Documento não é assinado sob a justificativa de risco de retaliação. Reportagem apurou que manifesto está sendo escrito há meses, e divulgação foi incentivada pela crítica de senadores a Araújo nesta semana
(crédito: Evaristo Sá/AFP)
Em uma carta que tem circulado neste sábado (27/3), diplomatas pedem a saída do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, em meio ao intenso desgaste que o chanceler tem sofrido, em especial na última semana. No texto, os diplomatas apontam a situação do Brasil no âmbito da pandemia, com mais de 310 mil mortos pela covid-19, sendo que o papel do Itamaraty na resposta à pandemia ganhou grande relevância no debate nacional.
Entretanto, segundo os diplomatas, “nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática”. “O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil. A crise da covid-19 tem revelado que equívocos na condução da política externa trazem prejuízos concretos à população”, pontua o texto.
O manifesto não é assinado, mas a reportagem confirmou a autenticidade. Não foi possível identificar, entretanto, quantos diplomatas ajudaram a redigir o texto ou quantos reforçaram o entendimento no sentido do que foi ali colocado. No texto, eles justificam que a carta “foi elaborada por diplomatas da ativa que não podem assiná-la como desejariam em razão de dispositivos da Lei do Serviço Exterior”. A referida lei impede que os servidores se manifestem sobre a política externa brasileira sem a “anuência da autoridade competente”.
A reportagem conversou com um diplomata na condição de anonimato que afirmou que o manifesto está sendo elaborado há meses, desde meado do ano passado, mas que sentiram-se incentivados a divulgá-lo depois da reação do Senado Federal ao ministro nesta semana. Na quarta-feira (24), em audiência na Casa, senadores de diversas legendas (como PSDB, MDB e partidos de oposição, como Rede) pediram a renúncia do chanceler, questionado a atuação dele no âmbito de negociações para obtenção de vacinas de outros países.
Pressão do Senado Federal
Naquele mesmo dia, o ministro já havia sido cobrado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro, ministros de Estado, e os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux.
Ernesto Araújo tem uma atuação apontada como muito ideológica, com histórico de troca de farpas com a embaixada da China no Brasil e críticas a um chamado “globalismo”. Em outubro do ano passado, em meio à pandemia, Araújo chegou a dizer que preferia ver a política externa do país sendo condenada por outras nações a se aliar ao “cinismo interesseiro dos globalistas”. “O Brasil fala de liberdade através do mundo; se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”, disse.
O diplomata com o qual o Correio conversou, que atua há mais de 10 anos no cargo, disse que participou ativamente do processo de redigir a carta, e que houve uma interação com “dezenas e dezenas” de colegas, espalhados em diversos postos no mundo, mas não soube precisar com exatidão quantos. As trocas para a construção da carta se deram pelo aplicativo de mensagem WhatsApp, e a intenção foi publicizar o documento.
“Não sei se foram 100, 300 ou 500 (servidores). Mas reflete o sentimento majoritário”, disse. Ele frisou que a insatisfação vem de muito tempo, mas que se sentiram estimulados após observar a posição de clara aversão do Senado ao ministro.
O diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida, um grande crítico à gestão de Araújo, disse ao Correio que desconhecia a origem da carta, mas afirmou que ela, de fato, transmite um sentimento dos servidores do Itamaraty. “Corresponde ao que a maioria pensa, porque só um bando de maluco ainda sustenta o Ernesto. O pessoal está deprimido, todos ansiando para que ele vá embora”, disse.
Almeida foi exonerado em março de 2019 do cargo de presidente do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri) depois que publicou no blog pessoal textos com críticas à diplomacia brasileira. Para ele, um grupo de diplomatas resolveu publicar a carta agora depois que os senadores “deram o tom”.
Críticas a falta de assinatura
Apesar de justificarem no texto a impossibilidade de assinarem o manifesto, por risco de retaliação por descumprirem o que é previsto em lei, a ausência de assinaturas foi criticada por alguns, como o diplomata aposentado e jornalista Pedro Luiz Rodrigues. Para ele, o documento deveria ter sido assinado para ter força. Além dele, o Correio conversou com o professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Juliano da Silva Cortinhas, que também criticou o fato de a carta não ter sido assinada.
Para o professor, ainda que haja a legislação impedindo os servidores do Itamaraty de se manifestarem, ela fere o direito constitucional de manifestação dos servidores públicos.
“Essa carta deveria ter sido assinada e depois em grupo os diplomatas poderiam buscar seus direitos, inclusive direitos constitucionais via processo penal, se fossem punidos. Por mais que seja algo inédito, também é inédito o que o Ernesto Araújo está fazendo. [Os diplomatas] São pessoas bem preparadas, que foram aprovadas em um dos concursos públicos mais difíceis do estado brasileiro, e portanto deveriam se colocar à altura do seu nível de preparação e se manifestar abertamente contra os absurdos que estão sendo cometidos”, afirmou, pontuando que é inimaginável que o governo exonere de uma só vez centenas de diplomatas por causa da carta.
Confira na íntegra a carta:
Here is the full manifesto (Aqui está o manifesto completo):
Brasília, 27 de março de 2021,
Nos últimos dias, o Brasil superou a trágica marca de 300 mil mortes por COVID-19, tendo o papel do Itamaraty na resposta à pandemia ganhado grande relevância no debate nacional. Neste momento, às vésperas da celebração do dia do diplomata, não há o que se comemorar. Pelo contrário, nunca foi tão importante reafirmar os preceitos constitucionais que balizam as relações exteriores da República Federativa do Brasil, definidos no artigo 4º da Constituição Federal de 1988, assim como as melhores tradições do Itamaraty.
Historicamente, a política externa brasileira caracterizou-se por pragmatismo e profissionalismo. O corpo diplomático, formado por concurso público desde 1945, sempre investiu no diálogo respeitoso e construtivo, com interlocutores internos e internacionais, com a imprensa e o Parlamento. A Constituição de 1988 consagrou princípios fundamentais pelos quais nossa diplomacia deve guiar-se, entre eles a independência nacional; prevalência dos direitos humanos; o repúdio ao terrorismo e ao racismo; e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.
Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática. O Itamaraty enfrenta aguda crise orçamentária e uma série numerosa de incidentes diplomáticos, com graves prejuízos para as relações internacionais e a imagem do Brasil. A crise do COVID-19 tem revelado que equívocos na condução da política externa trazem prejuízos concretos à população. Além de problemas mais imediatos, como a falta de vacinas, de insumos ou a proibição da entrada de brasileiros em outros países, acumulam-se danos de longo prazo na credibilidade internacional do país.
Nesse contexto e diante da gravidade do momento, sentimos ser nosso dever complementar os alertas emitidos pela academia, pelo empresariado, pelos movimentos sociais, por prefeitos, por governadores e pelo Congresso Nacional, a respeito dos graves erros na condução da política externa atual. Nunca foi tão importante apelar à mudança e à retomada das melhores tradições do Itamaraty e dos preceitos constitucionais – conquistas da nossa sociedade e instrumentos indispensáveis para a promoção da prosperidade, justiça e independência em nosso país.
Esta carta foi elaborada por diplomatas da ativa que não podem assiná-la como desejariam em razão de dispositivos da Lei do Serviço Exterior, que a propósito deveriam ser reexaminados tendo em conta sua flagrante inconstitucionalidade. Esperamos, com essas reflexões, oferecer mais elementos para que as necessárias e urgentes mudanças na condução da política externa ganhem maior apoio na sociedade, contribuindo, assim, para os esforços de superação das crises sanitária, econômica, social e política que enfrentadas pelo Brasil. (CB)