Uma recente chacina na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, na fronteira com o Mato Grosso do Sul, reacendeu o debate sobre a atuação e a influência de facções criminosas brasileiras no país vizinho.
Ao todo, quatro pessoas foram assassinadas com dezenas de tiros na noite do último sábado (9) depois de saírem de uma casa noturna na cidade do Paraguai.
Entre os mortos havia duas estudantes brasileiras: Kaline Reinoso de Oliveira, de 22 anos, e Rhannye Jamilly Borges de Oliveira, de 18. Também morreram os paraguaios Haylee Carolina Acevedo Yunis, 21, e Omar Vicente Álvarez Grance, 32, conhecido como Bebeto.
Segundo autoridades policiais da região, a principal suspeita é que o motivo do crime seja uma disputa interna em uma quadrilha brasileira de traficantes de drogas.
A onda de violência também incluiu o assassinato do vereador Farid Charbell Badaoui Afif, da cidade brasileira vizinha de Ponta Porã, no dia anterior.
O narcotráfico na fronteira entre Pedro Juan Caballero e Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, é controlado por pessoas ligadas ao Primeiro Comando da Capital (PCC), tanto brasileiros quanto paraguaios que se filiaram à facção paulista. Mas grupos locais também participam do tráfico.
A região, conhecida como fronteira seca, tem sido usada pelo grupo para transportar drogas para o Brasil, principalmente cocaína e maconha cultivada em fazendas do Paraguai.
A chacina não é a primeira vez que traficantes brasileiros se envolvem em episódios de violência no país vizinho (leia mais abaixo).
Nos últimos anos, o Paraguai se tornou uma das principais áreas de atuação do PCC, a ponto de autoridades declararem que a quadrilha é o principal grupo criminoso do país.
“O Paraguai tem uma importância fundamental (para o PCC), porque ele é uma das principais rotas de entrada de drogas no Brasil, principalmente maconha e cocaína. Essa droga acaba abastecendo a Europa, a África e o próprio mercado interno brasileiro”, explica Rafael Alcadipani, professor da Fundação Getúlio Vargas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
‘Estamos perdidos, com medo’, diz governador
Segundo a polícia, Omar Vicente, o Bebeto, foi morto com 31 tiros – ele seria o principal alvo dos pistoleiros na cachina do último sábado.
Já Yunis Carolina, morta com 14 tiros, era filha de Ronald Acevedo, governador da província de Amambay, onde fica Pedro Juan Caballero.
Após a morte da filha, o político paraguaio afirmou que região está controlada pelo crime organizado e que a polícia local não tem recursos para combater o crime. Também comparou a cidade a Sinaloa, no México, área controlada por um violento cartel do narcotráfico.
Segundo ele, “é impossível” saber quem faz parte das quadrilhas que dominam Amambay. “Minha filha estava no lugar errado com a pessoa errada. Nossos filhos estão nas mãos deles (facções)”, disse Acevedo à rede de TV ABC, na terça-feira.
Segundo o governador, as forças policiais da região não têm armamento suficiente para combater a criminalidade nem capacidade técnica para investigar as quadrilhas.
“Estamos perdidos, derrotados. Hoje aconteceu comigo, amanhã pode ser com qualquer um. Todos estamos com medo”, disse o político.
Na terça-feira, centenas de moradores da cidade realizaram um protesto pedindo o fim da violência na região.
Para Rafael Alcadipani, da FGV, o Estado brasileiro perdeu o controle sobre a atuação das facções brasileiras, que se internacionalizaram em busca de novos mercados. “Estamos exportando criminosos e facções. A situação do Paraguai só demonstra o quanto perdemos o controle do crime organizado em nosso próprio território”, diz.
“Enquanto o crime é multinacional, a Justiça e as polícias atuam de maneira regionalizadas, sem integração dentro do Brasil, mas também sem integração com outros órgãos de combate ao crime fora do país”.
Brasileiros presos
Seis brasileiros foram presos sob suspeita de participação na chacina. Eles estavam em uma casa em Cerro Corá, localidade próxima a Pedro Juan Caballero.
Em entrevista à rádio ABC Color, Gilberto Fleitas, subcomandante da Polícia Nacional do Paraguai, afirmou que a matança tem ligação com desavenças internas em um grupo de traficantes brasileiros.
“Havia um conflito entre essa pessoa Bebeto, e outras pessoas. Foi uma questão interna no mercado brasileiro, envolvendo cargas de drogas. Mas ainda precisamos investigar quem são os autores intelectuais (do crime)”, disse Fleitas.
Essa não foi a primeira vez que brasileiros se envolveram em episódios violentos no Paraguai. Nos últimos anos, os casos vêm aumentando. A BBC News Brasil reuniu alguns deles, que mostram como o PCC se tornou um ator importante na criminalidade na fronteira e dentro do território paraguaio.
Assassinatos em Pedro Juan Caballero
Vizinha de Ponta Porã, Pedro Juan Caballero é uma das cidades estratégicas da fronteira que estão inseridas na principal rota de narcotráfico que envolve o Brasil.
Essa rota, que se vale de aviões, carros e caminhões, permite a grupos criminosos comprarem cocaína produzida em países produtores, como Bolívia e Peru, e a levarem para São Paulo e Rio de Janeiro. Parte da droga depois é enviada à África e à Europa por meio de associações com outras quadrilhas internacionais.
A atuação do PCC no país vizinho ocorre há mais de uma década, mas se intensificou nos últimos anos em meio à internacionalização da facção surgida em presídios paulistas nos anos 1990. O país também é apontado como local de esconderijo para criminosos foragidos do Brasil.
Tido como principal líder do grupo, Marcos Willians Herbas Camacho, conhecido como Marcola, ficou escondido no Paraguai por alguns meses antes de ser preso em São Paulo, em 1999, por exemplo.
Segundo relatório da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o Mato Grosso do Sul ganhou força como “corredor de drogas” por causa da ampla fronteira seca com o Paraguai, que facilita o transporte rodoviário em grande escala para lugares estratégicos como o porto de Santos.
Até meados desta década, toda essa região paraguaia era controlada por famílias tradicionais e ricas, que administravam estabelecimentos comerciais e também lidavam com comércio de produtos ilícitos, como entorpecentes.
O PCC enfrentava obstáculos para dominar a região e passou a se associar a criminosos locais para eliminar concorrentes e principalmente intermediários no Paraguai, na Bolívia e na Colômbia.
Mirava maiores margens de lucro e controle das operações de tráfico de drogas e armas — segundo a Polícia Federal brasileira, boa parte do armamento ilegal apreendido no Brasil nos últimos anos era oriunda de contrabando do Paraguai.
Em 2016, esse processo de expansão chegou ao ápice: um ousado atentado executado por criminosos brasileiros matou Jorge Rafaat Toumani, 56, empresário apontado como chefe da maior quadrilha de Pedro Juan Caballero.
Toumani, conhecido como “rei da fronteira”, era aliado do PCC na época, mas acabou morto em uma emboscada cinematográfica, com armamento antiaéreo e de uso exclusivo das Forças Armadas. O crime foi atribuído ao PCC, que teria a intenção de controlar o fluxo de drogas na cidade.
O assassinato acentuou a disputa tripla entre seguidores de Rafaat e membros de dois grupos brasileiros, o PCC e o Comando Vermelho, criado no Rio de Janeiro.
Mas o plano do PCC em parte deu certo.
Já nas últimas duas semanas, segundo a polícia paraguaia, ao menos 15 pessoas foram assassinadas na fronteira.
De acordo com o blog do jornalista Josmar Jozino no UOL, uma investigação da Polícia Federal apontou que o PCC teria 174 membros na fronteira.
O objetivo do grupo é se tornar hegemônico na distribuição de drogas para o Brasil pela divisa com Pedro Juan Caballero – a polícia paraguaia já considera a quadrilha brasileira como o principal grupo criminoso do país.
Mega-assalto em Ciudad del Este
Mas o tráfico de drogas, embora seja a mais lucrativa atuação do PCC no Paraguai, não é o único foco da quadrilha.
Em abril de 2017, um mega-assalto atribuído pela polícia ao PCC assustou moradores de Ciudad del Este, na região da tríplice fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina.
O assalto à empresa de transporte valores Prosegur aconteceu durante a madrugada. Um grupo de cerca de 40 criminosos usou bombas e fuzis para explodir as paredes blindadas da transportadora. Segundo a polícia, a quadrilha roubou cerca de US$ 11,7 milhões (R$ 40 milhões, em valores da época), o maior assalto já registrado no país sul-americano.
Na ação, também foram utilizados armamentos que as polícias brasileira e paraguaia não dispunham, como uma metralhadora .50, capaz de derrubar aeronaves.
Os bandidos chegaram a queimar carros e caminhões para impedir que policiais se aproximassem da sede da companhia. Um policial que estava na rua foi assassinado.
Depois de pegar o dinheiro, os homens usaram dois barcos para fugir em direção ao Brasil.
Nos últimos anos, vários suspeitos de participação no crime foram presos, mas apenas uma pequena parte do dinheiro roubado foi recuperado.
Depois, mega-assaltos como o da Prosegur ocorreram em cidades do interior paulista, em episódios que ganharam a alcunha de “novo cangaço”, em virtude das ações cinematográficas envolvendo dezenas de criminosos, armamento pesado, bombas e reféns.
PCC nas prisões paraguaias
Assim como ocorre no Brasil, o PCC também tem influência dentro das prisões paraguaias.
Em janeiro de 2020, cerca de 75 presos ligados ao PCC fugiram de uma prisão em Pedro Juan Caballero.
Já em fevereiro deste ano, sete presos foram mortos durante uma rebelião no presídio de Tacambú, o maior do país, em Assunção.
Segundo o governo, o motim começou depois que um preso filiado ao PCC foi transferido. Ele seria o responsável por distribuir drogas dentro da detenção, que tinha cerca de 4.100 presos, o dobro de sua capacidade.
Segundo um relatório do Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura, as prisões do Paraguai estão em péssimas condições, o que alimenta o controle dos locais por facções criminosas como o PCC.
O estudo aponta que 25% das 153 mortes ocorridas em presídios do país entre 2017 e 2020 foram causadas por agressões de terceiros.
Já o World Prison Brief (WPB), principal banco de dados mundial sobre sistemas carcerários e que é compilado pelo Instituto de Pesquisa de Políticas de Crime e Justiça (ICPR) do Reino Unido, aponta que a taxa de ocupação dos presídios paraguaios é de 143%.
Em entrevista recente à BBC, César Muñoz, pesquisador sênior da Human Rights Watch (HRW) para a América Latina, atribuiu a superlotação e as péssimas condições dos presídios sul-americanos como duas das causas do crescimento de facções criminosas na região.
“Se você tem uma cela que é feita para abrigar cinco pessoas, mas ela tem 30, os guardas não conseguem manter o controle do local. Então a superlotação favorece o crescimento de grupos criminosos”, diz.
“As prisões são um elemento muito importante dessas redes, porque elas são um local de recrutamento”, acrescenta.
(Com BBC BRASIL)