Nada ficou no lugar. Perplexos, nos tornamos atores principais de um filme que mistura suspense, terror e esperança em um enredo surpreendente, cujo final ainda está sendo escrito.
Outro dia sonhei com a minha avó e sua bucólica cidade do interior. Estávamos todos assustados por causa de uma epidemia, e ninguém mais varria suas calçadas. Vizinhos, o WhatsApp de antigamente, repassavam fake news absurdas sobre supostos remédios. Era um clima tão pesado que acordei aliviada. Durou alguns segundos, entre o despertar da fase REM e a consciência de um novo dia, para me dar conta de que o pesadelo é meu hábitat atual, sem nenhuma perspectiva de sair dele no curto prazo.
Em meio a um apocalipse econômico, cultural e biológico, somos/sou obrigada a me ressignificar. Faz muitos anos que, no papel de diretora editorial, levo uma vida dupla: a de jornalista e a de executiva. Em ambas as funções, nunca trabalhei com tanta responsabilidade sobre os ombros. Jornalismo raiz é fundamentado em técnica, perguntas que ninguém quer responder, pesquisas profundas, contraponto, checagem, checagem e mais checagem. A liderança nos tempos do cólera expõe as diversas realidades do distanciamento social e a necessidade de manter a esperança, como o apaixonado Florentino, herói do livro de Gabriel García Márquez.
Durante o evento mais traumático para o planeta (na perspectiva dos humanos, claro), lembro que o jornalismo já foi colocado na lista dos ameaçados de extinção. Tipo assim — ararinha-azul, onça-pintada, tamanduá-bandeira e jornalistas. Mas o novo coronavírus mostrou um grande #sqn. Você vai se informar por influencer? Seguir as receitas de líderes políticos? Entre o desdém de uma gripezinha e a recomendação de ingestão de desinfetantes, a audiência recorde nos ajuda a colocar tudo na perspectiva correta: a demasiadamente humana, em busca do homem do futuro. Aquele que, entre outras atitudes éticas, paga por um conteúdo de qualidade e, em vez de hackear e compartilhar em grupos, presenteia amigos com edições adquiridas nesse endereço aqui.
Neste primeiro mês de quarentena, trabalhamos juntos e separados para trazer um coletivo de reportagens, entrevistas nacionais, internacionais, artigos e muitos dados. Dezenas de pessoas desnudando um pouco como será o mundo quando o nevoeiro se dissipar. Muitos já conseguem enxergar as mudanças radicais no comportamento do consumidor, nas estruturas da indústria, na globalização. Essa crise traz consigo o wake up call: entramos de vez no século 21.
Quando sairmos assustados de nossas tocas, quase como um episódio inédito da National Geographic sobre o homo sapiens com medo de um inimigo invisível, não teremos mais o mundo que passou. Nossos lugares prediletos podem deixar de existir, o transporte será ressignificado, os espaços públicos replanejados. Passaremos da economia do compartilhamento para a economia da desaceleração. Da globalização para o meu bairro, minha vida.
Podem até inventar rapidamente uma vacina para esse vírus. Afinal, 100 milhões de cientistas estão neste momento debruçados sobre esse problema, em busca da cura. Por enquanto, esse é o novo 7×1, e sempre me questiono quando dizem que fomos pegos de surpresa e encarcerados por causa de um micro-organismo tão simples. O que seria razoável? O Godzilla? Os reptilianos? Cthulhu?
Mas o que essa crise toda expôs é que o vírus também somos nós. O crescimento exponencial, o consumismo inconsequente, o turismo predador sem se importar com os ecossistemas no qual estamos inseridos. Como um ser quarentenado, observo dias mais bonitos, céus mais estrelados. Fico intrigada com a notícia de capivaras passeando às margens do rio Capibaribe, em Recife. Nesse realismo fantástico, esperaria isso dos leões de Mestre Nuca, caminhando tranquilos na orla de Boa Viagem.
Nesse Teatro do Absurdo, estou fechada com a ciência e com as fontes que entrevistamos durante esta que é nossa primeira edição do Novo Mundo. O planeta não precisa de humanos. E apesar de todo o sofrimento, temos também uma chance de reinventar a nossa história, baseada em princípios como responsabilidade, solidariedade, colaboração. Eu vou pegar essa chance. E espero que um voo para Marte leve aqueles que não entenderam o recado e a oportunidade.