Especialistas destacam que ter a doença por mais de uma vez eleva os riscos de internação e até causar mortes. Além dos sorotipos, lembram que o Aedes aegypti é vetor de outras doenças, que podem ser mais letais.
O alto número de casos de dengue no Distrito Federal — são 157.250, de acordo com a atualização desta segunda-feira (18/3) do painel do Ministério da Saúde — liga o alerta para a reinfecção pela doença por sorotipos diferentes. Além de ressaltar outras doenças que o Aedes aegypti pode transmitir, especialistas destacam que moradores de locais com alta incidência estão mais propensos a contrair o vírus mais de uma vez.
Foi o que aconteceu com a dona de casa Ivone Jorge, 61 anos, que acompanhava uma vizinha, também com dengue, na tenda de hidratação do Sol Nascente, região com uma das maiores incidências no DF — 6.633,01 casos a cada 100 mil habitantes — e onde mora Ivone. “Tenho medo de ter (a doença) de novo e morrer”, afirma. A primeira infecção ocorreu no ano passado e exigiu internação; a segunda, em janeiro deste ano; e a terceira, em fevereiro. Entre as duas últimas, menos de um mês de intervalo.
“Das três vezes que tive dengue, a segunda foi a pior. Fiquei muito debilitada, com a pressão alterada e dor nos rins”, descreveu. Mesmo que a infecção tenha passado, Ivone relata ainda sentir incômodos, principalmente fraqueza. “Sinto que a doença não saiu do meu corpo”, avalia. Ela acredita que os focos do mosquito estão nas redondezas de sua casa, visto que os dois filhos e os
vizinhos também adoeceram. A suspeita está em uma casa abandonada localizada em sua rua, no Sol Nascente. “Avisamos o pessoal da vigilância e eles vieram averiguar, mas, em muitas casas do bairro, os moradores não abrem a porta para os profissionais. Assim, fica difícil”, reclama.
Quem também teve dengue mais de uma vez foi Florismar Lucena, 54, que, há nove dias, sofre com pressão alta, dor atrás dos olhos e nas articulações, calafrios e enjoo. Com pulseira verde, que indica caso pouco urgente, a dona de casa — que mora em Ceilândia, outra região com alta incidência de casos (6.018,62) — tomou soro e medicação no Hospital de Campanha (HCamp) da Força Aérea Brasileira.
A primeira vez que pegou a doença foi em 2019, a segunda, nesta última semana. “Agora foi muito pior. Além dos sintomas esperados, tive vômitos e dor persistente”, conta. Os filhos também foram contaminados e um deles chegou a ser internado em uma unidade de terapia intensiva (UTI). “Na minha rua, tem muito lixo acumulado e confesso que não tenho usado repelente, está muito caro”, ressalta.
Evolução
A infectologista Joana D’arc Gonçalves explica que a infecção por um dos quatro sorotipos do vírus da dengue deixa a pessoa com imunidade permanente contra o agente causador daquela tipagem. “Além disso, o paciente adquire imunidade temporária e parcial contra os outros sorotipos, por alguns meses. Ela pode variar, depende de cada paciente. Alguns falam entre três e seis meses”, avalia.
Para a especialista, pessoas que vivem em áreas endêmicas, com incidência alta da dengue, têm maior risco de ter infecção por mais de um sorotipo. “Quando isso ocorre, ou seja, a infecção com um sorotipo, seguida por outra infecção com um sorotipo diferente, aumenta o risco de agravamento da doença, o que pode evoluir para o óbito”, alerta Joana D’arc.
A médica ressalta a importância da vacina. “A incidência global de dengue aumentou muito nas últimas décadas e o imunizante, segundo estudos, é seguro e tem eficácia geral de 80% para a prevenção de hospitalizações, além de ser indicado para quem teve e quem não teve a doença, entre 4 e 60 anos. É uma ferramenta a mais no controle da doença”, reforça. “Só tem duas formas para adquirir imunidade contra a dengue: adoecer ou vacinar. Prefiro a segunda opção”, acrescenta a infectologista.
Em relação à subnotificação de casos, Joana D’arc comenta que é um tema complexo. “Muitas pessoas se infectam e não têm sintomas, outros evoluem com poucas manifestações e tem aqueles com quadros graves. Portanto, temos que pensar na doença, na epidemiologia e testar. Quanto mais testagem, mais diagnósticos, o que colabora nas ações do poder público”, observa.
Atendimento
Sanitarista e professor da Universidade de Brasília (UnB), Jonas Brant afirma que a subnotificação não deve ser argumento. “O esforço tem que ser direcionado em entender e abrir as portas para o acolhimento dos pacientes, para garantir que eles consigam ser atendidos, testados, ter o hemograma feito e conseguir que eles possam ser internados, se necessário, para acompanhar esse paciente durante a evolução da doença, para que ele não se agrave”, reforça. “O que a gente não pode ter são cenários em que, em algumas regiões, o sistema não atenda a população, não garanta acesso, não acolha e não oriente no enfrentamento da doença”, acrescenta.
De acordo com o especialista, no DF, temos a predominância da circulação do sorotipo 2 da dengue. “É relevante que as pessoas fiquem atentas e, mesmo tendo sido infectadas uma vez, continuem a proteção, por meio do uso de repelente, pois o risco é maior para uma nova infecção”, alerta. Só que Brant destaca que o mosquito também é vetor de outras doenças. “No caso da chikungunya que, provavelmente, será a próxima epidemia que enfrentaremos aqui no DF, é uma doença que mata mais do que a dengue”, pontua.
De acordo com o sanitarista, ela deixa sequelas nos pacientes, como dores articulares, por até seis meses após a infecção. “Isso é um problema sério, pois vai gerar uma sobrecarga de longo prazo na nossa rede de saúde. Se, na dengue, não estamos dando conta, imagina o cenário numa possível epidemia de chikungunya”, teme o especialista.
Choque
O infectologista André Bon, do Hospital Brasília, explica que sintomas severos podem levar ao choque da dengue, forma grave da doença que ocorre por conta da perda de líquidos dos vasos para dentro do próprio corpo. “Isso faz com que a pessoa fique com a pressão muito baixa, o que leva à morte”, conta.
O especialista ressalta que sinais de alarme, como vômito persistente, dor abdominal intensa, sangramentos, dor no fígado e queda de pressão costumam preceder o choque. “A melhor maneira de evitar que o quadro da doença evolua para um choque é com hidratação venosa adequada”, afirma.
Hospital de Campanha
À reportagem, pacientes que aguardavam por atendimento no Hospital de Campanha relataram que, nos primeiros sintomas, não cogitam ir à unidade de ponto atendimento (UPA), tampouco à unidade básica de saúde (UBS). A primeira opção tem sido o HCamp. “Ouvi dizer que o atendimento é bom e rápido. Vim e, realmente, foi ágil”, comenta Isabela Costa, 22, que estava com manchas vermelhas na pele, febre, dor de barriga e de cabeça. “Parece que sentimos tudo de ruim ao mesmo tempo”, completou, enquanto aguardava sua carona buscá-la.
O auxiliar administrativo Alex Monteiro, 29, procurou o HCamp para se consultar, pois, há 10 dias, sentia dor nos olhos e na barriga, que não passava nem com dipirona. No entanto, não teve a mesma sorte de Isabela. “Disseram que só terá médico às 18h, porque estão atendendo apenas casos gravíssimos”, conta. A recomendação foi partir para a tenda de hidratação da cidade. “Nem cogitei ir em UPAs, estão lotadas”. Resolveu ir para tenda se hidratar.
Para a aposentada Maria Rosileusa Moura, 70, que também recebeu a informação de que só haveria médicos às 18h, a melhor opção era aguardar. Ela levou o neto Jonatas Pereira, 9, há dois dias com sintomas de dengue, para consultar. “Melhor ficar por aqui e esperar. Imagine levar o menino de ônibus para a tenda e ele passar mal no caminho? Será pior”, afirma. A idosa, moradora do Sol Nascente, contou ser a quinta vez que vai ao HCamp levar algum familiar doente. Ela, no entanto, nunca foi contaminada.
“Minha filha brinca que eu gosto de hospital, porque cheguei a vir aqui duas vezes por dia, mas a verdade é que, como estou ‘inteira’, preciso ajudar quem não está”, ressalta. Segundo Maria Rosileusa, a escolha pelo local de atendimento não é em vão. “Aqui é bom e costuma ser rápido”, disse. Inaugurado em 5 de fevereiro, o HCamp funciona 24 horas por dia e realizou mais de 30 mil procedimentos, até a última divulgação dos dados, em 7 de março.
Correio Braziliense