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Os documentos históricos brasileiros revelam paralelos diretos entre a pandemia de gripe espanhola em 1918 e a pandemia de coronavírus em 2020. Muitos exemplos estão em informações compiladas na obra A capital da vertigem: uma história de São Paulo de 1900 a 1954 de Roberto Pompeu de Toledo.
A sequência de eventos é muito parecida com a atual: em outubro de 1918, após a constatação da doença, as autoridades sanitárias paulistanas se reuniram sob liderança do médico Arthur Neiva e declararam o estado epidêmico; hospitais improvisados foram estruturados em escolas e clubes; boa parte do comércio fechou as portas, seja por falta de fregueses, seja por medo deles, seja por doença dos funcionários; o Serviço Sanitário distribuiu conselhos à população como “evitar aglomerações, não fazer visitas, evitar toda fadiga e excesso físico, evitar as causas de resfriamento, tomar cuidados higiênicos com o nariz e garganta, por meio de inalações de vaselina mentolada e gargarejos com água iodada, ácido cítrico ou tanino”. As escolas suspenderam as aulas e se tornaram hospitais de campanha, como os colégios Sion, São Luís, Mackenzie e Des Oiseaux.
O Theatro Municipal suspendeu suas atividades, os clubes esportivos também: Palestra Itália e Paulistano ofereceram suas sedes para instalação de leitos, o Corinthians arrecadou contribuições para a Cruz Vermelha. Os movimentos de solidariedade eram generalizados e divulgados minuciosamente nos jornais, assim como endossos às autoridades sanitárias. No jornal O Estado de S. Paulo de 31 de outubro de 1918 um leitor indignado criticou o comportamento daqueles que eram “indiferentes aos conselhos da ciência”. Naquela epidemia também não faltaram boatos como, por exemplo, o rumor de que a cachaça prevenia a doença, assim como propaganda farmacêutica de remédios supostamente eficazes contra a gripe como “Mentholatum”, “Odorana” e “Vanadiol”. No dia 19 de dezembro Arthur Neiva declarou encerrado o estado epidêmico na cidade de São Paulo depois de 66 dias.
Há, no entanto, uma grande diferença entre os dois períodos: os agravantes de cada pandemia. Em 1918 o Brasil enfrentou os chamados “quatro Gs”: a gripe, a guerra mundial, a geada que assolou plantações e a praga dos gafanhotos que terminou de destruir o que sobrou nas fazendas. Deste modo, os agravantes foram eminentemente fatores externos: guerra, geada e gafanhotos. Já em 2020, enfrentamos a pandemia de coronavírus com dois agravantes óbvios: a crise econômica e a crise política. Assim, no cenário contemporâneo os fatores agravantes são, sobretudo, causados pelos próprios brasileiros. A crise econômica não começou com o coronavírus, ela é resultado de anos de incompetência política, administrativa e corrupção sistêmica. Segundo a Pesquisa XP Maio apenas 23% dos entrevistados consideram o governo atual culpado pelo cenário econômico – os outros 77% atribuem a culpa a outras causas como os governos Lula, Dilma e Temer. Já a crise política é atribuída aos gestores públicos atuais: 48% consideram a atuação governamental péssima. Essa percepção é generalizada no exterior: a resposta brasileira à pandemia de coronavírus é considerada por autoridades políticas e epidemiológicas do mundo todo como a mais ineficiente entre as nações do G20. Mesmo aliados do presidente brasileiro, como Donald Trump, criticaram publicamente a gestão brasileira da crise.
O estudo das epidemias do passado ensina que não existe passe de mágica. O desafio, no curto e no médio prazo, é um desafio de projeto, de gestão, de liderança política decente. O que se espera do governo é o mínimo: respeito pelo cidadão, coordenação dos recursos disponíveis, trégua em intrigas políticas de importância marginal, transparência das informações, respaldo científico, inteligência e agilidade na tomada de decisões. A incompetência mata o ânimo e fecha o futuro. Em outras nações como Israel, governo e oposição estruturaram uma resposta unificada à pandemia desde o início. Nos Estados Unidos, congressistas democratas e republicanos souberam separar seus conflitos políticos domésticos dos desafios impostos pelo vírus. Na Alemanha, Angela Merkel realizou discurso histórico articulando unidade dos alemães neste período. Mas, no Brasil, nem a pandemia de Covid-19 foi capaz de abrir uma trégua em embates políticos estúpidos. Machado de Assis escreveu que “o cinismo, que é a sinceridade dos patifes, pode contaminar uma consciência reta, pura e elevada, do mesmo modo que o bicho pode roer os mais sublimes livros do mundo”. Cinismo político não é estratégia de enfrentamento à uma doença que já matou mais de vinte e dois mil brasileiros e brasileiras.
* Davi Lago é pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo