Brasil, Bolívia, Equador, Guatemala, Haiti, Paraguai, Suriname e Venezuela são os países das Américas com alto risco de volta da poliomielite, segundo informes divulgados pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) ao longo do segundo semestre de 2021.
De acordo com a entidade, a baixa taxa de vacinação nesses locais representa um perigo para todo o continente, que não registra um único caso da doença há exatos 30 anos.
“Esses países, que representam 32% da população com menos de um ano de idade das Américas, têm sustentado uma baixa cobertura de vacinação e sistemas de vigilância fracos, o que representa uma ameaça de emergência do vírus e a subsequente circulação dele”, alerta a Opas.
Mas como o Brasil, que teve um dos programas de imunização contra a pólio mais bem-sucedidos da região, foi parar nessa lista? E o que está sendo feito para reverter esse panorama?
De acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, a pandemia de covid-19, a falta de campanhas de comunicação, uma desconfiança generalizada nas autoridades e a sensação de que essa doença não preocupa mais são alguns dos fatores que ajudam a explicar a atual situação.
Uma doença séria e incapacitante
A infectologista Raquel Stucchi, professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entende que a vacinação contra a pólio é vítima de seu próprio sucesso.
“As vacinas são tão boas que essa doença desapareceu do país. Atualmente, meus alunos só veem casos de pólio nos livros”, conta.
O último paciente com poliomielite no Brasil foi identificado em 1989. Em 1994, nosso país recebeu da Opas o certificado de eliminação da transmissão do vírus causador dessa enfermidade.
A médica, que também integra a Sociedade Brasileira de Infectologia, explica que esse vírus é transmitido de pessoa para pessoa ou através da contaminação das redes de esgoto e água.
“O agente infeccioso, conhecido como poliovírus, fica no intestino e é eliminado pelas fezes. A partir daí, pode contaminar outras pessoas”, ensina.
Na maioria das vezes, a infecção não tem grandes repercussões na saúde. Mas há uma parcela de acometidos, especialmente crianças com menos de cinco anos, que desenvolvem formas bem graves.
Nesses casos, o vírus afeta o sistema nervoso e pode causar uma espécie de fraqueza muscular — daí vem o termo “paralisia infantil”, um dos nomes populares da moléstia.
“Alguns pacientes sofrem uma paralisia das pernas e não conseguem mais andar. Em quadros ainda mais sérios, os músculos do tórax são afetados e se perde a capacidade de respirar”, acrescenta Stucchi.
Durante boa parte do século 20, a única maneira de manter esses indivíduos vivos eram os “pulmões de aço”, uma máquina grande que gerava uma pressão no peito para garantir a entrada do oxigênio e a saída do gás carbônico pelas vias aéreas.
Conhecida há milhares de anos, a poliomielite foi um enorme problema de saúde pública nos séculos 19 e 20, com surtos e epidemias registrados em várias partes do mundo.
A história começou a mudar a partir da década de 1950 e 1960, quando foram desenvolvidas as duas vacinas usadas até hoje.
A primeira, injetável e feita a partir do vírus inativado, foi criada pelo médico americano Jonas Salk (1914-1995). A segunda, fruto do trabalho do pesquisador polonês Albert Sabin (1906-1993), é dada em gotinhas e traz o vírus atenuado em sua formulação.
Desde que os esforços para a erradicação da poliomielite avançaram por todos os continentes, os casos da doença caíram 99%.
Para ter ideia, em 1988 foram registrados 350 mil diagnósticos de pólio em 125 países. Em 2021, o vírus selvagem permanece endêmico em apenas dois lugares: Paquistão e Afeganistão, que registraram 5 casos nos últimos 12 meses.
Também é preciso mencionar aqui os casos de pólio provocados pelo vírus atenuado da vacina Sabin, dada em gotinhas: eles são raríssimos e foram observados especialmente na África, em pessoas com a imunidade comprometida e em locais com pouco acesso a tratamento de água e esgoto.
Que fique claro: ter uma vacina oral contra a pólio facilitou muito o esforço mundial de erradicação e esse produto foi decisivo para controlar a doença no cenário internacional. Afinal, as gotinhas são bem fáceis de transportar e aplicar, além de não exigirem um treinamento muito complicado.
Mais recentemente, porém, com a redução de 99% dos casos da doença provocada pelo vírus selvagem, muitos países passaram a oferecer, especialmente nas primeiras doses, apenas o imunizante injetável (Salk), feito com o vírus inativado. Nesse caso, o risco de ter pólio por derivado vacinal não existe.
O nosso país, inclusive, adota essa estratégia, como você confere a seguir.
Brasil, do sucesso à preocupação
Entre 1968 e 1989, o Brasil contabilizou mais de 26 mil casos de poliomielite, de acordo com os dados do Ministério da Saúde.
Embora existissem projetos municipais e estaduais para vacinação das crianças contra esse vírus, a primeira campanha nacional de imunização contra a poliomielite foi lançada oficialmente em 1980, em consonância com um esforço mundial para a erradicação dessa doença, que está em curso até hoje.
Nosso país, inclusive, foi pioneiro em vários aspectos e lançou algumas estratégias que fizeram muita diferença no engajamento da população, avaliam os especialistas.
Os dois exemplos mais bem sucedidos foram a criação dos famosos “dias D” da campanha, que contavam com ampla divulgação nos meios de comunicação, e a criação de personagens com forte apelo popular, como foi o caso do Zé Gotinha.
O último caso de poliomielite no país foi observado na cidade de Sousa, na Paraíba, em 1989. A doença é considerada oficialmente eliminada do território nacional há 27 anos, desde 1994.
A vacina contra a poliomielite segue indicada para todas as crianças brasileiras num esquema de cinco doses. As três primeiras são feitas com o imunizante injetável e devem ser aplicadas aos dois, aos quatro e aos seis meses de vida. Depois, os dois reforços (geralmente feitos com as gotinhas) são dados entre os 15 e os 18 meses e aos 5 anos de idade.
Nos últimos anos, porém, a cobertura vacinal tem deixado a desejar. Segundo os dados do próprio Ministério da Saúde, a taxa de imunizados contra a pólio caiu consideravelmente de 2015 para cá.
Há seis anos, 98,2% do público-alvo recebeu as doses. Em 2016, essa taxa caiu para 84,4% e se manteve nesse patamar até 2019.
Em 2020, uma nova queda importante foi registrada: de acordo com os dados preliminares, que ainda podem passar por alguma revisão técnica, apenas 75,9% receberam as doses contra o vírus causador da paralisia infantil.
Em outras palavras, uma em cada quatro crianças brasileiras não está suficientemente resguardada contra a poliomielite.
“Se considerarmos o número de nascidos vivos no país, estamos falando de praticamente um milhão de indivíduos desprotegidos”, calcula o pediatra Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
É justamente esse contingente de não-vacinados que alarma as autoridades e colocou o Brasil na lista dos países com “alto risco” para a reintrodução da pólio nas Américas.
“Toda essa situação nos deixa bastante preocupados. Estamos falando de uma doença que paralisa crianças”, chama a atenção a infectologista e pediatra Luiza Helena Falleiros Arlant, coordenadora da Câmara Técnica de Imunizações (Pólio) do Ministério da Saúde.
“E o principal pilar para não deixar esse vírus chegar de novo ao nosso país é vacinar toda a população-alvo. Porque daí, mesmo se acontecer de entrar alguém infectado com pólio pelos aeroportos, portos e fronteiras terrestres, não haveria risco de transmissão interna, já que a maioria da população estaria protegida”, complementa a especialista, que também coordena o Departamento de Saúde da Criança da Faculdade de Medicina da Universidade Metropolitana de Santos, no litoral paulista.
Ou seja: no atual cenário, com cerca de 1 milhão de crianças suscetíveis, há o perigo iminente de uma pessoa com pólio vir de fora e criar cadeias de transmissão internas, algo que não é visto por aqui há mais de três décadas.
Um panorama parecido, aliás, aconteceu recentemente com outra doença infecciosa que pode ser prevenida com a vacinação: o sarampo, que foi eliminado do Brasil em 2016.
As baixas taxas de imunização, porém, fizeram a doença retornar com tudo dois anos depois, com surtos importantes registrados em 2018 e 2019 em várias cidades.
Como chegamos até aqui?
Cunha diz que a queda nas taxas de cobertura vacinal podem ser explicadas por três palavras que começam com a letra C: confiança, conveniência e complacência.
“Vamos começar com a confiança: vivemos um momento em que, por causa da difusão de informações falsas, as pessoas desconfiam não apenas da segurança e da eficácia das vacinas, mas também das instituições, dos governantes e dos profissionais da saúde”, observa o pediatra.
“O segundo ponto é justamente a conveniência: o esquema de funcionamento dos postos de vacinação está em desalinho com a rotina das mães e dos pais, que não conseguem levar os filhos para tomar as doses em horário comercial. Precisamos ampliar a infraestrutura e capacitar melhor os profissionais que estão na ponta”, continua.
“E vale lembrar que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde está sem um coordenador desde julho de 2021.”
Por fim, a complacência tem a ver com aquela sensação absolutamente equivocada de que a pólio é coisa do passado e não há mais motivos para se preocupar com ela.
De acordo com os profissionais da saúde consultados pela reportagem, o alto número de crianças não-vacinadas contra a pólio em 2020 também tem a ver com a pandemia de covid-19, que fechou ou restringiu serviços de saúde por algum tempo no ano passado e fez com as pessoas buscassem menos os postos de saúde para atualizar a caderneta de vacinação.
Para reverter essas barreiras, o presidente da SBIm entende que é preciso investir em campanhas massivas de comunicação.
“Um dos nossos pontos fortes era a transmissão das informações com o apoio de referências na área da saúde, artistas e políticos”, lembra Cunha.
“Hoje em dia, esse quesito está muito falho. As comunicações parecem ser voltadas apenas aos gestores e aos profissionais da saúde. A população nem fica sabendo do dia D ou das campanhas periódicas”, critica.
“Não adianta marcar um ‘dia D da vacinação’ e não avisar o povo por meio de propagandas na rádio, na televisão e nas redes sociais”, concorda Stucchi.
Procurado pela BBC News Brasil, o Ministério da Saúde se posicionou sobre a discussão por meio de uma nota de esclarecimentos.
No texto, a assessoria de imprensa ressalta que foi feita uma Campanha Nacional de Multivacinação este ano, com o objetivo de “promover a mobilização social para a atualização da Caderneta de Vacinação da Criança e do Adolescente (menos de 15 anos de idade), a fim de melhorar e ampliar a cobertura vacinal no país”.
“O Ministério da Saúde informa ainda que vem desenvolvendo e intensificando estratégias necessárias relacionadas à vacinação infantil. Dentre elas, o Movimento Vacina Brasil, lançado em 2019, com o objetivo de mobilizar a população quanto a importância da vacinação e necessidade de manter a situação vacinal atualizada”, segue a nota.
Os responsáveis pelo PNI também dizem que têm reforçado junto aos Estados, municípios e Distrito Federal “a manutenção das ações de vacinação de rotina, mesmo em tempos de pandemia de covid-19” e que “atua fortemente na divulgação de informações em seus meios de comunicação e interação nas redes sociais”.
Por fim, o ministério destaca que está adotando uma “estratégia dos dez passos” para ampliar a cobertura vacinal no país. São eles:
1. Manter a sala de vacina aberta em todo horário de funcionamento da unidade de Saúde;
2. Evitar barreiras de acesso;
3. Oportunidade de vacinação (em consultas e/ou outros procedimentos na unidade);
4. Monitorar a cobertura vacinal;
5. Garantir o registro adequado das doses aplicadas;
6. Orientar a população sobre atualização vacinal;
7. Combater informações falsas;
8. Intensificar ações de vacinação;
9.. Promover disponibilidade e qualidade das vacinas;
10. Garantir profissionais treinados e habilitados nas salas de vacina.
Por BBC