Destino turístico se viu no centro de uma disputa depois que uma empresária apresentou documentos dizendo-se proprietária de nada menos que 80% das terras da vila.
Por Gabriela Feitosa, Thaís Brito, Leonardo Igor de Sousa, g1 CE
Vila de Jericoacoara era comunidade de pescadores antes de virar ponto turístico — Foto: Edson Silva/Arquivo pessoal
Considerada um paraíso turístico, Jericoacoara, no Ceará, se tornou um dos destinos mais cobiçados do Litoral do Nordeste nos últimos anos. O local está no centro de uma disputa depois que uma empresária apresentou documentos dizendo-se proprietária de nada menos que 80% das terras da vila.
O caso chegou à Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE), que tem atribuição legal de defender direitos e interesses sobre o patrimônio imobiliário do Ceará. A PGE reconheceu a propriedade da empresária sobre as terras, e desde então vem negociando um acordo extrajudicial com ela para solucionar o problema.
Com áreas de mangue, piscinas naturais e formações icônicas como a Pedra Furada, Jericoacoara se tornou até destino turístico internacional. O litoral é propício para prática de kitesurf e windsurf, possui hotéis de luxo e diversas opções gastronômicas.
Apesar da fama, até hoje há certa confusão sobre o que é Jeri, como o local é carinhosamente conhecido. Acontece que o nome Jericoacoara está presente em três esferas: o município, a vila e o parque nacional.
Entenda a diferença entre as “Jericoacoaras”:
➡️Vila de Jericoacoara: fica a cerca de 25 quilômetros de distância da sede do município; é na vila onde estão os moradores, a rede hoteleira, bares e restaurantes; a partir da vila os visitantes vão conhecer os pontos do parque nacional, como a Pedra Furada; administrativamente falando, a vila é uma espécie de enclave no parque, uma vez que é de responsabilidade da prefeitura de Jijoca, embora esteja cercada pelo território do parque nacional; a vila tem cerca de 88 hectares de extensão.
➡️Parque Nacional de Jericoacoara: é uma área de preservação ambiental, criada 2002, inserida no território dos municípios de Jijoca de Jericoacoara, Cruz e Camocim; o parque é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão do governo federal responsável pela gestão de unidades ambientais; tem pouco mais de 8 mil hectares.
➡️Jijoca de Jericoacoara: é o nome oficial do município cearense, localizado no litoral norte do estado, dentro do qual estão a Vila de Jericoacoara e a maior parte do Parque Nacional de Jericoacoara; tem 201.858 km² de extensão.
A história de Jeri ⛵🏝️
O município de Jijoca de Jericoacoara foi criado oficialmente em 1991. Antes, o território de Jijoca pertencia ao município vizinho, Cruz. Atualmente, o município tem uma população de 27.662 habitantes, conforme estimativa do IBGE.
O local aparece em cartas náuticas desde o século XVI. À época, era conhecido como Baía das Tartarugas. Na década de 1920, foi formada a comunidade de pescadores que deu origem à Vila. O auge da pesca na vila se deu entre as décadas de 1960 e 1970, e a partir da década de 1980 o local começou a se tornar um destino turístico alternativo, sobretudo para mochileiros e hippies.
Já na década de 1980, houve o primeiro reconhecimento da região em torno da Vila de Jericoacoara como uma Área de Preservação Ambiental (APA), pelo governo federal. E em fevereiro de 2002, um decreto da Presidência da República transformou a área de preservação em uma unidade de conservação federal, criando oficialmente o Parque Nacional.
A atividade turística em Jericoacoara passou a tomar mais fôlego na década de 1980, quando passou a ser procurada por pessoas do estilo de vida hippie, que iam em busca de liberdade e contemplação.
De acordo com informações do Ministério do Turismo, naquela época Jeri era apenas uma vila de pescadores, “sem nenhuma estrutura de hospedagem, energia elétrica e com acesso difícil.”
Ao longo dos últimos 20 anos, o cenário mudou. No princípio, poucas pousadas ofereciam comodidades como energia elétrica, água quente e demais estruturas. Após iniciativa e investimento dos próprios moradores e de quem estava chegando, o destino se estruturou.
Hoje existem quase 100 meios de hospedagem, entre pousadas e hotéis. Os dados também são do Ministério do Turismo. A gastronomia também recebeu reforços e oferece diversos estilos, tanto da culinária brasileira (em especial a nordestina), quanto da estrangeira.
O artesanato é outro destaque em Jericoacoara, como em praticamente todo o Ceará. O destino também oferece diversas opções de ecoturismo, atividades de aventura e turismo cultural.
Em janeiro de 2024, a concessão do Parque Nacional de Jericoacoara foi leiloada por R$ 61 milhões pelo ICMBio. O vencedor do leilão foi o Consórcio Dunas.
O acordo negociado pela empresária e o governo do Ceará envolve terras do Parque Nacional ou da Vila?
As três propriedades da empresária estão inseridas no Parque Nacional de Jericoacoara (linha verde). — Foto: Reprodução
A empresária Iracema Correia São Tiagoreivindicou as terras que fazem parte da Vila de Jericoacoara, isto é, terrenos do município. A área reivindicada corresponde a 83% do território da Vila. Esses terrenos da Vila estavam sob controle do Governo do Ceará; portanto, o acordo celebrado pela empresária com a Procuradoria-Geral do Estado diz respeito apenas à área da Vila.
Além desta área da Vila de Jericoacoara, a empresária também provou ser dona de outras terras na região de Jijoca de Jericoacoara. Ela é dona da Fazenda Junco I, onde fica a Vila, e também da Fazenda Junco II (veja acima o mapa).
A Junco II possui cerca de 669,19 hectares. Estas áreas estão fora da Vila de Jericoacoara, mas tanto a Junco I quanto a Junco II estão sobrepostas às áreas do Parque Nacional de Jericoacoara.
Como ficam dentro do parque, é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) realizar o processo de regularização fundiária. Em nota, o instituto disse que possui ciência do caso e vem acompanhando as informações repassadas pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara.
“No que diz respeito ao Instituto, unidades de conservação criadas em áreas de propriedade privada passam pelo processo de regularização fundiária”, pontuou o ICMBio.
O processo está em andamento também na esfera da Justiça Federal, através do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5).
Nos documentos do atual acordo entre a PGE-CE e a empresária Iracema Correia, existe também a informação de que, em agosto de 2022, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) abriu processo administrativo para que o Idace verificasse a matrícula dos terrenos Junco I, Junco II (também reivindicada por Iracema) e de uma outra propriedade (a fazenda Caiçara, que não pertence à Iracema) como possíveis terrenos com sobreposição ao Parque Nacional de Jericoacoara. A situação foi confirmada em verificação do Idace.
No Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) tramitam três ações de desapropriação indireta contra a União e o ICMBio propostas por autores que alegam deter a propriedade de áreas no interior do Parque Nacional de Jericoacoara. Entre eles, estão os casos das fazendas Junco I e II, reivindicadas por Iracema. Confira como estão os processos, segundo o TRF5:
- Junco I (Processo nº 0800668-04.2017.4.05.8103): Este processo está concluso para decisão do juiz, o que significa que o magistrado já está com os autos para proferir uma sentença ou decisão final.
- Junco II (Processo nº 0800669-86.2017.4.05.8103): No momento, o Ministério Público Federal (MPF) está com vistas para se manifestar a respeito de um pedido da parte autora, que questiona a perícia técnica realizada e solicita a realização de nova perícia. O MPF tem prazo até o dia 12 de novembro de 2024 para se posicionar. Após essa data, o processo também ficará concluso para decisão do juiz.
Empresária reivindica 80% da área de paraíso turístico no Ceará — Foto: Arte/g1
Terras herdadas após divórcio
As terras foram compradas em 1983 pelo ex-marido da empresária, José Maria de Morais Machado. O casal se divorciou em 1995, e a mulher ficou com as terras na partilha dos bens.
O valor total pago pelos três imóveis, que depois viraram a Fazenda Junco I, foi de 620 mil cruzeiros. Ainda não há a informação de quanto custou a Fazenda Junco II.
Onde entra o Consórcio Dunas?
Com a concessão, o consórcio passou a ser responsável pela segurança do parque, pelo controle viário, pelos serviços de limpeza e conservação, pelo fornecimento de água e energia para as instalações, pela oferta de alimentação aos visitantes, entre outras áreas.
O ICMBio, junto a outros órgãos competentes, vai fiscalizar a atuação do Consórcio e garantir o cumprimento dos termos do contrato e da legislação ambiental.
Ao g1, o Consórcio Dunas e o ICMBio afirmaram que vêm acompanhando o caso, mas a respeito da reivindicação da empresária sobre terrenos na Vila, o ICMBio destacou que a Vila “fica fora do território do Parque Nacional de Jericoacoara, e faz parte da área urbana do município de Jijoca de Jericoacoara”.