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*Frutuoso Chaves
Foi curta a temporada do Circo Estrella del Mar, no Pilar da minha infância. Não passou de uma semana, enquanto os outros, antes e depois dele, demoravam-se ali 15 ou mais dias, até a mudança para a praça seguinte.
A confusão em que seus artistas se meteram foi apenas uma das razões para a curta permanência. A outra foi a Semana Santa, tempo da reclusão de corpos e espíritos, dias de meditação e luto.
Também, de tudo com leite de coco: o peixe, o bredo verdinho e até o feijão nosso de cada dia. Das coisas assim temperadas por ordem expressa da minha mãe nem o dono da casa escapava. Mesmo ele que mandava em tudo com pulso de ferro.
Como eu detestava feijão no coco. E acredito, piamente, que assim estava em numerosa companhia. Não conheci menino da minha idade que disso gostasse. A não ser os bem pobrezinhos, aqueles que pediam um jejum para as mães jejuarem.
Pedido de perdão tem prazo validade? Espero que não tenha, pois, sinceramente, eu também não gostava da Semana Santa. Daqueles dias intermináveis de reflexão e reza, dos santos todos cobertos e da alimentação frugal, sem carnes, até o momento do exagero de peixes, favas e feijões, tudo com o bendito coco.
De circo eu gostava. O Estrella del Mar – assim mesmo, metido a besta, espanholado – chegou sem aviso. A indicação do terreno deu trabalho à Prefeitura. O padre não queria aquilo perto da Via Sacra. O ponto então escolhido foi o Compra Fiado, topônimo inspirado na penúria dos moradores. O lugar abrigou, direitinho, o tablado, a arena, o pano de roda, as tendas e tralhas da trupe.
Fugi duas vezes para ver o espetáculo e, já na primeira, caí de quatro pela contorcionista, um elástico em pessoa, um diabinho alourado capaz de botar, naquele tempo de orações e comedimentos, sem o menor sacrifício, quantas vezes quisesse, os pés na cabeça. Na dela própria, evidentemente.
Que vergonha quando o número terminou e aquela deusa subiu ao poleiro e pôs uma fita perfumada no meu ombro, providência destinada a arrecadar um dinheirinho além da mixuruca provinda da bilheteria. Até Paulo Barbosa, duas fileiras abaixo, geralmente mais liso do que eu, contribuiu, fita no ombro, com a bolsa da menina. E eu, ali, sem um níquel.
O desejo da reparação foi o que me fez voltar ao circo onde tudo se repetia: o palhaço com as mesmas piadas, os acrobatas com as mesmas piruetas e a garota com aquela fita cheirosa. A diferença, acho eu, foi o valor da minha rendição aos encantos dela. Demorasse mais ali o Estrella del Mar e a padaria do meu pai teria falido mais cedo.
Minto.
Havia outra coisa também diferente naquela noite: a segunda parte do espetáculo reservada ao teatro, se é que as falas recitadas e a má postura dos atores mereciam o termo. O tema escolhido, em homenagem à ocasião, era A Paixão de Cristo.
Mesmo inocente acerca de muitas coisas, em razão da pouca idade, comecei a desconfiar do empurrão forte de um soldado romano num dos apóstolos. Não era em Cristo que ele deveria bater? A barba espessa na cara de surpresa do homem assim agredido não me era de todo estranha. Eu a conhecia da cena anterior quando na cara de Judas e, antes disso, na do mestre de cerimônia.
Não demorou muito para o distinto público, ao cabo do terceiro intervalo, se horrorizar com a perseguição ao barbudo por alguém de túnica levantada e faca na mão. O perseguido fugiu pelo picadeiro, a rota mais curta.
Escapou do romano, mas não do delegado Fonseca que deu ordem de prisão à trupe inteira. É que a bebida corria solta nos bastidores reavivando a inimizade entre aqueles dois. A encrenca, eu soube, tinha começado em Itabaiana, a praça anterior, por causa do desrespeito ao décimo mandamento.
Definitivamente, os homens não aprendem. É lição que advém dos tempos bíblicos, mas nunca aprendida. Os machos, em todas as eras, não atinam para o fato de que não se deve juntar mulher e cachaça, se um estiver de olho apenas na bebida e, o outro, no tira-gosto.
De todo modo, acho que os dois inimigos se reconciliaram depois de uma noite na cadeia, porquanto partiram juntos e em paz, dois dias depois do acontecimento.
Quanto a mim, observo que certas coisas deixam marcas permanentes. Ponham-me, ainda hoje, frente a apresentações da tevê com essas divindades olímpicas que pairam no ar e assombram o mundo com seus rodopios e logo me vem à mente a garota do Circo Estrella del Mar. Mesmo que eu nunca mais tenha sabido dela.