45% das mulheres negras tiveram empréstimo negado, é o que revela dados da 13.ª pesquisa de Sebrae/FGV sobre impacto da pandemia
Rio de Janeiro – Mulheres marcham em Copacabana para celebrar dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha durante a 3ª Marcha das Mulheres Negras no Centro do Mundo (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
O sonho da microempreendedora Catia Tavares, de 49 anos, era oferecer um cardápio gourmet na região periférica de Campinas (SP). Para isso, investiu os recursos que juntou em mais de 20 anos trabalhando como professora para abrir um restaurante em fevereiro de 2020. Mas ela não imaginava que um mês depois fecharia as portas por conta da pandemia.
A situação ainda piorou quando Catia teve empréstimos negados, mesmo apresentando a documentação exigida pelas instituições financeiras. Para ela, ser uma mulher negra influenciou na negativa. “Uma mulher de pele branca e moradora de um lugar mais abastado tem a porta aberta. Não há porta aberta para mulher negra e periférica.”
Dados da 13.ª pesquisa de Sebrae/FGV sobre o impacto da covid-19 nos pequenos negócios, interseccionados por sexo e cor, mostram que 45% das mulheres negras tiveram empréstimo negado.
Essas negativas vieram em um cenário bastante difícil: 76% das empreendedoras negras registraram queda de faturamento mensal em 2021 e 36% sinalizaram estar com dívidas ou empréstimos atrasados.
Com dificuldade de recuperação durante a retomada econômica, 20% dos pequenos negócios delas tiveram que fechar as portas de forma temporária ou definitiva. Entre as empreendedoras brancas, esse índice cai para 13%.
A coordenadora do programa Sebrae Delas, Renata Malheiros, aponta que as mulheres, de um modo geral, não costumam ser incentivadas a empreender em setores de alto valor agregado, e destaca que, tradicionalmente, as instituições bancárias não se apresentam como um local acolhedor para elas. “Muitas vezes, as financeiras não estão preparadas para receber as mulheres com filhos, por exemplo. Por questões culturais e de estereótipos, não confiam, questionam se ela é mesmo a dona da empresa e se o marido sabe que ela quer fazer um empréstimo”, explica.
Fundo filantrópico
Com foco na luta pelos direitos econômicos de mulheres negras, desde setembro de 2020 o Fundo Agbara, de São Paulo, tem oferecido ao segmento aporte financeiro, capacitações técnicas e mentorias. Até agora foram 1,8 mil atendimentos para mais de 500 mulheres em todo o Brasil. Catia faz parte dessa rede.
“O Agbara me colocou em um grupo onde encontro outras negras empreendedoras como eu. É muito mais do que apenas um aporte financeiro, é apoio”, diz a empresária, que usou os recursos para compra de um forno industrial.
Para manter os atendimentos e o financiamento às empreendedoras, o Agbara tem uma rede com 250 doadores individuais e recorrentes, com valor médio de R$ 30 a R$ 35 por mês. Ao todo, R$ 150 mil já foram arrecadados. O fundo também conta com recursos recolhidos por meio de editais nacionais e internacionais e, neste ano, passou a receber investimentos para desenvolvimento institucional, vindos das organizações Próspera Social, Fundação Tide Setubal e The Global Fund.
O Agbara foi idealizado por Aline Odara, de 35 anos, mestranda em Educação na Unicamp, que teve a ideia quando decidiu organizar uma vaquinha para ajudar uma amiga a comprar uma máquina de costura. “A ideia inicial era de que 20 amigos doassem R$ 20. A gente teria R$ 400 por mês para contemplar uma mulher negra durante 1 ano”, afirma.
Novo modelo
Até o início deste ano, o trabalho na entidade formada por Aline e mais seis mulheres negras era voluntário. Agora, os recursos recebidos também ajudam na remuneração e no investimento em outros formatos de promoção à geração de renda.
Neste mês, o Fundo vai oferecer uma jornada de formação para iniciativas de mulheres negras, com duração de dois meses. Dez iniciativas já foram selecionadas.
A cantora e artesã Telma da Silva, de 47 anos, foi contemplada pelo Agbara no ano passado. Moradora de Campinas, ela costumava atuar em eventos na região e fez um projeto para gravação de um EP (um disco com poucas músicas), que está em produção. “O Agbara nasceu para nos dar esperança e um brilho de luz na escuridão”, diz a artista.
Empreendedorismo é diretamente afetado pelo racismo
A maioria dos negócios liderados por empreendedoras negras no Estado de São Paulo têm curta duração. De acordo com a pesquisa de 2020 do Global Entrepreneurship Monitor (GEM), realizada pelo Sebrae-SP e Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), os registros de mulheres pretas e pardas que empreendem somam 1,7 milhões.
Dessas, segundo o levantamento, o maior número de empreendedoras, 1,3 milhão está no estágio inicial de seus negócios, isto é, têm até 3 anos e meio no mercado. Somente 400 mil empreendedoras já estão estabelecidas, com mais de 3 anos e meio de atividades.
O total de pessoas com atividades empreendedoras em São Paulo, no ano de 2020, passou dos 9 milhões. Considerando o estágio do ciclo de vida do empreendimento, foram contabilizados ao todo 6,5 milhões de empreendedores iniciais e 3,1 milhões de empreendedores estabelecidos no Estado.
Em números porcentuais, as mulheres negras empreendedoras representaram 20% dos empreendedores iniciais, 12,9% dos empreendedores estabelecidos e 18,1% dos empreendedores totais no Estado. De acordo com o IBGE/Pnad de 2019, as mulheres negras (pretas e pardas) representam pouco mais de 20% da população de São Paulo.
Racismo estrutural
Para a criadora da Feira Preta e presidente da PretaHub, Adriana Barbosa, o fato de muitas mulheres negras empreenderem por necessidade faz que parte delas inicie os negócios sem o apoio educacional necessário para gerir uma empresa de forma sustentável e a longo prazo.
Além disso, há um racismo sistêmico e estrutural que afeta o cotidiano dessas empreendedoras em comparação com as brancas. Isso seria “um agravante para a democratização do acesso ao crédito”, explica.
Na avaliação da executiva, existem ainda muitas crenças que promovem uma leitura errada da capacidade de mulheres negras em empreender e gerir seus negócios.
Adriana alerta que três estratégias precisam ser adotadas para mudar esse quadro. A primeira delas é reconhecer o empreendedorismo negro no Brasil, pois quando se busca a figura de um empreendedor em plataformas de pesquisa, as pessoas brancas aparecem com mais destaque. “(É preciso também) ter uma estratégia que permita quebrarmos o telhado de vidro do micro.
Somos maioria empreendedora, mas apenas na categoria do MEI. A terceira sugestão é projetarmos estratégicas sistêmicas e estruturantes para combater as desigualdades e trazer, sim, as experiências das ações afirmativas para o ecossistema do empreendedorismo no Brasil”, diz a especialista. (JBr)