Só neste ano, 53,8 mil denúncias foram feitas pelo telefone envolvendo 240.996 violações. Para as vítimas, uma dor que se prolonga pela vida afora
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Hoje com 28 anos, ela não se lembra quando começaram os abusos. “Sei que foi por bastante tempo e pararam mesmo quando eu tinha 7 ou 8 anos”, relata Adriana (nome fictício para proteger a identidade da vítima). O agressor era o pai e a violência acontecia dentro de casa. “Um dia, ele foi para Tocantins a trabalho, eu orei e pedi a Deus. Disse: Deus, não sei por que estou te pedindo isso, mas esse ‘carinho’ que meu pai faz comigo me incomoda, eu não gosto. Não quero que ele faça mais isso comigo, faça-o parar, por favor”, conta. A história de Adriana é emblemática por guardar características que, segundo especialistas, coincidem com as de outros milhares de vítimas da violência contra crianças e adolescentes no Brasil: o agressor é um familiar ou pessoa próxima, os abusos ocorrem em casa, o alvo se cala. Apesar da subnotificação, só neste ano, o Disque 100 recebeu 53.854 denúncias de violência contra crianças ou adolescentes no país.
Adriana conta que depois desse dia o pai nunca mais encostou a mão nela. Porém, a jovem só foi entender que era vítima de abuso quando já era adulta. “Faltou educação sexual infantil. Na época, não tinha conhecimento disso. Se eu tivesse tido educação sexual infantil, isso poderia ter sido evitado. Porém, naquela época a gente não tinha essas informações.” Ela disse que sentia uma tristeza profunda, sem amor, excluída. “Achava que isso era normal. Até que comecei a estudar e ver que não. Cheguei a desejar a morte do meu pai”, relembra.
Hoje, ela se sente mais confortável em falar sobre o assunto. “Passei por um processo bem difícil de perdão e cura. Hoje consigo falar sem sentir dor.” Adriana atribui à fé essa superação em sua vida. “Se não fosse Jesus, eu não estaria aqui. Já tive overdose (de drogas) várias vezes. Foi só conhecer Jesus que minha vida foi transformada. Hoje tenho paz no meu coração”, relata.
Ela começou a frequentar a Igreja Batista da Lagoinha aos 20 anos. Nunca denunciou o pai, que morreu em 2016. “Tinha muito medo de ele fazer alguma coisa comigo. Hoje todos da minha família sabem. É difícil para eles entenderem tudo. Só quem viveu, de fato, consegue entender. Mas escutam, ficam do meu lado.” A jovem diz que conseguiu perdoar o pai antes de ele morrer, mas que “não foi fácil”.
CONSCIENTIZAÇÃO
Em 2000, para chamar a atenção de casos como o de Adriana, foi instituído o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. A escolha está relacionada ao assassinato de Araceli Cabrera Crespo, uma menina de 8 anos que foi drogada, estuprada e morta por jovens de classe média alta, em 18 de maio de 1973, na cidade de Vitória, Espírito Santo. Ninguém foi preso pelo crime. O objetivo da data é sensibilizar, conscientizar e alertar sobre a necessidade de combater esse tipo de crime, além de incentivar o registro de denúncias das violações sofridas pelo público infantojuvenil.
Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos mostram que entre 1º de janeiro e 13 de maio deste ano, o Disque 100 recebeu 53.854 denúncias de violência contra crianças ou adolecentes no país. A partir dessas denúncias foram constatadas 240.996 violações diferentes contra essas vítimas, sendo que 59,5% delas eram do sexo feminino e 28,18% do sexo masculino. As demais não foram identificadas.
Ainda segundo o órgão, abril foi o mês com maior número de denúncias, com 36.664 registros. Minas Gerais é o terceiro estado com maior número de denúncias gerais, com 13.359. São Paulo lidera o ranking, com 31.676, seguido do Rio de Janeiro, com 19.032.
Já Belo Horizonte registrou 3.063 denúncias e 14.544 violações e é a terceira cidade no ranking de denúncias gerais no Disque 100. O serviço funciona diariamente, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações podem ser feitas de todo o Brasil por meio de discagem direta e gratuita, de qualquer terminal telefônico fixo ou móvel, bastando discar o número 100.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), em Minas, foram registrados 2.651 crimes contra a dignidade sexual de crianças de até 11 anos e 3.827 contra adolescentes entre 12 e 17 anos, em 2020. Já em 2021, foram 2.715 crimes contra crianças e 3.870 contra adolescentes. Ainda segundo a Sejusp, em Belo Horizonte, foram registrados 334 casos contra crianças e 364 contra adolescentes em 2020. No ano passado, foram 341 contra crianças e 379 contra adolescentes na capital.
DESAFIOS
O delegado Vinícius Dias, da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente, afirma que o maior desafio no combate a esse tipo de crime é o controle de três estruturas.
“A primeira é a realização de políticas públicas voltadas para a colocação da criança ou adolescente no local adequado, seja escolar, familiar. Dentro de um seio familiar saudável, dentro de uma escola que a induza a ser respeitada.”
A segunda seria a orientação dos familiares ou pessoas próximas à criança para fazer uma vigilância sobre as atividades daquela criança. “No momento em que ela sofre o abuso, são pessoas do relacionamento mais próximo dela, um padrasto, uma madrasta que é conivente, um tio que mora na mesma residência.”
A terceira seria uma assistência adequada por parte dos órgãos competentes. “Conselho Tutelar, organizações não governamentais de proteção que deem encaminhamento a essas vítimas. Seriam políticas de orientação para esses órgãos que auxiliam no combate para que assistam essas vítimas de maneira mais eficiente e adequada.”
Dias alerta que os agressores são, na maioria das vezes, pessoas próximas do convívio dessas crianças e adolescentes. “É muito incomum alguém da família não ter ciência da exploração ou abuso praticado. Geralmente, são famílias de pais separados ou o pai de mais de uma criança com mulheres diferentes ou o contrário.”
O agressor pode ser ainda um parente muito próximo ou uma pessoa que tem acesso recorrente a essa vítima, como um professor por exemplo. Diante disso, a denúncia desse tipo de crime pode ser mais difícil. “Como são famílias já desestruturadas ou o agressor exerce um alto grau de superioridade na família, seja pelo poder econômico ou de autoridade, as pessoas ficam com receio de denunciar. Até de ameaça aos outros membros da família. É a subnotificação da ocorrência.”
O delegado explica, porém, que o familiar que não denuncia também pode ser responsabilizado pelo crime. “Ele passa a ser garantidor e responde criminalmente por isso, seja por participação ou coautoria. Pelo Estatuto da Criança e do Adolecente, ele tem o dever de comunicar.”
CANAIS DE DENÚNCIA
O delegado destaca que a denúncia desses crimes pode ser feita de três maneiras. Quem quiser fazer uma denúncia anônima pode ligar para a delegacia especializada por meio do número 181. Os terminais funcionam 24 horas por dia. Outro caminho é procurar os conselhos tutelares. “Eles têm profissionais capacitados e para o pronto atendimento àquela vítima.”
O terceiro é procurar a Polícia Militar. “Eles também têm equipes especializadas para essa primeira abordagem. Ligar para o 190. Os policiais vão verificar se existem indícios que comprovem aquelas violações e conduzem para a delegacia para os procedimentos adequados.”
Dias ressalta comportamentos que devem servir de alerta para os pais ou responsáveis. “A primeira característica é o recuo, aquele confinamento íntimo. A criança passa a não conversar muito, fica repulsiva a relações sociais por medo ou receio de que a pessoa que vai ajudá-la possa fazer a mesma coisa. Outras crianças sofrem com distúrbios de choro, compulsividade, ansiedade.”
Segundo ele, mudanças bruscas de comportamento podem estar relacionadas a possíveis abusos. “Se ela passa a dormir mais, ter preguiça de ir para a escola. Verificar se o filho chega com alguma marca da escola ou após visitar pais ou avós. Uma conversa franca com a criança também é importante. Deixá-la à vontade para falar alguma coisa.”