Corte validou mudança na Constituição que determinou fim do regime jurídico único dos servidores. Decisão não afeta quem já atua no funcionalismo; exigência de concurso continua.
Por Fernanda Vivas, TV Globo — Brasília
Plenário do Supremo — Foto: Gustavo Moreno/STF
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na última quarta-feira (6), que é válida a mudança na Constituição que alterou o regime de trabalho para os servidores públicos, concluindo o julgamento de uma ação que já tramitava há mais de 24 anos.
A decisão tem potencial de promover mudanças no modelo de atuação do funcionalismo para o futuro, mas não acaba com os concursos públicos, nem encerra totalmente a possibilidade de estabilidade. O entendimento da Corte também não atinge quem já está no serviço público atualmente.
Nesta reportagem, o g1 vai explicar os efeitos da decisão.
- O que é regime jurídico único?
- O que o Congresso Nacional mudou em relação ao regime jurídico único?
- O que foi discutido pelo Supremo?
- O que o tribunal decidiu?
- O que esteve em vigor nos 24 anos de tramitação do processo?
- Para quem vai valer a decisão?
- Como será implantada a mudança?
- O que acontece com os concursos públicos?
- O que acontece com a estabilidade?
O que é o regime jurídico único (RJU)?
O regime jurídico único (RJU) é um conjunto de regras que organiza o trabalho dos servidores públicos – trata de seus direitos, deveres, garantias, vantagens, proibições e penalidades. Regula, na prática, a relação entre a Administração Pública e os servidores.
A Constituição de 1988 passou a prever a obrigação de um único regime de pessoal para o serviço público da União, estados, Distrito Federal e municípios. A mesma regra também vale para autarquias e fundações públicas.
A ideia era evitar que servidores – muitas vezes com as mesmas atividades – tivessem regimes de trabalho diferentes, como já aconteceu na história brasileira antes da Carta Magna.
Antes de 88, havia situações de carreiras regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a lei usada para regular os trabalhadores da iniciativa privada, e carreiras com leis específicas (os chamados estatutos próprios.) Dessas diferenças vieram as expressões “servidores celetistas” e “servidores estatutários”.
A Constituição padronizou o tratamento à questão, obrigando que a Administração Pública tivesse apenas um regime jurídico para a relação com seus servidores. Estas instituições implantaram, então, o regime estatutário, ou seja, aquele em que a relação entre governos e servidores obedece a uma lei específica, um Estatuto.
No âmbito federal, a União usa a Lei 8.112, de 1990, o Estatuto do Servidor Público. Estados e municípios podem criar suas próprias leis.
Servidores estatutários entram na carreira pública por meio de concurso público. Além disso, adquirem estabilidade depois de três anos de atividade. A estabilidade significa que a perda do cargo ocorre somente como punição em processo administrativo disciplinar, a partir de decisão judicial definitiva, ou como medida para o controle de desequilíbrio nas contas públicas.
Os trabalhadores das empresas estatais não estão neste grupo para quem o RJU é obrigatório – eles são regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho. Assim, instituições como a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, Correios e Petrobras têm os chamados empregados públicos. Estes funcionários ingressam na carreira por concurso, mas não têm estabilidade.
O que o Congresso Nacional mudou em relação ao regime jurídico único?
Em 1998, o Congresso Nacional analisou a proposta de reforma administrativa apresentada pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Entre outros pontos, o texto retirava da Constituição a obrigação de um único regime de trabalho para os servidores.
Assim, uma vez em vigor, a Administração Pública federal, estadual e municipal poderia escolher os seus regimes de pessoal, a depender de suas necessidades. Na prática, poderiam voltar a conviver, por exemplo, servidores no regime estatutário (com estabilidade) e servidores regidos pela CLT (sem estabilidade).
A emenda foi aprovada e passou a valer no mesmo ano.
O que foi discutido pelo Supremo?
No ano 2000, PT, PDT, PCdoB e PSB questionaram, no Supremo, pontos da reforma administrativa do governo FHC. Entre eles, a determinação do fim do regime jurídico único.
As siglas contestaram a forma como o Congresso aprovou a mudança na Constituição. Para o grupo, houve irregularidade no processo legislativo, já que o texto da emenda não teria sido aprovado em dois turnos pela Câmara e pelo Senado.
Em 2007, a Corte suspendeu a aplicação da regra, até uma decisão definitiva sobre o caso. Com isso, a flexibilização caiu e a obrigação do regime jurídico único voltou a vigorar.
O que o tribunal decidiu?
Agora, em 2024, o Supremo concluiu o julgamento do mérito da ação, ou seja, o questionamento sobre a validade da mudança feita pelos parlamentares.
O tribunal entendeu que o processo de mudança na Constituição foi regular. Por 8 a 3, os ministros concluíram que não houve violação ao processo legislativo. Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes, que foi acompanhado pelos ministros Nunes Marques, Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli.
Ministro Gilmar Mendes abriu a divergência que se tornou a tese vencedora.. — Foto: Gustavo Moreno/SCO/STF
A relatora, Cármen Lúcia, e os ministros Edson Fachin e Luiz Fux consideraram que a medida era inconstitucional.
O que esteve em vigor nos 24 anos de tramitação do processo?
Entre 1998 e 2007, a flexibilização do regime de trabalho dos servidores foi aplicada, já que ela teve aval do Congresso. Até então, o Supremo ainda não tinha se pronunciado sobre o tema.
Em 2007, a Corte julgou o pedido de suspensão da regra. Os ministros atenderam à solicitação, tornando a medida sem efeito até um pronunciamento definitivo do tribunal.
Esta decisão foi mantida até o julgamento da última quarta-feira, em que o plenário analisou a validade da mudança constitucional e deliberou sobre a questão.
Entre 1998 e 2007, com a vigência da flexibilização, estados e municípios chegaram a implantar regimes de pessoal no serviço público com o uso da CLT. Ou seja, contrataram servidores que não contavam com a estabilidade.
Para quem vai valer a decisão?
O Supremo deixou claro que a decisão que validou a flexibilização do modelo de atividade dos servidores vai valer para o futuro.
Assim, servidores que já estão na carreira não sofrerão impactos – no funcionalismo federal, por exemplo, continuam regidos pela Lei 8.112, mantêm a estabilidade, seguem um regime próprio de Previdência.
A determinação pode ter efeitos para quem entrar no serviço público a partir da decisão da Corte.
Como será implantada a mudança?
A modificação nas regras de atuação, mesmo para os novos servidores, não é automática.
Para que a mudança no regime de trabalho de qualquer categoria ocorra, será preciso alterar as leis que estabelecem a regulamentação das categorias. Estas normas devem passar a prever a aplicação do regime estatutário ou a mudança para a CLT.
Modificações em leis só podem acontecer com votação no Poder Legislativo e sanção do Poder Executivo.
O que acontece com os concursos públicos?
A decisão do Supremo não alterou a exigência do concurso público para ingresso na carreira. Assim, esta forma de seleção de pessoal vai permanecer válida.
A Constituição prevê o concurso como regra, e isso é aplicado mesmo para os casos dos atuais empregados públicos – os trabalhadores das estatais. Apesar de não terem estabilidade, eles são contratados após processo seletivo, que pode envolver provas e apresentação de títulos acadêmicos.
O que acontece com a estabilidade?
A decisão também não representa o fim da estabilidade.
Caberá aos governos federal, estaduais e municipais decidirem qual modelo de trabalho mais adequado para cada área.
Nas chamadas carreiras de Estado – aquelas que realizam trabalho que não tem correspondência na iniciativa privada – a perspectiva é de que se mantenha o regime estatutário (com estabilidade).
A alteração para o regime CLT (na prática, o fim da estabilidade) pode ocorrer nas atividades que não são exclusivas do serviço público, mas isso vai depender de aprovação da lei dos planos de carreira.