Não há atos oficiais na China em memória do massacre na Praça da Paz Celestial (Tiananmen) de Pequim, em 1989.
Em vez disso, o que aconteceu nos dias 03 e 04 de junho é lembrado todo ano em um grande esforço do governo que poderia muito bem ser classificado como um ato de “esquecimento”.
Nas semanas que antecedem a data, a máquina de censura entra em ação e ativa sua ampla rede de algoritmos, além de milhares de pessoas, para apagar qualquer referência à efeméride na internet, mesmo que não seja direta.
Quem for identificado na tentativa de burlar os mecanismos de controle pode ser detido – as penas podem chegar a três anos e meio de prisão.
O simples ato de compartilhar imagens no Twitter pode resultar em cadeia – mesmo que a maioria dos usuários de internet na China não tenha acesso à plataforma.
Em raro pronunciamento sobre o massacre, o ministro da Defesa, Wei Fenghe, afirmou no domingo que a repressão aos protestos na praça chinesa, que completa 30 anos, foi a “política correta”.
“Este incidente foi uma turbulência política, e o governo central adotou medidas para deter as turbulências, o que é uma política correta”, afirmou o general durante um fórum regional em Cingapura.
A repressão aos protestos pró-democracia liderados por estudantes deixou milhares de mortos – até hoje não se sabe o número exato de vítimas.
Vigiando o cemitério
Há alguns meses, no dia nacional da limpeza dos túmulos – tradicional festival chinês que reverencia os mortos -, a BBC organizou um encontro com a mãe de Wang Nan, jovem baleado na cabeça na Praça da Paz Celestial logo depois que as tropas avançaram pela cidade.
Como faz todos os anos, Zhang Xianling, de 81 anos, planejava levar flores ao cemitério próximo ao Palácio de Verão em Pequim, onde as cinzas de Wang Nan, que tinha 19 anos, estão enterradas.
Mas ao chegar, nos deparamos com o cemitério repleto de seguranças vigiando a lápide da família.
Fomos interrogados por policiais uniformizados que verificaram nossos passaportes, credenciais de imprensa e anotaram nossos dados.
Uma escolta policial acompanhou Zhang, por sua vez, até o cemitério para mantê-la longe dos jornalistas.
O arquivo da BBC contém um extenso registro dos eventos que ocorreram na Praça da Paz Celestial.
As imagens em vídeo mostram os soldados avançando, apontando suas armas para a multidão na frente de veículos em chamas.
Capturam ainda o pânico dos manifestantes que se esforçam para carregar a pé ou de bicicleta corpos ensanguentados para o hospital.
‘Imploraram que parassem de atirar’
Em plena luz do dia, em 4 de junho de 1989, ainda era possível ouvir disparos esporádicos pela cidade, quando Margaret Holt, uma turista britânica visivelmente abalada, se viu inadvertidamente em meio a um dos momentos históricos mais marcantes do século passado.
“Um soldado estava atirando indiscriminadamente em direção à multidão. Três jovens estudantes se ajoelharam na frente dele e imploraram que parasse de atirar”, relembra.
“E ele as matou.”
“Um idoso levantou a mão porque queria atravessar a rua, e ele atirou nele.”
“Quando as balas da pistola acabaram e ele tentou recarregar a arma, a multidão o cercou e enforcou em uma árvore”, conta.
A descrição da cena leva apenas 24 segundos.
Mas essa mesma brevidade ressalta a brutalidade da força usada para dispersar um protesto pacífico e a indignação dos manifestantes reprimidos.
Também indica por que, até hoje, as autoridades se esforçam tanto para enterrar qualquer discussão sobre o que aconteceu.
Ventos de mudança
Os protestos que abalaram Pequim e dezenas de outras cidades na primavera e no verão de 1989 foram desencadeados após a morte, em abril, do líder marginalizado do Partido Comunista Hu Yaobang, defensor do liberalismo econômico e político.
Uma demonstração espontânea de luto público, liderada por estudantes, se transformou rapidamente em grandes manifestações que tomaram as ruas, exigindo que sua reputação fosse reabilitada e que seu legado fosse honrado com reformas democráticas pela liberdade de imprensa e o fim da corrupção no governo.
Em Pequim, a Praça da Paz Celestial, no coração político da capital, chegou a reunir até um milhão de pessoas, com uma profusão de bandeiras, cartazes e barracas.
Com os ventos de mudança que sopravam sobre a Europa Oriental, o então presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, chegou a Pequim em meados de maio para participar da primeira cúpula entre os dois países em 30 anos.
Para os líderes chineses, assim como para aqueles que protestavam, o país parecia estar à beira de um momento histórico, e o Partido Comunista chinês estava dividido sobre qual seria a melhor maneira de reagir.
A ala mais radical, que defendia uma reação dura, acabou vencendo.
Na noite de 3 de junho e na manhã seguinte, a praça foi alvo de uma ofensiva militar em larga escala, com tanques e soldados avançando e disparando em direção à multidão.
Alguns manifestantes contra-atacaram incendiando veículos blindados com coquetéis Molotov.
Até hoje, a censura e a ausência de qualquer relatório oficial tornam impossível saber quantas pessoas morreram naquela madrugada.
Relatos de jornalistas estrangeiros que presenciaram o massacre indicam que houve de 2 mil a 3 mil mortes.
Um telegrama diplomático, redigido no calor do momento, estima um número muito mais alto – cerca de 10 mil.
Durante o episódio, a força de defesa nacional assumiu o papel de exército invasor em sua própria capital – um divisor de águas que continua, tacitamente, definindo a China hoje.
O ‘homem do tanque’
Talvez nada ilustre mais a eficácia de 30 anos de censura chinesa do que o “homem do tanque”.
Em 5 de junho, um dia após o massacre, vários tanques foram vistos deixando a Praça da Paz Celestial.
Imagens registradas em vídeo mostram um manifestante solitário diante de uma coluna de tanques, se movendo para os lados cada vez que os veículos militares tentavam ultrapassá-lo.
Em determinado momento, o homem – vestido com uma camisa branca, calça preta e segurando duas sacolas de compras – sobe no tanque da frente em protesto.
Para o resto do mundo, esta imagem icônica, que mescla a repressão autoritária ao incansável espírito desafiador, define o que aconteceu na Praça da Paz Celestial.
O “homem do tanque” não foi baleado, tampouco atropelado, mas foi levado para um destino desconhecido até hoje.
Na China, no entanto, esta cena foi “apagada” do consciente coletivo. A BBC foi às ruas perguntar aos chineses se eles conheciam essa imagem, e 80% dos entrevistados responderam que não.
Muitos parecem ter sido sinceros, mas outros aparentavam simplesmente estar com medo de admitir que sabiam do que se tratava.
Crime
Atualmente, a Praça da Paz Celestial parece praticamente a mesma das imagens de 1989.
Mas a China, como país, mudou bastante nas últimas três décadas.
À medida que se torna mais rica e poderosa, a nação parece contestar a profusão de reportagens – incluindo esta – que insistem em dizer que um capítulo sombrio do seu passado ainda é importante.
Bao Tong é um ex-funcionário público de alto escalão que estava na primeira fileira das manifestações políticas de 1989.
É um dos dissidentes mais conhecidos da China atualmente, após cumprir uma pena de sete anos em prisão solitária por apoiar os manifestantes na Praça da Paz Celestial.
“O que me preocupa”, diz ele, “é que nos últimos 30 anos todos os líderes chineses se mostraram dispostos a defender o crime de 4 de junho.”
“Eles veem isso como uma lição valiosa, como um truque de mágica por trás da ascensão da nação. Consideram benéfico”, acrescenta Bao, se referindo à ideia de que a China deve sua atual prosperidade à repressão.
“O Partido Comunista da China deve permitir que as pessoas discutam: vítimas, testemunhas, estrangeiros, jornalistas que estavam presentes. Deve permitir que todos digam o que sabem para descobrir a verdade.”
Para mostrar como sua esperança parece ser vã, Bao – que é vigiado e seguido constantemente – foi advertido a não conceder mais entrevistas para imprensa estrangeira depois de falar com a BBC.
Mas ele tem certeza de que, se as demandas dos manifestantes tivessem sido ouvidas anos atrás, o futuro da China não seria apenas próspero, mas também mais justo e equilibrado.
“Vejo uma China sem uma grande ‘muralha’ na internet, sem uma classe privilegiada, com menos bilionários, onde ao menos os trabalhadores migrantes pobres poderiam viver livremente sem serem expulsos das grandes cidades. E uma China que não precisa roubar tecnologia estrangeira”, acrescenta.
Poder a todo custo
A ironia dos protestos da Praça da Paz Celestial é que, apesar do sentimento de esperança, quando muitos acreditavam que a mudança realmente havia chegado, eles podem ter adiado a chance de haver reformas políticas na China por uma geração ou mais.
Provavelmente, os estudantes teriam sido maus líderes, com suas próprias tendências autocráticas (como deixa claro o documentário Entrada Para A Paz Celestial, de Richard Gordon e Carma Hinton).
Mas o Partido Comunista viu que mesmo as demandas mais limitadas por um Estado de direito e maior participação democrática significariam o fim de seu monopólio absoluto do poder.
Se os protestos nunca tivessem ocorrido, se os principais reformistas não tivessem sido silenciados ou presos, a China poderia ter seguido o caminho de outras nações asiáticas, como Taiwan e Coreia do Sul, que já haviam começado gradualmente a se afastar do autoritarismo?
Na China, nenhum acerto de contas com o passado é possível: a geração mais antiga não tem permissão para recordar, enquanto a nova geração nem sequer é autorizada a saber o que aconteceu.
Em vez disso, a decisão tomada é a que se mantém firme até hoje. O partido se manteria no poder a todo custo, e nunca mais permitiria a um movimento popular tentar enfraquecer seu domínio.
Trinta anos depois, o grande esforço para “esquecer” segue forte como nunca. (BBC Brasil)