainda este ano. Na China, o Exército aprovou o uso limitado da vacina da CanSino em seus militares pelo período de um ano. Os EUA fecharam acordo para compra de 100 milhões de doses da vacina da Pfizer que está sendo desenvolvida com a BioNTech até o final de 2020.
A Rússia, porém, foi a primeira a anunciar a vacinação em massa nos próximos meses. A imunização, desenvolvida pelo Instituto Gamaleya, ainda está em fase 2 de ensaios clínicos. Ao todo, há 27 vacinas em fase de testes em humanos, das quais seis estão em fase 3 (a última antes da aprovação), e 139 em estudos pré-clínicos (em animais), segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde).
Para a bióloga Natália Pasternak, pesquisadora do ICB-USP e presidente do Instituto Questão de Ciência, a falta de transparência é malvista e não representa boa prática científica. “Todas as vacinas sérias feitas por empresas e universidades de renome estão comprometidas com a transparência. Isso não foi feito com a vacina da Rússia, que para nós, cientistas, não existe. Não sabemos nada sobre ela, qual é a tecnologia empregada, os resultados da fase pré-clínica. Não foi feita uma publicação”, diz.
Pasternak afirma que, mesmo com atrasos, os ensaios pré-clínicos e resultados das fases 1 e 2 das outras vacinas em desenvolvimento foram publicados em revistas científicas prestigiadas, que têm um sistema de revisão por pares.
Das vacinas em fase 3, a da empresa chinesa Sinovac, cujo acordo com o Instituto Butantan visa a produção de até 100 milhões de doses no Brasil, é a única que foge a essa regra. “Me preocupa a falta de publicação dos resultados das fases 1 e 2 da Sinovac. Embora as declarações da empresa e do diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, sejam de resultados satisfatórios, nós [cientistas] gostaríamos de ver esses resultados”, diz Pasternak.
O fato de vacina estar na última fase de testes não é garantia de que ela irá funcionar, apesar das publicações de artigos que atestem sua eficácia.
Luciana Leite, diretora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan, diz que a aceleração das fases 1 e 2 está sendo aplicada em diversos países, mas não dá para falar em usar a vacina sem terminar a fase 3, que pode durar até um ano. E, mesmo após essa etapa, o acompanhamento não para.
“Temos depois a fase 4, ou de fármaco-vigilância, sem prazo definido. Alguns efeitos são tão raros que só observamos quando o fármaco é usado em milhões de indivíduos, não aparecem em testes com mil, 2.000 ou 10 mil pessoas”, diz.
Ela diz que até é possível que a Rússia tenha vacina em curto prazo, mas tudo depende de quão restritivos ou permissivos são os órgãos regulatórios do país. Para Leite, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regulamenta todos os medicamentos e vacinas produzidos ou importados no Brasil, é minuciosa para permitir a produção de vacinas, até para fármacos produzidos fora do país.
Além disso, a produção acelerada enfrenta uma barreira no órgão sanitário. “No Brasil podemos ficar tranquilos porque a Anvisa, e quem trabalha na área de produção de vacinas sabe, é muito rigorosa.”
No pedido de ensaio fase 1/2 feito pelo Instituto Gamaleya (disponível no site clinicaltrials.gov), a vacina experimental em teste possui dois componentes: um formado pelo adenovírus 26 e outro pelo adenovírus 5. O adenovírus 26 é um vírus causador de gripe em chimpanzés e é o mesmo usado pela farmacêutica Johnson & Johnson (J&J), atualmente em fase 1/2. A Universidade de Oxford criou o próprio vetor viral, chamado ChAdOx1, a partir de um adenovírus de chimpanzés.
Já o adenovírus 5 (Ad5) é um vírus da gripe comum em humanos. Tradicionalmente, vacinas com adenovírus usam essa forma do vírus, como é o caso da chinesa CanSino.
“O Ad5 é o mais comum para produção de vacinas porque foi o primeiro a ser usado [para vacinas] e avançou muito bem nos primeiros testes. O problema é que vacinas com o Ad5 podem não funcionar bem em pessoas que já têm anticorpos contra ele”, diz Leite.
As vacinas com adenovírus são chamadas de “vivas” ou atenuadas. Outras vacinas usam o vírus inativado. É o caso da vacina da Sinovac.
A tríplice viral (sarampo, caxumba e rubéola) e a da febre amarela são vacinas atenuadas largamente utilizadas. Já entre as vacinas inativadas destacam-se as da raiva, da pólio e a contra a gripe Influenza.
Segundo Leite, vacinas inativadas apresentam melhor resposta imune humoral –ou imediata, relacionada à produção de anticorpos. Até o momento, todas as vacinas contra a Covid-19 em fase 3 e cujos resultados foram divulgados induziram à criação de anticorpos neutralizantes. Esse tem-se mostrado um ponto favorável na eficácia das vacinas, embora não se saiba ao certo por quanto tempo essa resposta permaneça no corpo.
Já a resposta imune celular é mais lenta, mas mais duradoura. As vacinas vivas ou atenuadas tendem a produzir melhor resposta celular, afirma. Nas vacinas inativadas adicionam-se adjuvantes, como o hidróxido de alumínio, para ajudar nessa resposta celular.
As vacinas da Oxford, J&J e Moderna mostraram bons resultados para a presença de linfócitos T nos voluntários.
Para Leite, as vacinas na fase 3 são promissoras, e não deve haver politização ou receio. “No Brasil, não é só o movimento antivacina, tem a questão política. Vamos ver na hora que tivermos a vacina se os governos vão bancar e apoiar.”