*Nelson Valente
Em 1961, o Presidente da República tinha uma certa competência legislativa exercida através de Decretos, graças à Constituição de 1946. Saulo Ramos incentivou muito Jânio a usar de tal competência, inclusive cometendo algumas inconstitucionalidades, até hoje não contestadas. Não era difícil provocar o entusiasmo de Jânio que, excessivamente inteligente, captava rapidamente ideias novas, sobretudo se fosse de interesse público.
Assim, Jânio e Saulo, numa conversa a sós, sem palpiteiros, discutiram longamente um decreto em defesa da ecologia e do meio ambiente, assunto desconhecido e misterioso, inclusive no exterior. Os dois, porém e atrevidamente, soltaram a imaginação e o pensamento criativo, concluindo que era preciso regulamentar a defesa do meio ambiente.
– Redija hoje, que eu assino amanhã! Hoje, sem falta, mas inclua tudo o que discutimos – Mas hoje é sábado e amanhã é domingo. É preciso colher a assinatura do Ministro da Agricultura para referendar o decreto. E talvez de outros Ministros.
– Não interessa. Quero o decreto amanhã. Talvez seja o domingo o dia em que os brasileiros menos estragam a natureza. Um bom dia para assiná-lo.
Claro que somente recebeu a minuta na segunda-feira e ele próprio, com extremo entusiasmo, redigiu muitos dispositivos. Editou-se o Decreto n° 50.877, em 29 de julho de 1961, um dos primeiros atos normativos, em favor do meio ambiente, editados no mundo!
Para se ter a ideia do pioneirismo, a lei de proteção às águas, na Itália, foi editada muito depois, é de 1976. No Canadá, a norma equivalente é de 1970 e na Suécia, é de 1969.
Na Bélgica e Holanda, o direito positivo passa a editar normas ambientais, sobretudo relativas à defesa das águas, na década de 1980, embora a Holanda tenha tratado, em Lei, da poluição das águas em 1969 e a Bélgica em 1971.
A França, que costuma se antecipar às legislações europeias, surgiu com o regramento ambiental somente em 1971 – Lei n° 76-633, de 19 de julho.
Na Alemanha, a Lei Federal, que apenas sugere precauções para evitar efeitos prejudiciais ao ambiente, é datada de 15 de março de 1974, aperfeiçoada pela lei de proteção às águas em 1976. No Japão, a disciplina legal para a punição dos crimes “relativos à poluição ambiental com efeitos adversos sobre a saúde das pessoas” é de 1970.
Nos Estados Unidos, as normas de proteção às águas datam de 1972 e, na Suíça, de 1971.
Na Argélia, a legislação ambiental é de 1983, quando a lei 83-03, cuida da poluição das águas, proibindo o “lançamento de substâncias sólidas, líquidas ou gasosas, agentes patogênicos, em quantidade e em concentração de toxidade suscetível de causar agressão à saúde pública, à fauna e à flora ou prejudicar o desenvolvimento econômico” (art. 99). Como se vê, o texto reproduz, vinte e dois anos depois, a norma brasileira, editada por Jânio Quadros em 1961.
Na Inglaterra, centro de tantos movimentos ecologistas, a Lei de Controle da Poluição surgiu somente em 1974 e cuida, sobretudo, de descarga e efluentes industriais nos esgotos públicos (art. 43), embora passe pela poluição atmosférica (art. 75) e pela poluição acústica (art. 57 a 74).
Impõe-se registrar, pela importância e pela larga previsão, o Decreto n° 50.877, de 29 de julho de 1961, do Presidente Jânio Quadros, dispondo sobre o lançamento de resíduos tóxicos ou oleosos nas águas interiores ou litorâneas.
O ato normativo de Jânio Quadros proibiu terminantemente a limpeza de motores de navios no mar territorial brasileiro e foi mais longe: regulou o lançamento “às águas de resíduos líquidos, sólidos ou gasosos, domiciliares ou industriais, in natura ou depois de tratados”, permitindo-os somente quando “essa operação não implique na POLUIÇÃO das águas receptoras”.
Neste decreto, a palavra “poluição” ingressou no direito positivo brasileiro com o sentido que tem hoje, diverso ou mais ampliado daquele adotado pelo verbo “poluir” do nosso Código Penal. Está definida pela própria norma em seu artigo 3°, verbis: “Para os efeitos deste Decreto, considera-se poluição qualquer alteração das propriedades físicas, químicas ou biológicas das águas, que possa importar em prejuízo à saúde, à segurança e ao bem-estar das populações e ainda comprometer a sua utilização para fins agrícolas, industriais, comerciais, recreativos e, principalmente, a existência normal da fauna aquática.”
Ironia do destino: quase trinta anos depois, Jânio Quadros era prefeito de São Paulo e Saulo Ramos Ministro da Justiça. Um dia Saulo visitou o ex-Presidente. Entre muitos assuntos, lembraram do decreto ecológico. E lamentaram: se aquele decreto houvesse sido respeitado e aplicado, São Paulo não teria perdido os rios Pinheiros e Tietê.
Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor