Temas da redação e de algumas questões do exame, além da reação do presidente eleito à prova, exemplificam como o Brasil anseia por viver no obscurantismo
Logo depois que foi divulgado o tema da redação do Enem, faz duas semanas (e enquanto eu estava de folga das tarefas deste blog), um colega, Fabio Pereira, me lembrou de seu livro, o Consciência Digital. “Tem muita gente me mandando mensagem”. Disse ele, referindo-se a leitores que o agradeceram pela referência útil na hora de escrever a redação. Confesso que foi aí que peguei o livro para ler, o que fiz numa sentada. O assunto é interessante principalmente para leigos que nada compreendem de como redes sociais, sites que vendem de tudo (como a Amazon) e etc. se apoiam em artifícios para manipular seus usuários. Sim, leitura que foi ou poderia ter sido útil aos que enfrentaram o Enem.
Porém, o esforço de parecer moderno do Enem foi dos mais ridículos, ao menos àqueles que realmente vivem o moderno. O tema da redação, “Manipulação do comportamento do usuário pelo controle de dados na internet”, só aparenta ser contemporâneo a quem tem mais de seus 35, melhor, 40 anos de idade – provavelmente se encaixam aí os formuladores da prova. A forma como se abordou o assunto é tão arcaica quanto a reação do presidente eleito, o Jair “Se Acostumando” Bolsonaro, ao próprio Enem, quando ele prometeu que irá fiscalizar as questões de 2019 pessoalmente; mesclando política, educação e crenças numa tocada só e, desta forma, soando como um senhor feudal da Idade Média.
Em relação ao tema da redação, jovens estudantes estão cansados de saber que existem algoritmos, formas de maquiar e apresentar dados, que visam manipulá-los. Assim como em nada eram novidades os tópicos levantados em outras questões da prova, também na linha de “olha como queremos ser modernos”.
Numa pergunta, explicava-se como hoje se paga pela opinião dos chamados influenciadores; disso, qualquer ser que já acessou o YouTube sabe. Noutra, falava-se do limite de caracteres no Twitter; conversa tão arcaica que até o próprio Twitter já começou a abandoná-la, expandindo cada vez mais (em tamanho e formatos) os tuítes. Em mais uma, buscava-se que o estudante interpreta-se emoticons do Facebook; sendo que hoje se debate o que a juventude consegue compreender além de emoticons de Facebook.
O Enem deste ano pareceu algo como aquela tia sessentona que aprendeu a se inscrever no Facebook e começa a contar a notícia toda orgulhosa na festa do sobrinho de 16 anos de idade. Já a reação de Bolsonaro foi algo como se o pai do sobrinho chegasse dando bronca na mesma tia, dizendo que seu filhinho (adolescente) não pode ter contato com essas coisas perigosas da internet.
Em vez de falar de manipulação de dados na rede como se discutia há uns 10 anos, a redação do Enem podia, por exemplo, propor a discussão de como se identificar o que representa (e como se dá o dano causado por) uma série de fake news. Ou então, no lugar de propor o tema que se levantou, haveria a possibilidade de realmente contemporizar dentro do mesmo assunto. Que tal tratar de como o vício em redes sociais, sem detox, obscurece a capacidade de leitura e interpretação de textos? Ainda: no lugar de expor emoticons, podia-se propor a análise profunda da reação de usuários, via emoticons, a textões reais que viralizaram.
Seriam muitas as maneiras de realmente abordar tais pontos de forma que se sensibilizasse os jovens que enfrentam a prova. Contudo, convenhamos, esse não é o intuito do Enem. Não se parece esperar, com o exame, realmente provocar qualquer algo na juventude.
O Enem, no fim, representa bem é uma faceta nada louvável do Brasil. Aquela de um país que se acha tão modernoso, tão dentro do mundo, mas que, ao mesmo tempo, expressa nas ruas e nas urnas a vontade de regressar a um passado de obscurantismo, primitivismo e isolacionismo – isso numa humanidade em que cada vez mais se destacam aqueles que compreendem como a internet foi criada, em sua base, para unir, iluminar, espalhar conhecimento e destruir fronteiras virtuais e físicas.