Embora tenham mais escolaridade que os homens, pesquisadoras ainda são minoria nos postos de liderança
Na semana do Dia Internacional da Mulher, o Correio ouviu diferentes cientistas para entender os desafios no campo da liderança do setor – (crédito: Comunicação Butantan/Divulgação – Hospital Marcelino Champagnat/Divulgação)
Dois anos após o surgimento da pandemia do novo coronavírus, os nomes de mulheres à frente de iniciativas científicas se multiplicam no Brasil e no mundo. Seja no comando de grupos que fazem sequenciamento genético do vírus, na internet para fazer divulgação científica, ou na área de pesquisas para entender como o vírus ataca os diversos sistemas do corpo humano, as cientistas e pesquisadoras mostraram que vieram para ficar e ocupar cada vez mais os espaços de liderança na área da ciência que são, ainda, em sua maioria, preenchidos por homens.
Ainda que o Relatório de Ciência da Unesco 2021 aponte que cerca de 54% dos títulos de doutorado do Brasil nos últimos anos foram concedidos a mulheres, ainda é mais difícil ver essas profissionais nos cargos de liderança científica. Na semana do Dia Internacional da Mulher, o Correio ouviu diferentes cientistas para entender por que isso ainda acontece.
A coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), Cristina Baena, entende que um dos motivos é a redução da longevidade da mulher na carreira da ciência. “Quando a gente olha a proporção de alunos na pós-graduação, exceto em algumas áreas específicas, a maioria é de mulheres, mas quando você olha ao longo da carreira, a longevidade da mulher nessa área da ciência é menor. Ao longo do tempo, a pesquisadora vai sumindo do cenário e é por isso que quando você olha para os cargos de liderança é mais raro encontrá-las”, aponta.
Para a pesquisadora, um dos motivos é a forma desigual como a falta de investimento e valorização da pesquisa no Brasil atinge homens e mulheres. “A formação, pós-graduação, mestrado e doutorado não é vista como trabalho no Brasil. Essa dificuldade se torna mais intensa no cenário feminino, já que a mulher tem que assumir a obrigação de sustentar a casa, de criar o filho e viver isso com uma bolsa de mestrado e doutorado é praticamente impossível”, explica.
A própria carreira de Cristina na área de pesquisa precisou ser adiada por mais de 10 anos. “Me formei com 25 anos e logo na sequência engravidei e tive um filho. E naquele momento e durante alguns anos, conciliar o papel de mãe, com o papel de provedora da casa, de profissional, e de esposa, não era compatível com a continuidade da minha formação para pesquisa, que era uma coisa que eu queria muito”, relembra.
Multitarefas
Para a vice-diretora do centro de desenvolvimento científico do Instituto Butantan, Maria Carolina Sabbaga, essa característica e estereótipo de multitarefas que a mulher tem dificulta a continuidade dentro da carreira de pesquisadora. “A nossa profissão de cientista exige muita disciplina porque é diferente de uma profissão que você atende uma demanda específica e quando tem essa face multitarefas encontrar essa disposição é mais difícil”, analisa.
Na visão dela, o estereótipo reverso criado sobre o homem o liberta de pressões sofridas pela mulher. “Quando a sociedade fala que o homem não consegue fazer muitas coisas ao mesmo tempo, você liberta ele, enquanto a mulher está com a pressão de fazer várias coisas ao mesmo tempo”, completa Sabbaga. “A gente sente isso [as dificuldades] nos detalhes. Você sente isso quando você entra em uma reunião e só tem homens, quando você sabe que tem mais legitimidade para falar de um assunto e chamam um homem para falar daquele mesmo tema”, critica.
Feitos
Apesar de todas as dificuldades, as cientistas e pesquisadoras têm alcançado importantes feitos durante toda a pandemia. Junto com outras três mulheres, Sabbaga, que dirige o centro de desenvolvimento científico do Butantan, o qual agrega vários laboratórios de pesquisa do instituto paulista, montou do zero um laboratório para realizar o diagnóstico de casos de covid-19 e, em 2021, uma rede de sequenciamento genético do vírus.
“O papel das mulheres na pandemia da covid foi brilhante. Aqui no Butantan, a gente construiu um laboratório do zero a quatro mãos e eram quatro mulheres, duas do controle de qualidade e duas do desenvolvimento científico, que arregaçaram a manga e encararam esse desafio”, ressalta.
Quem encarou outro desafio na pandemia de covid-19 no ramo da pesquisa foi a médica cirurgiã do Hospital Marcelino Champagnat, Anna Flávia Miggiolaro, 44 anos. Junto com outras duas mulheres, a doutora Cristina Baena e a médica patologista Lucia de Noronha, Anna encabeçou um projeto para estudar as alterações causadas pelo novo coronavírus em diversos tecidos de vítimas da doença. O estudo ajudou a mudar os protocolos de tratamento de pacientes do hospital em que trabalhava, que no início eram baseados nos mesmos da H1N1, já que o Sars-CoV-2 era identificado como um vírus respiratório.
“Logo nas primeiras biópsias identificamos alterações nos pulmões, alvéolos e na circulação pulmonar, que eram completamente diferentes da H1N1. Com essas alterações que identificamos, vimos que não era uma doença essencialmente pulmonar, mas uma doença sistêmica, que causa inflamação em todo o organismo, podendo atingir qualquer órgão”, explica.
Espaço nas redes sociais
Segundo o relatório “A Jornada do pesquisador pela lente de Gênero”, publicado pela Elsevier, em 2020, a participação de mulheres nos mais diversos campos da ciência oscila entre 20% e 49% nos 15 países estudados. Enquanto algumas delas estão na linha de frente mais direta lidando com pacientes da covid-19, outras no laboratório para estudar tratamentos, algumas dessas cientistas estão nas redes sociais para divulgarem a informação científica para a população leiga.
Esse é o caso da biomédica e doutora em neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mellanie Fontes-Dutra, de apenas 29 anos. Com 78,5 mil seguidores no Twitter, Mellanie trabalha como divulgadora científica da Rede análise, todos pelas vacinas, União Pró-Vacina, grupo InfoVid e Equipe Halo da Organização das Nações Unidas (ONU). O trabalho foi intensificado com o surgimento do novo coronavírus, mas a paixão pela ciência vem da infância.
“Desde pequena sempre tive muito interesse pela ciência e a biomedicina veio como uma possibilidade de conhecer mais um pouco dessa área da ciência. Na época, eu fiquei um tanto insegura porque eu não ouvi falar muito de cientistas mulheres, então me questionava se iria conseguir ter um espaço e ter sucesso”, relembra o início da vida profissional.
Entre a graduação, doutorado e o pós-doutorado, Mellanie começou a desenvolver atividades de divulgação científica, intensificadas na pandemia de covid. “Em 2020 que eu comecei a me dedicar às redes sociais, com o intuito de somar na divulgação de informações sobre a pandemia”, cita.
Ainda que a maioria dos internautas tenha boas interações com a cientista, ela ainda encontra críticas por ser mulher, por ser jovem ou até por discordâncias de pontos defendidos por ela. “No início sentia que muitas das críticas eram motivadas por causa do gênero, mas atualmente que são mais pelo conteúdo. Mesmo assim, agora, ainda existe um certo machismo porque vejo uma frequência desses comentários no meu perfil”, pontua.
A agressividade dos chamados “haters” se torna irrisória diante das meninas mais novas que são inspiradas pelo trabalho feito por Mellanie. “Recebi muito feedback positivo e quando vou falar em escolas, a gente percebe o quanto as estudantes ficam interessadas. Muitos pais conhecem nosso trabalho e começam a entender e apoiar as filhas que querem seguir essa carreira. Isso é legal porque mostra que o meu trabalho pode contribuir para a formação de uma nova geração de ainda mais pesquisadoras mulheres”, considera. (CB)