Todo o plano foi arquitetado sem consultas ao presidente da comissão de Relações Exteriores do Senado, Robert Menendez, filho de exilados cubanos e favorável ao bloqueio
O comunismo é um sistema universalmente falido, e não vejo o socialismo como um substituto muito útil.” O presidente Joe Biden fez o preâmbulo calculado na quinta-feira (15), antes de responder a jornalistas sobre possíveis ações dos EUA diante do cenário de crise e levante social em Cuba.
Até agora, Biden tem se alinhado muito mais a Donald Trump e à tradição de Washington, que tratam Havana como combustível de uma retórica eleitoral, do que a Barack Obama, que inovou ao olhar para a ilha como oportunidade de diplomacia estratégica.
O presidente americano disse que considera medidas para ajudar o povo cubano –que saiu às ruas pedindo comida, remédio e liberdade de expressão–, mas ponderou que seriam necessárias “circunstâncias diferentes e garantias” para colocá-las em prática.
O roteiro é indicativo claro de que os protestos, os maiores em Cuba nas últimas décadas, acionaram a espiral de narrativas sobre a ilha nos EUA, mas não devem gerar grandes impactos na política americana.
Biden classificou o regime de Manuel Díaz-Canel como autoritário, disse que Cuba é um Estado falido, que reprime seus cidadãos, mas não deu sinais de que fará mudanças significativas na política externa da Casa Branca em relação aos bloqueios econômicos que sufocam a ilha desde 1960.
“[Liberar] a capacidade de [cubanos que vivem nos EUA] enviarem dinheiro para Cuba, por exemplo, não vamos fazer isso agora, porque o fato é que é altamente provável que o regime confisque essas remessas ou grande parte delas”, disse Biden.
O presidente americano ofereceu dois auxílios pontuais à ilha: restabelecer a internet cortada pelo governo cubano após os atos –”se houver condições tecnológicas para isso”– e doar vacinas contra a Covid-19, contanto que uma organização internacional garanta a distribuição e a aplicação das doses.
Com a postura, Biden navega na habitual disputa entre republicanos e democratas quando o assunto é Cuba, ciente de que o debate tem pouco espaço para nuances e que suas ações reverberam na Flórida, um dos estados mais importantes para a corrida à Casa Branca.
A 150 km de Havana, a região concentra um número alto de dissidentes, sensíveis ao discurso antissocialista e único grupo de latinos que tende a votar majoritariamente em republicanos.
Em 2020, o discurso anti-Cuba foi um dos fatores que fez com que Trump ampliasse sua base de apoio na Flórida, onde venceu Biden por 51,2% a 47,9% –quatro anos antes, o republicano havia superado Hillary Clinton por apenas 1,2 ponto percentual.
De olho no voto dos mais conservadores, republicanos chamam democratas de socialistas e dizem que qualquer ajuda à ilha pode ser uma forma de salvar a ditadura cubana. Do outro lado, democratas se dividem sobre como responder à crise.
Enquanto moderados defendem a manutenção do bloqueio, progressistas pedem o fim das sanções, mas muitos ainda têm dificuldade de condenar o regime, sob temor de afastarem eleitores mais à esquerda.
A arena para a disputa de votos na Flórida é muito fluida e, a cada ano, um novo elemento pode ser determinante para um candidato vencer no estado –embora entre cubano-americanos mais jovens a discussão sobre socialismo já não desperte o mesmo interesse que entre gerações mais antigas.
Expoente da ala mais jovem e progressista democrata, a deputada Alexandria Ocasio-Cortez fez a manifestação mais forte do partido sobre Cuba, quatro dias após o início dos protestos. Na noite de quinta-feira, divulgou nota dizendo que se solidariza com o povo cubano e condena “as ações antidemocráticas lideradas pelo presidente Díaz-Canel”.
“A supressão da mídia, discursos e protestos são violações repugnantes dos direitos civis”, afirmou AOC, como é conhecida. A deputada acrescentou que as sanções dos EUA sobre a ilha “contribuem para o sofrimento cubano” e que “rejeita abertamente” a defesa que o governo Biden faz sobre o embargo.
Três dias antes, o senador Bernie Sanders, ligado à esquerda democrata, tinha afirmado que “todas as pessoas têm o direito de protestar e viver numa sociedade democrática”, mas não havia sido tão assertivo sobre a repressão da ditadura sobre os manifestantes. Nas redes sociais, fez apenas um apelo ao governo cubano para respeitar a oposição e evitar a violência –e pediu o fim do embargo sobre a ilha.
As manifestações dos progressistas foram a senha para críticas de democratas moderados da Flórida. Eles dizem acreditar que Biden deve usar o novo contexto como “oportunidade de ouro” para adotar uma postura firme contra o regime cubano e conquistar o voto de latinos que têm se afastado do partido.
“Precisamos ser um farol de esperança. Há pessoas em Cuba protestando com a bandeira americana em punho, isso nunca aconteceu. Precisamos entender o momento em que estamos vivendo”, disse a senadora estadual democrata Annette Taddeo, em entrevista ao site Politico. Ela representa um distrito conquistado por Trump no ano passado.
Entre os republicanos da Flórida, a efervescência ganhou contornos ainda mais intensos, com cubanos exilados nas ruas de Miami em apoio às manifestações, e o prefeito da cidade, Francis Suarez, dizendo que Biden deveria considerar opções militares na ilha.
Durante a campanha, Biden assumiu o compromisso de reverter algumas das medidas de bloqueio sobre Cuba, reforçadas por Trump. O democrata chegou a dizer que as considerava danosas à população e que nada faziam para impulsionar a democracia e os direitos humanos, mas não deu mostras de que esteja planejando seguir tão cedo os caminhos de Obama, de quem foi vice por oito anos.
O primeiro presidente negro da história dos EUA iniciou um processo de reaproximação com Cuba e tentou colocar fim a mais de 50 anos de rompimento diplomático. Obama foi a Havana em 2016 –o primeiro ocupante da Casa Branca a fazê-lo em 88 anos–, suspendeu as restrições de viagens entre os territórios, relaxou algumas sanções do bloqueio econômico e retirou Cuba da lista de países que, segundo Washington, apoiam o terrorismo.
Todo o plano foi arquitetado sem consultas ao presidente da comissão de Relações Exteriores do Senado, Robert Menendez, filho de exilados cubanos e favorável ao bloqueio. Ele permanece no posto, mas, desta vez, está bem informado: Biden o escolheu como principal conselheiro da Casa Branca sobre Cuba.
MARINA DIAS
WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS)*