*Frutuoso Chaves
Mexo nos meus alfarrábios e eis o que encontro: uma carta longa com que Josélio Gondim se apresentava à Academia Paraibana de Letras em busca da vaga que ali se abria nos idos de março de 2009, um ano e meio antes de sua morte. O texto me fora por ele repassado para análise e revisão. Méritos e deméritos à parte, duvido de que mais alguém tenha se exposto tanto, e tão abertamente, na disputa por uma cadeira da APL. Não é preciso lembrar o insucesso por ele amargado.
Curiosamente, tornamo-nos mais próximos após o fechamento da Revista “A Carta”, em cuja equipe estive por uns seis anos. Revisei, por insistência sua, dois dos seus livros, prefaciei o “Eu, Nu – No Caminho dos Elefantes” e escrevi a orelha do “Cadeira de Rodas”. Deixou-me saudades.
Eis o que então escreveu:
Aos Ilustres Membros da Academia Paraibana de Letras
Acadêmicas e Acadêmicos.
Sou Josélio Costa Gondim, filho de José Moreno Gondim e de Dolôres Costa Gondim, natural de João Pessoa, à época, Parahyba. Nasci no dia 12 de outubro de 1933, na Rua Nova, hoje, Duque de Caxias. Minha infância, eu a passei na Fazenda do meu avô, o então coronel Costinha, prefeito de Caiçara. Duas Estradas era o nome do distrito governado pelo meu avô e de há muito transformado em município, do qual meu pai foi o primeiro prefeito.
Morávamos e estudávamos em João Pessoa, na escola das irmãs Tércia, Da Luz, Concita e Lourdes Bonavides. Passávamos as férias na fazenda em Duas Estradas. Fui o quinto numa turma de 35 alunos que prestaram exame de Admissão ao Ginásio. Mas a minha inclinação era para a pintura. Eu queria ser o novo Pedro Américo da Paraíba. Meu pai, sentindo essa minha quase obsessão, matriculou-me na escola de pintura da professora Nevinha.
Passei, então, a misturar as tintas e a me especializar em figuras humanas, personalidades nacionais e estaduais. Foi assim que pincelei em tela o Brigadeiro Eduardo Gomes, Adhemar de Barros, Assis Chateaubriand, Pedro Gondim, José João Fernandes – os dois últimos, à época, deputados estaduais – José Américo, padre Luiz Gonzaga, diretor do jornal A Imprensa, e outros.
Quando o jornalista Assis Chateaubriand resolveu disputar uma cadeira de Senador da República, fui apresentado, em Palácio, ao poderoso diretor e fundador dos Diários Associados pelo então governador José Américo. Ali mesmo, ofereci-lhe uma tela com seu retrato. Chateaubriand encantou-se com meu trabalho e convidou-me, de pronto, a cursar pintura no Museu de Arte de São Paulo. Fez mais: ofereceu-me uma bolsa de estudos na Capital paulista.
Eu tinha 17 anos e oito meses. Era menor de idade e não poderia viajar sem a autorização dos meus pais. Expliquei a situação ao Dr. Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo. O que tinha de grande no nome, tinha de mínimo na estatura. O Dr. Assis (era assim como o tratavam os subalternos) pediu-me, então, que eu falasse com meus pais. Assunto resolvido, procuraria o Dr. João Calmon que, desde então, estava autorizado a me entregar a passagem até São Paulo. Calmon, ao meu lado, elogiou-me o trabalho e pôs-se à minha disposição.
Saí do Palácio saltitante e, correndo, fui falar com os meus pais. Narrei-lhes a conversa com Chateaubriand. Minha mãe saltou da cadeira com expressão indignada: “Você não vai. Já me basta haver perdido dois irmãos por lá. Agora, não estou disposta a perder um filho”. Ponderei, entre apreensivo e risonho: “Mamãe, nada tem uma coisa a ver com a outra. Basta ver que Tio Chiquinho e Tio Agripino foram para os estudos da Medicina e eu vou estudar pintura”. Retruca ela: “O que matou os dois foram as farras nas noites frias de São Paulo e as mulheres da vida com quem viviam metidos. Você já é chegado a uma farrinha, a frequentar os cabarés da Maciel Pinheiro. Eu imagino o que não iria pintar em São Paulo. Você não acha, José?”
Meu pai, que a tudo ouvia, calado estava, calado ficou. Já era um bom sinal, porque, em minha casa, quem resolvia esses problemas era o homem. Dissesse sim, dissesse não, estava o caso resolvido, sem discussão nenhuma.
Papai seguiu para a fazenda, em Duas Estradas, sem nada falar. Quanto a mim, pus-me ao seu encontro. Apanhei o trem da Great Western e, à noite, quando lá chegava, aproximei-me do Velho. Perguntou-me: “O Doutor Chateaubriand prometeu mesmo o que você conta?”. E ouviu a resposta: “Prometeu não, papai. Ele me pediu para arrumar a mala, a fim de com ele viajar no mesmo dia”. Meu velho pai observou: “Promessa de político e, sobretudo, de candidato não merece confiança. Eu não tiro as razões de sua mãe. Mas, por outro lado, não quero que você perca oportunidade como esta”. Fomos dormir. Não havia sim nem não.
Passei a noite em claro. No dia seguinte, papai me chama à sala, ambiente reservado a conversas sérias. Disse-me: “Seu moço, você vai precisar comprar, ou mandar fazer, algum terno para suportar o frio. O seu pai, no momento, só pode lhe arranjar cinco contos de reis. Veja como pode se arranjar com isso. Não fale nada à sua mãe nem, se possível, aos amigos”. E entregou-me o numerário.
De volta a João Pessoa, fui direto à Alfaiataria Grizza, onde mandei fazer dois ternos de pura lã, ambos escuros. Procurei João Raposo, do Banco do Comércio, a quem solicitei empréstimo de outros cinco contos. Ele me parabenizou pelo convite recebido de Chateaubriand, mas não deixou de perguntar: “Quem é o seu avalista?”. De pronto, respondi: “Pedro Gondim”. Eu nada havia falado com meu tio Pedro, porém sabia que ele assinaria a nota promissória de olhos fechados, o que de fato ocorreu. Não procurei João Calmon, diretor dos Diários Associados, no Recife. Ao invés disso, falei com Arnaldo Von Sohsten, diretor da agência da Panair, em João Pessoa, com quem tirei passagem até o Rio, onde iria me encontrar com o Dr. Assis.
Faltava-me, por escrito, a autorização paterna. A fim de que meu pai não se preocupasse com mais nada, disse-lhe que Chateaubriand me havia encaminhado a passagem, de modo que, agora, a viagem apenas dependia de sua permissão. Sem pestanejar, o Velho redigiu a autorização de próprio punho, mandando-me reconhecer a firma no cartório Eunápio Torres.
Chegava, enfim, a hora de enfrentar minha mãe. Ela, coitada, de nada sabia. Quando eu a informei de que viajaria no dia seguinte, que já estava tudo pronto, caiu num choro profundo e duradouro. Penalizado, fiz as malas. Levaria duas. Em seguida, procurei tranquilizar minha mãe. Disse-lhe que não iria me fixar para sempre em São Paulo. Ali estaria somente para o curso de pintura no Museu de Arte, tudo por conta de Chateaubriand, sem que a família gastasse um vintém. Terminado o estudo, voltaria para casa.
Chorando, ela me fez o pedido: “Quero que você vá comigo à Igreja, amanhã, às 6 horas. Você vai?”. Respondi que sim. Mamãe e minha irmã Marilda, após a missa, deixaram-me no aeroporto. Seria minha primeira viagem de avião. Houve escalas em Recife, Maceió, Aracajú, Salvador, Canavieiras, Ilheus, Vitória e, finalmente, a Cidade Maravilhosa, o sonhado Rio de Janeiro, encheu-me os olhos e os sentidos.
Fui direto para o Hotel Serrador, onde sabia estar hospedado Pedro Gondim, então deputado estadual, que integrava uma Comissão de Agricultores da Paraíba em busca de preço mínimo para o nosso Sisal. Os americanos tinham descoberto o nylon, material com que passaram a tecer cordas. Com isso, nosso agave despencou.
Minha chegada foi uma festa. Lá estavam, também, os deputados Clóvis Bezerra, Barreto Sobrinho e alguns plantadores. Todos queriam saber notícias da terrinha, a Paraíba, a Pátria Amada. Fiquei com alguns deles no mesmo apartamento, o 1.407, e já cometi a primeira gafe. Ao seguir para o banho encontrei algo no chão. Fiquei em dúvida: seria um tapete, uma toalha? Era pouca a diferença. Decidi pela segunda alternativa e recorri ao cabide do banheiro. Depois de mim, foi banhar-se o deputado Barreto Sobrinho que saiu do banheiro indignado: “Quem foi o imbecil que retirou o tapete do chão?”. Denunciei-me para a gargalhada geral. Fiquei branco, da cor dos lençóis que nos cobriam as camas.
No dia seguinte, procurei o Dr. Assis. Ele foi informado da minha presença pelo então senador Ruy Carneiro. Chatô (assim o tratavam os íntimos) disse a Ruy que eu deveria ir a O Jornal, órgão líder da Cadeia Associada, a partir das 16 horas, daquele mesmo dia. Encontrei-o, ali, a escrever o artigo diário que era então publicado, simultaneamente, em todos os jornais da poderosa Cadeia. Introduziu-me no pequeno gabinete um sujeito extraordinário (como vim perceber ao longo da convivência) chamado Irany Bastos da Costa. Com o tempo, passamos a nos tratar por primos, devido ao fato de ambos termos o sobrenome Costa.
Chateaubriand apanhou um exemplar do Jornal A Imprensa, editado na Paraíba e dirigido pelo padre Luís Gonzaga, a quem retratei, à guisa de brinde, em óleo sobre tela. O padre pedira uma foto minha e a estampara no jornal com a notícia de que eu estaria viajando a São Paulo, convidado por Assis Chateaubriand para cursar pintura no MASP.
Meu protetor vira-se para mim: “Meu filho (era assim como Dr. Assis tratava a todos os jovens), você é uma pessoa inteligente. Comprometeu-me com todo o eleitorado da Paraíba, ao fazer publicar essa notícia aqui (e exibiu-me o exemplar que tinha à mão)”. Disse isso e pôs-se a rir. Perguntou se eu já conhecia o Rio e, ao ouvir que não, tocou a campainha, chamando Irany. Ordenou: “Diga a Martinho (o diretor financeiro do O Jornal) que entregue ao Gondim dez contos de reis. É para que ele, durante esta semana, conheça a cidade.
Confesso que tremi nas bases. “Muito obrigado”, agradeci. Disse-lhe que estava hospedado no Serrador e dele ouvi o comentário: “Começou bem. Este é um dos melhores hotéis do Rio”. Como se já não bastasse, Chateaubriand recomendou que Irany pusesse à minha disposição um carro com motorista. Boquiaberto, eu nada conseguia dizer além de um “muito obrigado”.
Irany levou-me até Martinho de Lima Alencar, mas não antes de uma conversa em particular entre os dois. Depois, o diretor financeiro recebeu-me no gabinete, entregou-me os dez contos de reis e me fez assinar um recibo, o que fiz quase sem ler. De posse da quantia, o que primeiramente fiz foi repassar cinco contos a Tio Pedro, pedindo-lhe para pagar, no banco de João Raposo, o empréstimo de que fora avalista. Pedro mostrou-se surpreso e exultante: “Oba! Chegou em boa hora. Eu ia retornar à Paraíba sem levar um figo podre para a família”.
No dia seguinte, um Chevrolet do ano, com motorista, estava às 8 da manhã à minha disposição, na portaria do Hotel Serrador. Conheci os pontos mais importantes do Rio: Cristo Redentor, Pão de Açúcar, Copacabana, Leblon, a Tijuca e sua Floresta, São Conrado. Ainda, os bairros de Botafogo, Flamengo, tudo, enfim, o que a cidade tinha de bom e bonito. Cheguei a conhecer, frequentando a boate Vogue, o pianista Sacha Rubim. Depois do incêndio da Vogue, Sacha fundou sua própria casa, a Sachas-Seven to Seven. Tornamo-nos amigos a ponto de eu ser brindado com a execução de “You Go to My Heart” sempre que entrava na maior e mais conceituada casa noturna do Rio de Janeiro, como veio a ser.
Oito dias de permanência no Rio, recebo um telefonema de Irany: ”Josélio, prepare as malas. Você vai estar amanhã no aeroporto Santos Dumond para embarcar com o Dr. Assis que chegou da Europa. Perguntou por você e me mandou retirar sua passagem para São Paulo, no mesmo voo dele. Mas não se preocupe, o motorista vai apanhá-lo, aí, no hotel. Sua passagem estará comigo”. No dia seguinte, já no aeroporto, o Dr. Assis perguntou-me: “Então conheceu bem a cidade?”. “Sim”, respondi. “Estive até em Niterói, capital do Estado do Rio de Janeiro”.
Já no assento, Chateaubriand puxa da pasta um maço de papel e começa a escrever “A bordo do Scandia da Varig, entre o Rio e São Paulo”. Eu, tão logo me foi permitido, ascendi um cigarro e ofereci outro ao Dr. Assis. “Obrigado. Eu não fumo”. E completou: “Meu filho, abandone esse vício, que significa morte lenta. É prazeroso, mais fatal”. Passei a jogar fumaça no doutor Assis. Dei-me conta do que ouvira e durante o resto do voo não fumei mais.
Passamos a conversar. Doutor Assis perguntou-me o nome todo. Surpreendeu-se com o Gondim e observou: “Então, somos parentes. Meu avô chamava-se Urbano Gondim Bandeira de Melo. Como a família Gondim é uma só em todo o Nordeste, você é meu primo. Eu não sei em que grau, mas somos parentes”.
“O parentesco me honra”, comentei. Chateaubriand fez outra pergunta: “Por que o seu prenome é Josélio? Não conheço outro”. Pensei em contar que esse era um problema dos meus pais. Mas, preferi explicar o que o meu pai me falou certo dia. “Dr. Assis, o meu nome é um termo híbrido. É junção de José com Hélio. Minha mãe namorou um rapaz chamado Hélio mas casou José. Sou, por ordem de nascimento, o terceiro filho do casal. Quando da escolha do nome do primeiro, predominou a vontade do meu pai. Viria ao mundo, então, José Gondim Filho. Mas, coitado, mal nasceu e já estava à beira da morte. A segunda, foi uma mulher, de quem minha mãe, sozinha, escolheu o nome. Mariza, porém, morreu aos 13 anos, vítima de tuberculose.
“Coitada!” – apartou-me Chateaubriand. E acrescentou: “Se fosse hoje ela não morreria. Temos aí a penicilina”.
Prossegui: “Meu pai me queria com o nome, também, de José. José Moreno Gondim Júnior. Minha mãe, entretanto, preferia Hélio. Até concordaria que eu recebesse o nome do seu irmão Francisco. Meu pai não aceitava uma coisa nem outra. Então, chegaram a tal resultado. Sou fruto da pouca vergonha do meu pai e da minha mãe. Virei Josélio”.
Chateaubriand riu, gostosamente. “Você tem razão. Foi, realmente, uma pouca vergonha”. E, brincalhão, decidiu: “Vou passar a tratá-lo por Gondim. Fica mais decente”.
No aeroporto, éramos recebidos pelo diretor geral dos Associados em São Paulo, Edmundo Monteiro, e por Armando Oliveira, o diretor financeiro. Sou apresentado a ambos como “um primo paraibano”. Afastei-me da conversa entre os três. Deveria ser assunto da Empresa. Chateaubriand, tão logo se despede dos dois outros, pegou-me pelo braço. “Gondim, vamos almoçar na casa do Rei do Alumínio, o Baby Pignatari”. Observei que já havia lido qualquer coisa sobre o homem na revista O Cruzeiro. Era um monstro para trabalhar. Tanto que o escritório ficava na própria casa. Ao chegarmos à Rua Haddock Lobo, tomo um susto quando o motorista faz meia volta e damos de cara com um portão que se abre rapidamente para entrarmos na suntuosa residência dos Pignatari.
Recebeu-nos a encantadora Nelita Alves de Lima Pignatari. Chateaubriand foi logo informando: “Trouxe para almoçar conosco meu primo Josélio Gondim”. Dona Nelita aproxima-se de mim e me beija o rosto com um “muito prazer”. E me deixa à vontade: “Sendo primo de Chateaubriand, você já tem uma casa aqui em São Paulo”. Doutor Assis comunica a Dona Nelita que precisa fazer a barba e ela sobe com o amigo uma das três escadas da mansão. Pensei, comigo mesmo, dando asas a meu provincianismo bem paraibano: “Se fosse minha mulher, ela desceria já separada judicialmente”.
Sou deixado numa pequena sala de espera, onde aparece um garçom com bandeja, copos, e bebidas à mão. “O senhor aceita alguma coisa?”. Eu já havia experimentado uísque na casa de João Minervino, por ocasião do aniversário de Ronaldo, seu filho único, gostando daquilo que provava. Então, pedi ao garçom: “Uísque, um copo longo, bastante gelo e água. Sem gás, por favor”. Prontamente, o moço serviu-me um scotch selo azul, 18 anos, o chamado blue, da linha dos melhores e mais considerados do mundo. Tomei três doses antes de sentar-me para o almoço. Ali, sou apresentado aos comensais como primo de Doutor Assis. À mesa, cuidei de observar, atentamente, os demais convidados, a fim de copiar os modos como se serviam. Ao final, participei de uma rodada de licores e charutos. Tomei um licor e pus-me a fumar um puríssimo cubano.
A caminho dos Diários Associados, Chateaubriand dormia e eu passava mal. Tinha consumido o charuto a tragadas. No gabinete do Doutor Assis, sou apresentado a Edmundo Monteiro, Armando Oliveira, Napoleão de Carvalho, diretores dos Diários. Chateaubriand convoca Edgar Naline, seu secretário, e pede-lhe para chamar a Diretoria do MASP. De repente, mais que de repente, sou apresentado, sempre na condição de primo, ao legendário Pietro Maria Bardi, o presidente, e a Flávio Motta, diretor e professor do Museu Chateaubriand. Recomenda que eles “puxem” por mim. “O menino tem talento”, disse. No dia seguinte, matriculei-me nos cursos de Pintura Clássica e de Publicidade e Propaganda.
A partir daí, sucederam-se almoços e jantares em mansões de tirar o fôlego. Assim foi que conheci e me tornei amigo de alguns figurões da política e da sociedade quatrocentona, em meio aos quais Jeremias Lunardelli, o Rei do Café. Chateaubriand batizava como “rei disso, rei daquilo” os homens que mais se destacavam em suas atividades, fossem industriais, fossem agrícolas. Surgiram, daí, pela imprensa, os Reis do Café, do Alumínio, do Gado, do Trigo e até da Noite, neste último caso, o conhecido empresário de shows musicais Carlos Machado. Tornei-me próximo de gente como Candido Fontoura, o tio Candinho, e do seu filho Olavo Fontoura. No jantar na casa de Jeremias Lunardelli, tive, também, a oportunidade de conhecer – além dos homenageados que eram, nada mais, na menos, que Jacques Fath e sua bela mulher Jeneviere Fath – grandes expressões da sociedade paulista.
Posso citar os Penteado, os Alves de Lima, os Fontoura, Ermelindo Matarazzo, Horácio Sales, Ricardo Jafet e Alexandre Marcondes Filho, estes três últimos, respectivamente, ministro da Justiça, presidente do Banco do Brasil e ministro do Trabalho. Encontro-me também, com o então governador Adhemar Barros, a quem eu já havia conhecido, aqui, na residência do prefeito Oswaldo Pessoa, por ocasião de sua visita à Paraíba. Naquela oportunidade, também presenteei Adhemar com retrato seu pintado por mim. Lembro-me do nosso diálogo. Adhemar, prático, logo me perguntou o que desejava dele. “Nada. Apenas brindá-lo e conhecê-lo pessoalmente”. Replicou, então: “Que tal, apareço mais gordo?”. Ao que respondi: “O senhor aparece como imaginei e pintei”. Ele viu a tela, teceu elogios e disse que iria levá-la para a sede do PSP, em São Paulo.
Passado algum tempo, sou chamado por um membro de sua comitiva ao terraço de Oswaldo Pessoa, onde me passa um envelope. “O Dr. Adhemar pediu-me para entregar-lhe isso. É uma ajuda para você comprar telas, pincéis e tintas. É coisa dele. Ele é assim mesmo. Gosta de ajudar os jovens idealistas como você”.
Saí dali ávido para abrir o envelope e quase caio para trás ao constatar que nele havia cinco contos. No nosso reencontro, perguntei ao Dr. Adhemar se o quadro com que eu o havia presenteado estava mesmo na sede do PSP. “Você está convidado a nos visitar, na Rua Barão de Limeira. Você aproveita e assina o livro de filiação ao partido. Mas, se não quiser ser meu correligionário, pode ir tomar um cafezinho na minha casa, Rua Albuquerque Lins, 992. Fui e tornei-me íntimo do governador de São Paulo, a quem visitava com frequência e por quem nunca deixei de ser atendido, qualquer que fosse o pedido.
Determinado dia, parei para pensar. Eu não tinha preparo, experiência de vida, nem desenvoltura pessoal para figurar nessas rodas. Era um fedelho, como meu pai, às vezes, costumava me tratar. Ao me conduzir a esses encontros, almoços e jantares e ao me apresentar como um primo seu, lá da Paraíba, Chateaubriand fazia-me parecer gente importante o suficiente para que um sem número de bajuladores de mim se aproximassem com o intuito de obter as simpatias e intimidades daquele que foi, na sua época, o homem mais poderoso do Brasil. Por que isso? Perguntava-me.
Certa noite, eu havia acabado de jantar no restaurante dos Associados e atravessava o enorme saguão do prédio quando à minha frente vejo Chateaubriand, Edmundo Monteiro e um cidadão cuja fisionomia não me era de todo estranha, embora não conseguisse identificá-lo.
“Meu filho, quero apresentá-lo ao Dr. Juscelino Kubitscheck, governador de Minas Gerais, que está nos visitando”, disse-me Chateaubriand. “Muito prazer, governador. Sou um admirador seu”, cumprimentei Juscelino.
Chateaubriand brincou: “O Gondim é um cangaceiro, autor de algumas mortes, lá na Paraíba. Por ser meu parente, eu o trouxe a São Paulo, escondendo-o da polícia paraibana, que é toda constituída de facínoras. Aqui, ele está sob minha guarda e proteção”.
“Quantas mortes você já praticou?”, perguntou Juscelino. Ao que respondi: “Nenhuma, Governador. Isso é fruto da imaginação criadora do Dr. Assis”. E Chateaubriand, bem humorado: “É, eles sempre dizem que são anjinhos. Gondim, você já jantou?”. Respondi que não, mas estava mentindo. Acabara de comer meu bife acebolado no nosso “Morte Lenta”. Contudo, eu não poderia desperdiçar a chance de um jantar com Chateaubriand, Juscelino e Edmundo.
“Então, vamos mostrar a pinacoteca do Museu de Arte ao governador Kubitscheck e, depois, jantaremos na boate Oásis”, propôs o Chefe. Eu nunca havia posto os pés na Oásis, à época, a única casa noturna de São Paulo, ambiente frequentado pelo High Society.
Após a visita, caminhamos, a pé, pela 7 de Abril até a esquina com a Ypiranga, onde funcionava a boite. Chateaubriand, apreciador de bons vinhos, logo recomenda ao maitre o que de melhor ali existisse. O jantar com o governador de Minas teria desde o mais fino champagne aos melhores vinhos da França.
Assisti a uma conversa inteligente entre homens extraordinários. Abordavam, com profundidade, questões relacionadas à política, à administração e à economia. Lembro-me de ter ouvido Juscelino dizer que, se o Brasil tivesse dois homens com o dinamismo e capacidade de realização de Chateaubriand no campo das artes, da cultura e da comunicação, outra seria nossa posição no contexto universal. Chateaubriand, por sua vez, antevia para Juscelino o destino que depois se consumaria: a Presidência da República. “Só se for com o apoio do seu formidável complexo de comunicação”, riu o governador.
“Você já o tem. Em Minas, os nossos jornais, rádios e televisão, já o apoiam”, ouviu ele do amigo. E a conversa transcorreu nesses termos: Juscelino observou que o apoio em questão deveria ter amplitude nacional e o Dr. Assis prometeu: “Quando chegar a hora, você verá que estamos do seu lado”. E o governador, irônico: “Isso, se o Getúlio deixar”. Nessa noite, Chateaubriand prometeu a Juscelino um livro de cujo autor não recordo o nome, mas que tinha por título “A Conquista do Poder”.
Às 11 horas em ponto, após servirem o jantar, Chateaubriand e Edmundo se despedem pois, conforme já tinham avisado, precisavam tratar de outro compromisso. Todavia, pediram que o amigo ficasse à vontade, em minha companhia. Assistirmos ao show marcado para a meia-noite e ali ficamos até as 3 horas da madrugada.
Uma coisa precisa ser contada. Tão logo Chateaubriand e Edmundo se retiraram, Juscelino me fez a seguinte pergunta: “Josélio, você que é um rapaz desenvolto, não teria umas flores para ornamentar nossa mesa?”. Não percebi, de início, a insinuação: “Flores, Dr. Juscelino?”.
“Sim, uma para mim e outra para você”. “Ah! Agora eu entendi”. Afastei-me e falei, por telefone, com Sheila, minha namorada e colega no curso do Museu. Pedi, então, que ela viesse ao meu encontro e que trouxesse a amiga com quem morava. “Diga que ela vai conhecer o governador de Minas Gerais, nosso futuro Presidente da República”, recomendei. E retornei à mesa: “Pronto. Já solicitei as flores à floricultura mais próxima. Estarão aqui em 15 minutos”. Enquanto as duas lindas e inseparáveis amigas não chegavam, Juscelino dançava com quase todas as mulheres ali presentes. Até porque foram informadas da importância do homem.
As flores chegaram. Apresentei-as ao governador, segurando o braço da namorada, como a dizer: “Esta aqui é a minha”. Juscelino encantou-se com a amiga de Sheila e saiu a dançar com ela. O encantamento foi recíproco. Quanto ao que aconteceu no restante daquela noite, todos, creio eu, serão capazes de imaginar.
Como costumo dizer, ninguém faz amigos numa Leiteria nem na Igreja. Na noite, sim. A partir dali, tornei-me amigo do governador mineiro que, mais tarde, viria a ser Presidente da República. A ele devo a nomeação para o cargo de Auditor Fiscal do Ministério da Fazenda, do qual sou aposentado e de cujos proventos sobrevivo.
Dispo-me no meu “Eu, Nu – No Caminho dos Elefantes”, livro que agora disponho à leitura de cada membro da Academia Paraibana de Letras. Nele, faço um relato de vida, dos sete aos setenta anos. E não falo apenas das minhas realizações. Conto, inclusive, sobre meus relacionamentos amorosos, antes, durante e depois do casamento. Mostro-me por inteiro.
O convívio diário com repórteres, redatores, fotógrafos, aquele ambiente, as conversas de redação, suas máquinas, logotipos, rotativas, o cheiro de tinta, começaram a despertar em mim aquela que descobri ser a minha verdadeira vocação. Inclinava-me, cada vez mais, para o jornalismo. A curiosidade logo me fazia conhecer, no seu dia a dia, tudo sobre a vida de um jornal.
Perguntei ao Dr. João Scantimburgo, diretor de redação do Diário de São Paulo e Diário da Noite, o que devia fazer para ser jornalista. “É só conseguir do dono do Jornal uma coluna para escrever e não haverá problema. Você não é primo do dono?”.
“Não é isso o que eu quero. Primeiro, não sei escrever. Não posso nem devo começar por onde se deve terminar. Eu quero aprender, começando por onde todos começam”, respondi.
Depois, procurei o Dr. Assis, em sua sala. Cautelosamente, perguntei a Edgard Naline como andava o humor do Chefe, naquele dia. Aliás, assim o faziam todos os seus subordinados, quando com ele tinham de tratar. Todos, sem exceção nenhuma, procuravam saber do fígado do chefão, antes da entrada no gabinete. “Está bem”, respondeu Edgar.
E lá fui eu: “Dr. Assis, eu gostaria de sua permissão para um estágio na Revisão dos Diários. Conversei com o Dr. Scantimburgo e ele me disse que, para ser um jornalista mesmo, eu teria de começar como revisor. E eu desejo ser jornalista. Estou determinado”.
Chateaubriand olhou-me fixamente e, após alguns segundo, observou: “Ah, meu filho, eu supunha que você tinha maiores aspirações na vida. O jornalismo é sacrifício, obrigação, vocação e muita renúncia. É uma classe sofrida, muito mal remunerada e, na maioria das vezes, injustiçada. Você pretende ser repórter?”.
Ele chamava a todos e a si próprio, de repórter. “Eu pretendo começar assim como o senhor começou. O senhor não foi revisor de A União, lá na Paraíba?”, questionei. E ouvi: “Eram outros tempos”. Naquela época não havia cursos para jornalistas. Tal profissional se fazia no batente, no dia a dia do jornal.
Em São Paulo, apenas a Fundação Casper Líbero ministrava aulas de Jornalismo. Decidi fazer a matrícula e cursei um ano de jornalismo teórico. Lembro-me bem de um professor que não gostava de assim ser chamado. Dizia-se sempre um colega nosso. No primeiro dia de aula, falou algo que muito me impressionou e, até hoje, guardo na memória: “Jornalismo é coisa muito séria. Aqueles que têm o privilégio de escrever para dezenas, centenas, ou milhares de pessoas, têm de estar conscientes de um só compromisso para com os seus leitores, o de informar, dizer sempre a verdade”. Quando eu falei, sem titubear, da matrícula na Fundação Casper Líbero, Chateaubriand, sentindo que eu estava mesmo decidido, ainda tentou me demover da ideia com a observação de que jornalismo não se aprende na escola.
“É por isso mesmo que vou começar como revisor. Com seu consentimento, vou me matricular na Fundação e fazer revisão nos Diários. Junto, assim, a teoria e a prática”.
Ele ficou pensativo durante algum tempo para, por fim, dizer-me: “Bem, se é isso mesmo o que você quer. Eu pensava que você queria ser um consagrado pintor. Isso significa que a Paraíba não mais terá um sucessor de Pedro Américo”. “Mas, terá um seguidor seu”, ponderei. Ele riu e mandou-me falar com Scantimburgo, prevenindo-me de que o trabalho na revisão era puxado, indo até altas horas da madrugada. Passei seis meses na Revisão e um ano na Fundação Gaspar Líbero. A Revisão foi a maior escola de jornalismo que conheci. Aprende-se, ali, de tudo. A ler, escrever, pontuar, virgular.
Estreei na carreira, portanto, como revisor do Diário de São Paulo e do Diário da Noite, em 1954. Daí por diante, minha trajetória foi velocíssima: repórter policial, social, geral, político, articulista, subeditor e editor de minhas próprias publicações. Os Associados passaram a divulgar meus artigos em São Paulo, assim como em O Norte, na Paraíba, no O Jornal do Rio de Janeiro (então líder da Cadeia) e no Diário de Pernambuco. Transformei-me, também, em assessor e numa espécie de secretário particular do Dr. Assis. Mas, a impaciência de quem não nascera para receber ordens, apesar de não saber muito bem delas, levou-me ao desligamento dos Diários Associados, em 1956.
Com apoio do próprio Chateaubriand, fundei, no Rio, a Revista Tudo, uma iniciativa pioneira, arrojada e ariscada. Inspirada, na Time, a publicação precedeu as atuais revistas Veja, IstoÉ e Época. Mais tarde, lancei O Espelho, em Brasília, também de caráter pioneiro. Lancei O SOL – A Revista do Nordeste, e, por último, aqui na Paraíba, o meu maior e melhor projeto editorial, A CARTA. Fui, no dizer do colega Josemar Dantas, editorialista do Correio Brasiliense, “um pioneiro em quase tudo o que fez”.
Hoje, escrevo o livro que já tem o seu título: “Cadeira de Rodas”, narrando minha odisseia. Falo da neuropatia que me manteve, durante dois anos, na condição de cadeirante. Progredi, depois, para um andajá e, em seguida, para a bengala, que ainda uso. Estou preparando o lançamento de uma nova revista, a Cactus, que circulará nos Estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte.
Minha biografia completa, minha vida dos sete aos setenta anos, está, como já disse, no lançamento de 2007, o do EU, NU – No Caminho dos Elefantes. Já escrevi três livros: Sacudindo a Poeira, Sob o Sol do Nordeste e No Caminho dos Elefantes. O lançamento deste último trouxe à Paraíba o ex-presidente Fernando Collor, hoje senador por Alagoas. Fui a Miami, a fim de convidá-lo e ele atendeu ao convite. Pela primeira vez, punha os pés em João Pessoa. Repasso tais publicações aos ilustres membros da Academia Paraibana de Letras, para que saibam, se assim o fizerem, em quem estarão votando.
Considero-me merecedor de tal aspiração. Portanto, peço-lhes o voto por julgar-me credenciado a estar, com muito orgulho, entre vocês. Grato e, sinceramente,
Josélio Gondim.
*Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).