Para indígenas e pessoas com deficiência, comprovação será feita por meio de documentos.
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Por Matheus Moreira, g1 — São Paulo
O Concurso Público Nacional Unificado (CPNU) terá uma banca, em sessão filmada, para confirmar a autodeclaração racial dos candidatos que optarem por concorrer às cotas para negros. Os vídeos serão mantidos em sigilo, segundo o edital.
Chamada de “Enem dos concursos”, a seleção vai preencher 6.640 vagas em 21 órgãos federais, divididas em oito blocos temáticos (áreas de atuação). As cotas serão distribuídas da seguinte maneira:
- 20% para negros
- 5% para pessoas com deficiência
- 30% para indígenas, mas apenas nas carreiras da Funai
O número de vagas em cotas vai depender, entretanto, do total de vagas na carreira (entenda como funciona o cálculo abaixo).
Cotas para negros
O critério adotado no “Enem dos concursos” para confirmar a autodeclaração racial daqueles que concorrerem às cotas será o uso das bancas de heteroidentificação.
Essas bancas já são adotadas por universidades federais no país. Elas levam em conta as características físicas dos candidatos como tom de pele, cabelo e traços, por exemplo — o chamado fenótipo.
As bancas, segundo o edital, serão compostas por cinco membros, com suplentes para cada um deles. Os nomes dos membros não serão divulgados, mas os seus currículos, sim, por meio do site do concurso e pelo edital de convocação para a fase de bancas.
Os candidatos que forem reprovados na avaliação da banca disputarão a vaga na ampla concorrência, ou seja, com pessoas que não fazem parte das cotas, caso obtenham nota para tal. Em caso de informações falsas, o candidato será eliminado e responderá legalmente.
Para José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, instituição dedicada à inclusão de negros e pobres no ensino superior e que leva o nome de um símbolo da luta contra a escravidão no Brasil, as bancas de heteroidentificação são uma medida “importante, necessária e eficiente”.
O reitor explica que a medida, “com bastante certeza, vai evitar a ocorrência das fraudes raciais”.
“É importante lembrar também que as bancas já têm presença e prática de mais de 20 anos nos concursos, sobretudo das universidades públicas federais. Desde o tempo das cotas na Universidade de Brasília, por exemplo”, disse.
A Universidade de Brasília (UnB) adota cotas de 2003 (para ingresso em 2004) e as filmagens das bancas já eram realidade naquela época.
Filmagem das bancas
A gravação da bancas, para Vicente, pode colocar uma pressão negativa sobre os avaliadores.
”Eu penso que filmar para quase pressionar [o julgador] pode significar, ao final do processo, uma condução [para um resultado específico]. Além de inadequada, [a filmagem pode] construir um tipo de julgamento que está, em alguma medida, corrompido, porque a decisão [do avaliador] pode não estar totalmente livre [de julgamento] por conta da pressão [de saber que está sendo filmado].”
Questionado sobre a possibilidade de os vídeos pressionarem os avaliadores e sobre o risco de eventuais vazamentos, o Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos disse que, “na hipótese de indícios ou denúncias de fraude ou má-fé no procedimento de heteroidentificação, o caso será encaminhado aos órgãos competentes para as providências cabíveis”.
“Entendemos que a filmagem resguarda os avaliadores de interpretações não condizentes com o procedimento de heteroidentificação”, afirmou o ministério.
A filmagem de bancas de heteroidentificação já existe desde 2018 por meio da Portaria Normativa 4 do Ministério da Gestão. O vídeo é utilizado para analisar eventuais recursos que candidatos possam apresentar.
No Instituto Federal do Mato Grosso do Sul (IFMS), as bancas são filmadas desde que a portaria entrou em vigor, no caso de concursos para servidores, e desde 2020 para ingresso de estudantes.
Suliane Kelly Aguirre de Barros, que foi responsável por toda a organização das bancas do IFMS entre 2016 e 2020, período no qual era coordenadora de diversidade e inclusão, explica que somente terão acesso às filmagens, no caso do instituto, o presidente da banca, o responsável do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) ou o responsável pelo processo seletivo.
“Em caso de recurso, o vídeo é disponibilizado para a banca recursal”, disse.
O IFMS tem cotas para estudantes negros desde o exame de seleção de 2012 (para ingresso em 2013). Já no caso dos concursos públicos, as cotas foram implementadas em 2016.
Suliane avalia que as bancas de heteroidentificação desempenham um papel crucial na promoção da equidade e na integridade das políticas de cotas, garantindo um processo seletivo mais justo e inclusivo.
“Sua importância reside na garantia da legitimidade do processo, evitando fraudes e assegurando que as políticas de inclusão atinjam efetivamente os grupos historicamente marginalizados”, afirmou.
Veja no fim da reportagem o passo a passo para se inscrever no “Enem dos concursos”.
Cotas para indígenas
As cotas indígenas serão aplicadas apenas para cargos da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A checagem – chamada de validação étnica – será feita por meio da análise de documentos, e não por meio de banca de heteroidentificação.
Serão analisados até três dos documentos abaixo, que devem ser enviados pelo candidato no momento da inscrição:
- Documento de comunidade indígena ou de instituição ou organização representativa do povo ou grupo indígena que reconheça o pertencimento étnico do candidato, assinada por, no mínimo, três integrantes indígenas da respectiva etnia;
- Identificação civil, expedida por órgão público com a indicação de pertencimento étnico;
- Comprovantes de habitação em comunidades indígenas;
- Documentos expedidos por escolas indígenas;
- Documentos expedidos por órgãos de saúde indígena;
- Documentos expedidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ou pelo Ministério dos Povos Indígenas;
- Documentos expedidos por órgão de assistência social;
- Documentos constantes no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal – CadÚnico;
- Documentos de natureza previdenciária.
Os documentos enviados serão avaliados por uma Comissão de Verificação Documental Complementar constituída por cinco pessoas. Ao menos três delas são indígenas.
O candidato vai poder saber do resultado da análise, mas não poderá acompanhar a execução dela.
Quem não for aprovado pela comissão disputará a vaga na ampla concorrência e, em caso de informações falsas, o candidato será eliminado e responderá legalmente.
Cota para pessoas com deficiência
Já no caso das pessoas com deficiência, a avaliação para confirmação da condição do candidato é feita por uma equipe multiprofissional.
A composição desta equipe inclui profissionais capacitados em áreas específicas de deficiências, assegurando a presença de um médico e um psicólogo, além de três profissionais do órgão e cargo ao qual o candidato concorre. Os profissionais do órgão podem participar da avaliação por meio de videoconferência.
Na avaliação, os candidatos devem apresentar documentação médica que ateste a espécie, grau ou nível de deficiência, indicando o código correspondente da CID-10 (10ª revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde).
As cotas
Todos os oito editais do concurso preveem cotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência. Contudo, cada categoria possui um percentual e um número de vagas mínimo para que essas cotas sejam aplicadas.
Negros: 20%
Indígenas: 30%
Pessoas com Deficiência: 5%
Como é calculado o número de vagas para cada cota?
Negros
Para haver cotas nessa categoria, a especialidade deverá ter três ou mais vagas. Por exemplo: um cargo de analista com especialidade em engenharia civil que tiver três vagas disponíveis terá cotas para negros. Se tiver menos do que três vagas, não haverá cotas para esta categoria.
Indígenas
Para haver cota nos cargos vagos da Funai, será necessário haver três ou mais vagas na especialidade. Se tiver menos do que três vagas, não haverá cotas para esta categoria.
Pessoas com deficiência
Para haver cotas, neste caso, o órgão, cargo ou especialidade deverá ter cinco ou mais vagas. Por exemplo: um cargo de analista com especialidade em engenharia civil que tiver cinco vagas disponíveis terá cotas para pessoas com deficiência. Se tiver menos do que cinco vagas, não haverá cotas para esta categoria.
Sem cotas para pessoa trans
Em julho de 2023, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, havia dito que 2% das 900 vagas para auditores-fiscais do trabalho do “Enem dos concursos” seriam reservadas para pessoas transexuais.
No entanto, os editais foram divulgados sem essas cotas e a ministra da Gestão e Inovação, Esther Dweck, disse que as regras seguiram o que estava previsto em lei.
Apesar da promessa de Marinho, o concurso para auditores fiscais precisou se adequar às regras utilizadas para os editais do “Enem dos concursos” porque foi integrado a ele.
Questionado, o Ministério da Gestão confirmou que não haverá cotas para pessoas trans nesta edição.
A medida foi vista com “muito espanto” por Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
“Eu acho que nós, como uma instituição nacional que representa uma parcela significativa da população, vemos com muito espanto essa ausência de cotas para as pessoas trans no concurso, especialmente quando a gente teve uma promessa”, diz Simpson.
O Ministério Público Federal (MPF) entrou com uma ação civil pública pedindo que a União pague uma indenização por danos morais de R$ 5 milhões por não prever a reserva de vagas para pessoas transexuais e travestis no “Enem dos concursos”.
O pedido de condenação diz respeito justamente ao cargo de auditor-fiscal do trabalho, carreira que tem o maior salário (R$ 22,9 mil) e o maior número de vagas do concurso. Entenda o caso.
Como se inscrever no ‘Enem dos concursos’ — Foto: g1