Segundo especialista, ambiente criado por parte dos vendedores do Mercado Municipal de São Paulo faz com que clientes fiquem acuados e mais vulneráveis a pagar valores absurdos por frutas para saírem da situação. Oferecer uma fruta de graça, por exemplo, passa uma sensação de livre escolha e, naturalmente, os consumidores têm aversão a negar coisas gratuitas, explica.
Movimentação de pessoas no Mercado Municipal de São Paulo, conhecido como Mercadão. — Foto: GERO RODRIGUES/O FOTOGRÁFICO/ESTADÃO CONTEÚDO
Com a repercussão das denúncias feitas por consumidores sobre o chamado”golpe da fruta” em algumas bancas do Mercado Municipal de São Paulo, muitos internautas se viram na mesma situação e outros argumentaram que a situação poderia ser evitada simplesmente dizendo um “não” ao vendedor. Mas para especialistas, em casos como este, o consumidor pode sentir medo ou até um constrangimento moral que lhe impede de recusar a compra.
O “golpe da fruta” viralizou nas redes sociais após internautas relatarem terem pago valores entre R$ 100 e R$ 1.200 por bandejas de frutas no Mercadão. Em um perfil no Instagram, com mais de 14 mil seguidores, clientes relataram que acabaram aceitando pagar valores abusivos por frutas relatando vergonha, constrangimento e até medo.
Especialistas ouvidos pelo g1 explicam que o ambiente criado pelos vendedores dificulta que a pessoa negue a oferta e siga em frente. A oferta para o cliente provar a fruta é uma técnica muito eficaz, explicam. Para turistas, é ainda mais difícil sair da situação, por estarem em um ambiente desconhecido.
“Tudo começa quando o vendedor já oferece a fruta para que o cliente prove, de graça. Essa questão de oferecer a fruta é uma técnica – óbvio que pode ser que eles não saibam, mas isso tem um efeito psicológico muito forte. É uma técnica de persuasão. Isso pode cativar e envolver a pessoa em uma decisão futura. O nome disso na psicologia social é ‘pé na porta’ porque é exatamente começar introduzindo um comportamento no cliente”, afirma Sibele Dias de Aquino, especialista em psicologia do consumidor da Sociedade Brasileira de Psicologia (SBP).
Aquino explica que oferecer a fruta de graça passa uma sensação de livre escolha e, naturalmente, os consumidores têm aversão a negar coisas gratuitas. “É difícil porque a gente acha que é uma oportunidade. De início, o cara oferece uma fruta de graça, quem nega uma coisa de graça? Ninguém. Existe toda uma linha teórica que explica que temos uma aversão a perda, isso também está relacionado a perda de oportunidades.”
Para Marcelo Santos, professor de psicologia na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o ambiente criado pelos vendedores no Mercadão, como prática de venda, cria uma situação de exposição que diminui as chances de defesa da vítima.
“Todos os relatos têm, em comum, uma situação de constrangimento, que vem de emoções morais ligados ao interesse de bem-estar, principalmente o bem-estar coletivo na sociedade. Então existe esse movimento do constrangimento sendo posto, causando uma exposição à vítima, fazendo com que ela crie um mal-estar por entrar em evidência naquele instante “, afirma Santos.
“Esse constrangimento social é uma exposição, e uma exposição que a grande maioria das pessoas não gosta de ter, isso gera uma tentativa de se livrar daquela situação até aderindo a uma fruta comum por um valor abusivo só para fugir daquele momento”, completa.
Falso compromisso
Barraca de frutas no Mercadão Municipal de São Paulo — Foto: Deslange Paiva/ g1 SP
Quando o cliente aceita provar a fruta de graça, segundo Sibele Dias de Aquino, ele cria um processo mental de falso compromisso com o vendedor. Quem aceita provar a fruta tem mais chances de acabar pagando pelo produto do que quem não aceita.
“É muito natural a gente já se sentir, não obrigado, mas comprometido. Essa é uma estratégia que faz meio com que a pessoa desenvolva um comportamento futuro. É como se, de alguma forma, a pessoa que provou assumiu um compromisso com o vendedor, mesmo não sendo”, afirma Aquino.
Indução à compra
Para Santos, os consumidores são induzidos a concluir a compra por pressão psicológica dos vendedores. Mesmo que velada, ela existe, sendo uma técnica de vendas. “Alguns vendedores acabam induzindo a pessoa no sentido de se valer de alguma situação, seja ela vexatória, vantajosa, ameaçadora ou não.”
Outra situação de pressão velada é ameaçar fazer um escândalo se o consumidor não levar a fruta ou pressioná-lo a concluir a compra enquanto segura uma faca.
O psicólogo explica que, em situações como essas, a pessoa tende a tentar se desvincular daquilo, tentando resolvê-la da melhor forma possível. “Dentro da perspectiva da psicologia, isso se explica de várias formas, principalmente na comportamental, onde vemos o condicionamento dessa vítimas a partir da sacada que os vendedores têm, tudo isso tem a ver com a efetividade final da compra, mesmo que seja abusiva.”
A criação de um ambiente de pressão faz com que o cliente não consiga se expressar no momento da compra. Para o psicólogo, nesses casos, a pessoa só se dá conta da situação quando se afasta do local.
Nisso, após uma reflexão sobre o ocorrido, nasce um sentimento de revolta, no qual a vítima fica se remoendo e se perguntando como se deixou levar por aquela situação. O que também pode ser acompanhado de uma vergonha por ter sido enganada. “Mas ela se deixou levar porque existe uma habilidade por parte do vendedor de ofertar condições ambientais onde a vulnerabilidade do consumidor se apresenta”, completa.
“Quando a gente age sob emoção, o conteúdo geral de qualquer mensagem que envolva muita emoção neutraliza a nossa capacidade crítica”, afirma Sibele Aquino.
Mas afinal, é golpe?
Para Bruno Boris, especialista em direito do consumidor, a prática de não ser claro ao informar o preço fere um dos princípios do Código da Defesa do Consumidor. “De fato, o preço deles é muito acima da média, as frutas são até de qualidade, mas existe uma prática de não deixar muito claro para o consumidor o preço que ele irá pagar durante a venda.”
“Tem aquela história de vender por gramas, misturar frutas, ele pode até fazer isso, mas é necessário deixar claro para o consumidor quanto ele vai pagar. Além disso, a pesagem tem que ser feita pela fruta que custa mais barato. Quando não há clareza na informação, tem que ser vendido pelo preço mais baixo. O cliente pode exigir isso.”
“O vendedor pode chegar e falar, olha o abacaxi é R$ 100. Se alguém quiser pegar por isso tudo bem, mas ainda assim tem limites. O que ele não pode é cobrar um preço abusivo se aproveitando da ignorância do consumidor, como falar: ‘Pega em gramas que na hora do pagamento fica mais barato’. Isso é uma forma de publicidade enganosa, ainda que o produto seja bom.”
Boris reforça que, apesar do Mercadão ser um ponto turístico e vender produtos mais caros, uma fruta não pode ter o dobro do preço de lugares considerados de classe alta, por exemplo.
O que fere o direito do consumidor?
- Falta de clareza nas informações sobre o preço que será pago;
- Publicidade enganosa, por exemplo, dizer que o valor em gramas sai mais barato do que em quilo;
- Não realizar a pesagem na frente do produto na frente do consumidor.
“Qualquer prática comercial de confundir o consumidor, seja onde for, é considerada prática abusiva e eventualmente eles podem ser penalizados. O consumidor pode pedir uma nota fiscal, se ele perceber que pagou muito mais caro por um produto, pode denunciar no Procon ou até no Juizado de Pequenas Causas.”
Ruído de informação
Para Boris, os vendedores se aproveitam de uma técnica de ruído de informação para fazer com que o consumidor pague um valor bem acima da média depois da pressão feita para a compra do produto. “Esse ruído de comunicação é uma forma de confundir o consumidor e eventualmente colocar um preço maior do que ele poderia cobrar, se você perguntar qual a lógica do preço, ele não vai explicar, ele vai abaixar o preço do valor. Ele não quer explicar a lógica, ele quer fechar negócio.”
Sibele Aquino também reforça que esse ruído de informação, em um ambiente em que o cliente se sente acuado, facilita para que o vendedor feche o negócio.
Fiscalização do Procon-SP
Na quinta (17), agentes do Procon fiscalizaram bancas do Mercadão. Depois de interditar três barracas na terça, os agentes autuaram 11 estabelecimentos por desrespeito à legislação. Entre as irregularidades estavam venda de frutas importadas com o prazo de validade vencido e sem conter os dados do importador e falta de informação do preço de forma precisa e adequada, especificando se o valor era cobrado por unidade, quilograma ou grama
Segundo a concessionária, as lojas ficam interditadas até demostrarem que os problemas denunciados foram corrigidos. Depois, é analisado se as pendências foram realmente solucionadas e, se for o caso, é permitida a reabertura.
“Só vão ser reabertas quando eles comprovarem quando efetivamente consertaram o que foi denunciado, só assim irão reabrir, e será desse forma assim em diante. Temos canais pela internet, e-mail, fisicamente também recebemos muitas queixas”, afirmou Alexandre Germano, diretor-presidente da concessionária Mercado SP S/A.
Alexandre informou também que a demanda de frequência no setor de frutas do Mercado Municipal vem caindo. “As pessoas estão evitando passar no local por medo de ser lesado. Mas ainda assim não podemos generalizar, nem todos os comerciantes fazem a mesma coisa, são práticas pontuais, não é todo o setor de fruta que comete isso”.
O consumidor que se sentir forçado a comprar pode registrar uma reclamação no Procon-SP. O órgão informou que acompanha o caso de perto e começou a fazer fiscalizações com agentes a paisana. Uma cartilha que foi divulgada no site do Procon deixa claro quais são as obrigações do comerciante:
- É dever do estabelecimento informar o consumidor sobre o preço dos produtos antes da efetivação da compra. Além disso, produtos oferecidos para degustação – sem que o consumidor solicite – são considerados amostra grátis e não deverão ser cobrados.
- É dever do estabelecimento afixar os preços dos produtos oferecidos ao público consumidor de modo que seja possível identificar o valor sem necessidade de qualquer esforço para a sua compreensão – a informação deve ser correta, clara e estar próxima ao produto. O objetivo é garantir que o consumidor visualize o preço sem ajuda do comerciante e antes de decidir pela compra.
- O preço à vista deve sempre ser divulgado e, se houver opção de parcelamento, deve haver a divulgação de suas condições: número e valor das prestações, taxa de juros e demais acréscimos ou encargos, bem como o valor total a ser pago com o financiamento.
Segundo os comerciantes do Mercadão, falta fiscalização da administração para impedir a sublocação de barracas, que segundo eles desencadeiam alguns problemas como os dos presos abusivos dos produtos. A concessionária informou que a sublocação é proibida e está monitorando a prática, inclusive, uma das barracas interditadas foi fechada também por esse motivo.
O g1 esteve no local na segunda-feira (14), visitou quatro barracas e, em todas, a equipe foi constrangida a comprar frutas por valores muito acima da média. No total, foram gastos quase R$ 100 por uma única unidade de fruta-do-conde, cinco morangos e 18 tâmaras.
Uma das estratégias mais usadas e presenciadas pela reportagem foi a de tentar convencer os consumidores a levar bandejas de frutas pelo preço do grama de cada produto, que segundo eles, é mais barato que o quilo.
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Frutas por valores acima da média
Logo quando se entra no Mercadão, vendedores já iniciam a abordagem, insistindo para que o cliente prove diversas frutas. Enquanto isso, eles contam histórias sobre a origem dos produtos e em nenhum momento citam os preços.
Em todas as barracas eles usam o mesmo argumento e falam que, por ser “a primeira compra do dia, o cliente recebe promoções”.
Em uma das barracas, um vendedor informou ao g1 que o quilo da fruta-do-conde, também conhecida como pinha, sairia por R$ 69,90, porém, se levasse em gramas, o valor ficaria mais barato. De acordo com a Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), o preço médio do quilo da fruta-do-conde no atacado é de R$ 8.
O vendedor argumentou que, levando duas frutas-do-conde, o cliente não teria 1 kg da fruta, já que em média, cada uma pesava 300 gramas.
Na hora de pesar e calcular o pagamento, o primeiro valor apresentado foi de R$ 80 por duas frutas-do-conde. Com a recusa, o vendedor insistiu em embrulhar duas unidades e disse que faria o valor “especial” de R$ 60 pelas duas. Apesar da insistência, a reportagem levou apenas uma, que saiu por R$ 40.
“Olha, as duas dariam esse valor [R$ 80], mas eu posso fazer um preço especial, R$ 60 para você. Vai pagar R$ 40 em uma só? Leva as duas por R$ 60, você tem dinheiro, sim”, disse o vendedor.
Em uma outra banca, o vendedor informou que estava com uma promoção em que 100 gramas de qualquer fruta sairia pelo valor de R$ 12.
“É [sic] R$ 12 cada 100 gramas, você pode misturar as frutas que mais gostou. Pega só um pouquinho das frutas que você mais gostou de provar. O mix fica R$ 12 , baratinho”, disse.
A reportagem pediu que colocassem 200 gramas de morango e tâmaras e, depois disso, a bandeja foi mandada para os fundos da barraca, onde seria feito o pagamento.
Na hora do pagamento, o funcionário do caixa não soube explicar com qual referência de quilo ele iria fazer o cálculo do valor, já que tinha duas frutas diferentes na pesagem. Apenas acrescentou o valor de R$ 129,90 no caixa como referência e tentou cobrar de início R$ 80 por 5 morangos e 10 unidades de tâmaras.
A reportagem falou sobre a promoção informada de R$ 12 por 100 gramas, mas na hora da pesagem os 200 gramas se tornaram 400 gramas. Depois de muita insistência, o vendedor ofereceu a bandeja por um preço “especial” de R$ 40. Segundo a Ceagesp, a média do quilo do morango é de R$ 8,03 em São Paulo e da tâmara é R$ 30,52.
Ainda segundo relatos de consumidores do local, além dos preços abusivos, os vendedores também costumam colocar açúcar na fruta na hora de ser degustada. A reportagem não conseguiu verificar se as facas que os vendedores usaram para cortar as frutas tinham açúcar, mas todas as frutas provadas estavam extremamente doces.
O g1 esteve no local por cerca de 2 horas e visitou quatro barracas, com compras em três delas. Uma fruta-do-conde, 5 morangos e 18 tâmaras saíram por R$ 93, após muito “choro”.
Multas aplicadas
Segundo a concessionária Mercado SP SPE S.A., as multas aplicadas aos lojistas variam de 10% a 100% do valor da locação do box do lojista. Se houver uma segunda multa, o contrato com o lojista será rescindido, e a concessionária irá ajuizar ação de despejo.
“A Concessionária realiza reuniões rotineiras com os responsáveis pelas bancas de frutas, orientando e advertindo sobre as boas práticas a serem observadas por todos, bem como, advertindo das consequências do não cumprimento do Regimento Interno, do Contrato firmado e da legislação em vigor”, afirmou a empresa em nota.
“É muito importante que a companhia seja informada de eventuais abusos para que sejam tomadas as medidas necessárias. Para isso, entre em contato conosco pelo e-mail: sac@mercadospspe.com.br”, informou a concessionária.
O Mercadão de São Paulo, no Centro da cidade, é um dos principais pontos turísticos da capital, famoso pelo sanduíche de mortadela e pela pastel de bacalhau.