A entidade brasileira oferece benefícios a federações em troca de apoio político e incentiva a perpetuação no poder de velhos dirigentes e velhas ideias
O futebol brasileiro reproduz, em menor escala e à sua maneira peculiar, a estrutura de poder e de vícios da Fifa, explicitada pela investigação do FBI, a polícia federal americana, e do Departamento de Justiça dos Estados Unidos. As semelhanças entre a entidade coordenadora do futebol mundial e a CBF não existem por acaso. Coube ao brasileiro João Havelange estabelecer as bases de funcionamento tanto da Fifa quanto da CBF, nas décadas em que o esporte se transformou em um bilionário negócio. A contradição do modelo é que esse moderno showbusiness é comandado, em diferentes medidas na Fifa e no Brasil, por dirigentes com o pé no passado, “coronéis” regionais ávidos por benefícios pessoais e pela eternização no poder.
Havelange passou 18 anos à frente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD, que controlava 23 esportes), imediatamente seguidos por outros 24 como presidente da Fifa, até 1998. O dirigente moldou o novo perfil da entidade na era dos negócios com patrocinadores, empresas de marketing e de material esportivo. Pegou a entidade com menos de US$ 20 no caixa e a entregou quase um quarto de século depois como uma multinacional com US$ 100 milhões no caixa, US$ 500 milhões a gastar na Copa de 1998 e US$ 4 bilhões a receber nos dez anos seguintes. Um dos primeiros megacontratos foi feito com a Coca-Cola, em 1975. Quando Havelange iniciou sua gestão na CBD, o cargo não era remunerado. Atualmente, o salário de presidente da CBF é de cerca de R$ 200 mil.
Havelange defendia uma estrutura de negócios que permitisse ao futebol se expandir, com o dinheiro dos patrocinadores. Era orgulhoso de seu papel e sua realização. “Gostaria que a política administrativa que rege os destinos da Fifa pudesse servir de exemplo. Não só no mundo do esporte, mas no âmbito de muitas empresas e mesmo dos governos”, escreveu em artigo na Folha de S.Paulo, em 1994. Ainda como prestigioso mandatário do mundo futebolístico, Havelange elegeu em 1998, como sucessor, seu secretário-geral e braço-direito, o suíço Joseph Blatter – que renunciou esta semana após 17 anos – e ungiu na CBF o genro Ricardo Teixeira, em 1989. Teixeira ficou 23 anos na função.
Da mesma maneira como a Fifa distribui politicamente recursos para as confederações regionais e nacionais, a CBF também usa o poder econômico para atingir seus objetivos políticos. Para angariar o apoio das federações – que formam o colégio eleitoral da CBF ao lado dos 20 clubes da Série A –, a entidade nunca se furtou a mimar e agradar seus eleitores. A prática, comum sob Teixeira, ganhou ainda mais força no mandato de José Maria Marin (2012-2015), preso na Suíça dia 27. No seu primeiro ano, repassou R$ 27 milhões às afiliadas, 63% a mais que seu antecessor tinha transferido em 2011. Todos os cartolas de federações foram convidados para a abertura, em Brasília, e a final da Copa das Confederações, no Rio, com hospedagem em hotéis de luxo e despesas por conta da CBF. Novamente com tudo pago, eles seriam convidados a passar quatro dias na Costa do Sauípe, na Bahia, com acompanhante, para o sorteio dos grupos da Copa do Mundo. Meses depois, mais um convite para evento sem despesas: o lançamento da candidatura a presidente de Marco Polo Del Nero, em São Paulo. As federações passaram a ganhar de R$ 30 mil a R$ 50 mil mensais para despesas fixas, e cada dirigente mais R$ 11 mil, como “ajuda de custo mensal”. Diante de tantas benesses, a oposição, quando existe, é silenciosa e pouco representativa.
Numa mistura entre política, coronelismo, nepotismo e corrupção, as federações se tornaram plataformas de projeção para políticos de diferentes tamanhos. Boa parte das 27 federações estaduais é comandada por homens cuja atividade principal é a política. É o caso de Marin, ex-vice-governador de São Paulo, e dos quatro vice-presidentes da CBF, entre os quais Fernando Sarney, membro da influente família do ex-presidente da República José Sarney. Os presidentes no Amapá e Amazonas são deputados federais. Além da política, eles têm em comum o hábito de se encontrar na mira da Justiça. Ao menos 13 dos cartolas de federações respondem ou responderam a ações judiciais.
Assim como nas confederações nacionais e regionais da Fifa, no Brasil ninguém abre mão do poder. A alternância é escassa e abundam os cartolas que se mantêm no cargo por décadas. O mais longevo é Zeca Xaud, há 41 anos na presidência da irrelevante federação de Roraima, onde o futebol continua semiamador tanto tempo depois. O vice-presidente da CBF para a região Sul e primeiro na linha de sucessão de Marco Polo Del Nero, Delfim Peixoto, ex-deputado estadual, comanda o esporte em Santa Catarina há 30 anos. O deputado federal em quinto mandato Marcus Vicente (PP-ES) renunciou à federação capixaba após 21 anos, ao ser eleito vice-presidente da entidade. Carlos Orione (Mato Grosso) é presidente desde 1986, embora tenha se licenciado de 2014 até a semana passada. O ex-prefeito de Rio Negro (MS) Francisco Cezário reelegeu-se em abril para o sexto mandato e quinto consecutivo na federação sul-matogrossense.
Quando há mudanças, frequentemente o poder fica em família. Em Alagoas, o jovem Felipe Feijó, de 24 anos, sucedeu em abril o pai, Gustavo Feijó, prefeito de Boca da Mata (AL) e presidente da federação de 2007 a 2014 – outro que abriu mão do cargo para ser vice-presidente da CBF (Região Nordeste). Em Goiás, André Pitta assumiu em 2007, com a morte do cunhado Wilson da Silveira, de quem era vice-presidente. O catarinense Delfim Peixoto nomeou o filho Delfim Peixoto Neto para um cargo na federação. Rubens Lopes, o Rubinho (RJ), promoveu o sobrinho Claudio Lopes, a diretor financeiro da federação. O diretor de Ética e Transparência da CBF, deputado federal Marcelo Aro (PHS-MG), é irmão de Adriano Aro, secretário-geral da federação mineira.
A CBF sempre foi ciosa no apoio a aliados diretos e outros que defendiam suas ideias no plano nacional. Formou, assim, a chamada “Bancada da Bola”. Pródiga, doou R$ 550 mil a políticos em 2002, R$ 280 mil no pleito seguinte e R$ 500 mil em 2006. Entre os beneficiários, estão o atual presidente do Senado, Renan Calheiros (R$ 50 mil), o senador Delcídio Amaral (R$ 100 mil), o mensaleiro Carlos Rodrigues, o Bispo Rodrigues (R$ 50 mil), a ex-governadora do Maranhão Roseana Sarney (R$ 100 mil) – irmã de Fernando Sarney – e seu marido, Jorge Murad (R$ 100 mil). Além de nomes nacionais, outros políticos ligados à CBF foram contemplados. É o caso do deputado Marcus Vicente (PTB-ES), atual vice-presidente da CBF, que recebeu R$ 100 mil, em duas campanhas. Irmão do ex-vice-presidente Emídio Perondi, Darcísio Perondi (PMDB-RS) ganhou R$ 150 mil. O PDT-AP, do presidente da federação local e candidato a prefeito, Roberto Góes, recebeu R$ 100 mil em 2008, quando se elegeu. O ex-senador Leomar Quintanilha, presidente da Federação de Tocantins, recebeu R$ 50 mil da CBF. Diante da má repercussão das doações, a entidade parou de doar oficialmente para campanhas.
Talvez esteja no ocaso a era em que os cartolas podiam fazer negócios, perpetuar-se no cargo e escolher herdeiros a dedo, sem ser importunados. Os últimos anos têm sido de sustos e tempestades para os dirigentes internacionais e caseiros. Em abril de 2013, Havelange renunciou à presidência de honra da Fifa, e Teixeira e o ex-presidente da Conmebol Nicolás Leoz deixaram seus cargos na entidade. Uma investigação interna apontara que haviam recebido de propina, entre 1992 e 2000, da suíça ISL, empresa de marketing esportivo da Fifa. Só os dois brasileiros teriam ganho R$ 45 milhões. As últimas duas semanas trouxeram revelações que abalaram o mundo do futebol e repercutiram no Brasil. O ex-presidente da CBF José Maria Marin foi preso em Zurique.
Na terça-feira, Marco Polo Del Nero, que não é citado nominalmente na denúncia dos EUA, convocou uma reunião de emergência com seus aliados para traçar uma aliança para se manter no poder. O encontro, iniciado às 11h na sede da CBF, no Rio, foi interrompido subitamente com a notícia da inesperada renúncia de Blatter, na Suíça. Marco Polo não disfarçou o nervosismo. Imediatamente, deu por encerrada a reunião. “Preciso voltar a São Paulo”, disse, recorrendo ao mesmo motivo que alegara, dias antes, para abandonar também de forma intempestiva o congresso da Fifa que elegeria Blatter.