É possível equiparar as terríveis atrocidades do holocausto com as mortes ocorridas durante o regime comunista soviético?
Para Elazar Barkan, professor da Universidade de Columbia, o que torna o nazismo único é a perpetuação de uma política estatal de extermínio total da população judaica. No comunismo, diz ele, a violência tinha como fim a dominação e ampliação do regime, não a destruição de um povo com base na raça, religião ou etniaUS National Archives
O nazismo de Adolf Hitler na Alemanha e o comunismo de Josef Stalin na União Soviética coexistiram num mesmo período da história. Ambos os regimes eram ditatoriais e violentos. Mas é possível equiparar as terríveis atrocidades do holocausto com as mortes ocorridas durante o regime comunista soviético?
No dia 9 de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro comparou nazismo e comunismo ao defender, em postagem no Twitter, que as leis brasileiras deveriam combater organizações que preguem o “antissemitismo, a divisão de pessoas em raças ou classes, e que dizimaram milhões de inocentes ao redor do mundo, como o comunismo”.
A BBC News Brasil ouviu dois dos historiadores mais respeitados do mundo para analisar as diferenças e semelhanças entre os dois regimes.
Um deles é o israelense Elazar Barkan, diretor do Instituto de Estudos de Direitos Humanos da Universidade de Columbia, em Nova York, e autor do livro The Guilt of Nations (A Culpa das Nações, em tradução livre), no qual aborda o processo de reparação a vítimas após a Segunda Guerra Mundial.
O outro é o professor britânico Richard J. Evans, que dirigiu o Departamento de História da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e é autor de 18 livros sobre história europeia, entre eles a trilogia do Terceiro Reich.
Ambos dizem que a principal diferença entre nazismo e comunismo está no propósito nazista de destruição de uma população inteira com base numa ideologia de supremacia racial.
No comunismo da União Soviética, a violência era dirigida contra quem era considerado inimigo do regime, não a um grupo étnico ou racial específico – e tinha um objetivo de dominação, não extermínio. Ou seja, para os dois especialistas, os dois regimes não são equiparáveis no tipo de violência que perpetraram.
“Os nazistas trataram os judeus com brutalidade e sadismo particulares. Havia um desejo de degradação e humilhação que torna a violência nazista particular. No comunismo, a violência não tinha cunho racial. Ela era dirigida contra quem acreditavam ser subversivos e não embutia o mesmo ódio visceral que o nazismo tinha pelos judeus”, avalia Richard J Evans, considerado uma das maiores autoridades no estudo da Alemanha nazista.
Mas a discussão é complexa e envolve diferentes fatores. Por isso, a BBC News Brasil reúne aqui as principais diferenças e semelhanças entre nazismo e comunismo em três aspectos: ideologia, violência e totalitarismo.
Ideologia
O primeiro passo para analisar a violência praticada pelo nazismo e o comunismo está em verificar se a ideia de destruição de grupos está embutida na ideologia dos dois regimes. Primeiro, é importante lembrar que o comunismo não se manifesta da mesma maneira em todos os países, tendo sido muito mais violento na União Soviética durante a ditadura de Josef Stalin, entre 1928 e 1953.
O historiador Richard J. Evans destaca que o nazismo tem como pilar ideológico a ideia de superioridade racial.
Para os nazistas, os alemães seriam os verdadeiros europeus, descendentes diretos dos “árias”, uma espécie de tribo europeia original. E o Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães ou Partido Nazista, desde seus primórdios, em 1920, já se referia aos judeus como “inimigos” da nação.
Líder do partido a partir de 1921, Adolf Hitler manifestou em seu livro autobiográfico de dois volumes, Mein Kampf, ódio por marxistas, eslavos e, principalmente, judeus, a quem chamou de “parasitas”.
Escrito em dois volumes, em 1925 e 1927, Mein Kampf se tornaria o livro norteador do Partido Nazista. E, durante o período em que esteve no poder, entre 1933 e 1945, Hitler e o partido nazista institucionalizaram o racismo, estabelecendo leis que definiam como cidadãos apenas aqueles com “sangue” alemão, e excluindo dessa categoria judeus, ciganos, negros e eslavos. Houve ainda ordens para executar pessoas com deficiências físicas e mentais.
“Há uma diferença ideológica importante entre comunismo e nazismo que justifica uma rejeição particularmente contundente do nazismo, que é o elemento racista, o fato de ser um regime racista. O nazismo discriminava diferentes minorias étnicas e raciais, como negros, ciganos, eslavos, e, acima de tudo, judeus”, ressalta Evans.
“Hitler considerava ser judeu uma raça, não uma religião. E para ele era uma raça, por sua própria natureza, subversiva, perigosa e que queria destruir a civilização. Era o que os nazistas classificavam como inimigos do mundo. Com base nisso, estabeleceram o propósito de eliminar todos os judeus.”
Já o comunismo tem como propósito construir uma sociedade igualitária, por meio da abolição de classes sociais e da propriedade privada. Não há o componente de extermínio de grupos étnicos e a intenção é estender esse projeto para o mundo todo. Mas acreditava-se que o caminho para chegar a essa sociedade igualitária passa por uma luta de classes.
E, de fato, a ascensão do regime comunista na União Soviética envolveu conflitos sangrentos, com os assassinatos de opositores do regime, de elites e da família inteira do czar russo Nicolau 2º, sua esposa Alexandra e filhos do casal, que eram crianças e adolescentes.
“O comunismo é uma ideologia que diz que todos devem ser iguais; ter remuneração similar; que a propriedade deve ser do Estado e o Estado deve controlar e administrar negócios e indústrias, porque representa o povo”, lembra o historiador Richard Evans.
“A pergunta é como chegar lá. Inicialmente as doutrinas comunistas diziam que isso se alcançava por revolução violenta, como ocorreu na Rússia em 1917. Mas acho que esse não é o caso mais. Há uma compreensão (por parte de adeptos contemporâneos do comunismo) que ele não deve ser alcançado por luta violenta de classes.”
Elazar Barkan, professor da Universidade de Columbia, avalia que o comunismo se aproxima mais do fascismo que do nazismo.
“Claramente, o comunismo é mais comparável ao fascismo, que se manifesta de maneiras diferentes em diferentes países e se propõe a eliminar os críticos do regime. O nazismo é um regime único, com um projeto de extermínio de populações”, disse ele à BBC Brasil.
Barkan lembra ainda que o nazismo foi o único regime a implementar verdadeiros campos de extermínio que resultaram na morte de milhões. No regime de Stalin, havia campos de trabalho forçado e os prisioneiros viviam em condições degradantes, mas não havia câmaras de gás e uma política de extermínio em massa.
“O nazismo é único na perpetuação de campos de extermínio. Não eram campos de concentração, eram de extermínio. Houve todo um país concentrado e focado no extermínio de judeus. É diferente do que ocorreu no stalinismo. No stalinismo, havia uma ditadura e a violência tinha como objetivo a dominação. Foi um regime muito violento, mas não havia um aspecto de extermínio racial”, destaca Barkan, que também é fundador do Instituto de Justiça Histórica e Reconciliação, em Haia, na Holanda.
Genocídio x assassinato
Outro ponto constantemente usado em tentativas de equiparar o comunismo ao nazismo é o elevado número de mortes provocadas pelos dois regimes.
Robert Conquest, historiador inglês, autor de O Grande Terror e um dos primeiros a jogar luz sobre a extensão da violência do período stalinista, fala que houve pelo menos 20 milhões de mortos no regime soviético.
Estariam incluídos nessa conta assassinatos de opositores do regime, mortes em campos de trabalho forçado, por inanição na chamada Grande Fome da Rússia, em 1921, e no período conhecido como holodomor ou “morte por inanição”, na Ucrânia, entre 1932-1933.
Segundo Timothy Snyder, historiador americano e professor da Universidade Yale, cerca de 3,3 milhões de pessoas foram mortas na Ucrânia quando o regime de Stlin levou o país à grande fome com o objetivo de forçar camponeses rebeldes (os kulaks) a ampliar a produção agrícola e trabalhar em fazendas coletivas.
O Kremlin requisitava mais grãos do que os agricultores ucranianos podiam fornecer. E quando eles resistiram às demandas crescentes, brigadas do Partido Comunista varreram as aldeias e levaram tudo o que era comestível. Muitos sobreviventes contam que as fronteiras chegaram a ser fechadas para evitar que as pessoas buscassem comida em países vizinhos.
Ucranianos costumam comparar o holodomor ao holocausto, que matou cerca de 6 milhões de judeus. Mas, Elazar Barkan e Richard J. Evans afirmam que, embora a violência soviética precise ser repudiada e reconhecida, ela não constitui tecnicamente um genocídio. Isso porque o objetivo das mortes, afirmam, não era o extermínio de um grupo pela sua raça, mas sim a dominação e a expansão das políticas comunistas.
“Na minha visão, a morte de milhões de ucranianos na fome induzida pelo Estado, no início da década de 1930, foi deliberada, mas não ocorreu porque eram ucranianos, mas porque eram fazendeiros que poderiam resistir à política de coletivização da agricultura. Era uma política assassina, mas não baseada em raça”, avalia Evans.
“Mas dizer que não é genocídio não quer dizer que é melhor ou minimizaria o que ocorreu. Estou destacando que os objetivos de Hitler e Stalin eram diferentes.”
Do ponto de vista legal, o holocausto é considerado genocídio porque possui tanto o que a Convenção sobre Genocídio da ONU chama de “elemento mental” (“intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”) quanto o “elemento físico”. Este inclui cinco atos, que são:
• Matar membros do grupo
• Causar danos físicos ou mentais graves a membros do grupo
• Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física total ou parcial
• Impor medidas destinadas a prevenir nascimentos dentro do grupo
• Transferir à força crianças do grupo para outro grupo
Quem considera o holodomor como genocídio acredita que muitos desses atos foram praticados pelo regime stalinista contra os ucranianos. No caso do nazismo, todos os atos listados acima foram praticados contra judeus no período em que Hitler esteve no poder.
“O Holodomor foi parte de uma violência de outra natureza, que não era direcionada a um grupo como raça, mas a fazendeiros. Foi muito violento e muitas pessoas foram mortas e a fome foi horrível. Mas a ideologia não consistia em exterminar ucranianos. Havia diferentes grupos sofrendo e o objetivo ideológico não era matar ucranianos, mas transformar a União Soviética”, diz Elazar Barkan.
“Não acho que podemos negar às pessoas o reconhecimento que elas fazem do próprio sofrimento. Eu não acho que o Holodomor foi um genocídio. Mas se ucranianos acham que foi, a perspectiva deles é legitima”, completa.
Comparação do holocausto com outros genocídios
Barkan observa que o fato em si de o holocausto ser usado pelos ucranianos e por vítimas de violência em todo o mundo para efeito de comparação evidencia que ele é visto globalmente como a pior das atrocidades cometidas na história moderna.
“Nós privilegiamos a perspectiva das vítimas. Não dizemos a vítimas: ‘o seu sofrimento não é importante’. O genocídio é visto como o maior dos crimes. Dizer a pessoas que elas não sofreram genocídio é deslegitimar o seu sofrimento. E então vem a questão de saber qual foi o genocídio mais violento”, diz.
“Acredito que o nazismo é único por dois aspectos: um deles foi o propósito de destruição, ou seja, o esforço de exterminar e erradicar uma população; e segundo pelo fato de todas as vítimas de genocídio compararem seu sofrimento ao nazismo para expressar que estão padecendo da maior atrocidade possível.”
Já Evans cita a extrema crueldade dos nazistas com os judeus como elemento que diferencia o regime de Hitler do stalinismo.
“Os nazistas trataram os judeus com brutalidade e sadismo particulares. Havia um desejo de degradação e desumanização que torna a violência nazista particular. No comunismo, a violência não tinha cunho racial. Ela era dirigida contra quem acreditavam ser subversivos e não embutia o mesmo ódio visceral que o nazismo tinha pelos judeus”, avalia.
Totalitarismo
Em alguns aspectos, no entanto, o nazismo de Hitler e o comunismo da União Soviética se assemelham, dizem Evans e Barkan.
Ambos foram regimes totalitários, com centralização de poder nas mãos de um líder (Hitler e Stalin), alto grau de controle do Estado sobre a vida pública e particular dos cidadãos e repressão violenta a opositores.
“Se procurarmos semelhanças, podemos dizer que ambos foram regimes ditatoriais que não permitiam oposição, não permitiam liberdade de expressão, organizavam eleições de maneira a garantir 99% de apoio”, diz o historiador britânico Richard Evans, da Universidade de Cambridge.
“Portanto, em ambos, havia uma mistura de manipulação, intimidação, censura e supressão da oposição.”
Stalin comandou a União Soviética por 29 anos, de 1924 até a sua morte em 1953. Adolf Hitler liderou a Alemanha por 12 anos, entre 1933 e 1945.
Comparar nazismo com comunismo é trivializar o holocausto?
Uma discussão que sempre vem à tona quando são feitas comparações entre nazismo e comunismo é se esse exercício pode induzir a uma “trivialização do holocausto”.
Para Elazar Barkan,”há duas motivações em comparar o holocausto a outras catástrofes”.
“Uma é minimizar o holocausto e isso não é legítimo. A outra é evidenciar outros atos de extrema violência. E isso é legítimo. (A legitimidade) depende do que está sendo comparado e de quem está comparando”, disse à BBC News Brasil.
Segundo Barkan, quando uma vítima de genocídio usa o holocausto como comparação para dar a dimensão de seu sofrimento, isso não pode ser repreendido. Mas há casos em que a comparação serve a uma tentativa de minimizar o holocausto.
“Assim como há pessoas que querem comparar sua situação com o holocausto, há quem queira negar o holocausto. A comparação em alguns casos embute uma negação do holocausto”, diz.
“Na minha visão, a pergunta deve ser: qual é o objetivo da comparação? Se a comparação serve a minimizar o nazismo, obviamente isso não é aceitável.” Segundo o professor da Universidade de Columbia, o risco de trivializar o holocausto é um aumento do antissemitismo e da violência contra judeus.
Isso porque, quando o sofrimento de um povo não é reconhecido e relembrado em toda a sua dimensão, a ideologia que o provocou pode se restabelecer e se difundir progressivamente.
Por: Nathalia Passarinho – Da BBC News Brasil em Londres