*Nelson Valente
Morreu, neste início de século e de milênio, a educadora Branca Alves de Lima,
aos 91 anos, deixando órfãos aqueles que acreditam que a alfabetização com
cartilhas não só funciona muito bem como é mais simples do que essa “moda”
atual do construtivismo.
O falecimento de ‘Dona’ Branca não mobilizou o mundo educativo e nem a
imprensa. Consegui localizar nada mais que um anúncio fúnebre sem pompa,
um anúncio padronizado, silencioso, discreto e tímido em uma coluna intitulada
“Falecimentos”, no rodapé de matérias sobre violência na capital:
“Prof. Branca Alves de Lima – dia 21. Professora e escritora, era autora da
cartilha Caminho Suave. Filha do sr. Manuel Silveira Lima e de d. Isaura Alves
de Lima, era irmã do dr. Álvaro Alves de Lima, de D. Henriqueta Alves de Lima
e de Altair Alves de Lima Liguori, todos falecidos. Deixa cunhada e sobrinhos.
A missa de sétimo dia será celebrada no dia 27 (sábado) as 7.30, na Igreja de
Santo Agostinho, na Praça Santo Agostinho, Aclimação. (O Estado de São
Paulo, 25 de janeiro de 2001, p. 11)”
A vida de Branca Alves de Lima, autora da cartilha ‘Caminho Suave’, é a
síntese de um dos principais males – se não do principal mal – da Educação
brasileira: o enorme desrespeito dos gestores e das políticas públicas
educacionais em relação aos professores e professoras, aos estudantes e suas
famílias.
O sucesso da cartilha ‘Caminho Suave’. ‘Eles’ (o governo, o MEC e o Guia do
Livro Didático, o Conselho Nacional de Educação, as secretarias de Educação
etc.) estão projetando, quase decretando, que os alunos não usem mais
cartilhas.
Veja hoje o caso dos ciclos. Professores e professoras que há décadas têm na
reprovação seu principal recurso de disciplina foram, de uma hora para outra,
proibidos de usá-la. Mesmo com a proibição e à margem do Currículo Escolar,
avós, pais, parentes, amigos e professores, indicam a cartilha ‘Caminho
Suave’, na alfabetização de seus entes queridos.
Branca Alves de Lima concebeu, em meados do século passado, a cartilha
‘Caminho Suave’. Mais de 48 milhões dos brasileiros adultos de hoje foram
alfabetizados por ela, inclusive o presidente da República, Jair Bolsonaro.
Branca Alves de Lima, nasceu, viveu e morreu na capital, São Paulo, no
entanto não foi possível encontrar dados sobre a infância e adolescência da
menina que nasceu em um agosto de 1910, na região do Brás. Hoje sinônimo
de comércio, a região do Brás foi palco de uma histórica luta operária na
industrialização e homenageia um compatriota dos pais de Branca, português e
proprietário de terras: Benemérito José Brás. Nas primeiras décadas do século
XX, a região era rural e abrigava imigrantes, sobretudo italianos e portugueses.
A outra moradia de Branca foi na região de Fagundes e depois Liberdade, onde
morou até sua morte no ano de 2001.
A respeito de sua formação inicial, Branca pode ter estudado a instrução
primária em um Grupo Escolar da região, pois a capital, São Paulo, foi um dos
primeiros lugares a receber a implantação dessas instituições na última década
do século XIX. Projeto republicano, o Grupo Escolar, de ensino primário e
graduado em séries, convocou configurações no campo pedagógico da escola
primária, a despeito da não homogeneização dessas escolas no Brasil. Trata-
se de uma escola pública que serviu, a princípio, também para formar boa
parte da elite, pois a intenção republicana de educação popular ainda
demoraria a ser instalada. Na região do Brás, foi criado na década de noventa
do século XIX o Grupo Escolar Romão Puiggari, uma escola de referência para
os filhos dos imigrantes com dificuldade na língua. O espanhol Romão Puiggari
foi professor da Escola Normal de São Paulo e, assim como Branca, foi autor
de livros escolares. Acompanhado do professor Arnaldo Barreto, lançaram no
ano de 1895, pela livraria Francisco Alves, a série de quatro volumes de seus
livros de leitura da série Puiggari-Barreto, que conquistou em 1904 a medalha
de prata na Exposição Universal nos Estados Unidos, conforme afirmou Valdez
(2004). Neste Grupo Escolar, Branca foi professora, conforme será abordado
posteriormente. A menina Branca pode ter estudado em um dos colégios
confessionais da época, espaços que atendiam filhas de uma burguesia
paulista em ascensão, oferecendo uma educação religiosa e moral em regime
de internato ou semi-internato. Também poderia ter tido uma formação
doméstica, possibilidade existente na história da educação brasileira, mas,
diante das incertezas, o que temos de mais concreto é sua formação na Escola
Normal do Brás, estabelecimento constantemente citado como formação
máxima da professora. A Escola Normal do Brás, criada quase junto com o
nascimento de Branca, 1912, faz parte de um projeto de expansão de escolas
destinadas à formação de docentes para cumprir as exigências republicanas do
ensino primário.
As escolas normais públicas surgiram no Império brasileiro, na primeira metade
do século XIX, no entanto coexistiram, historicamente, com os conflitos do
público com o privado, tornando-se espaços, muitas vezes, frágeis, efêmeros e
repletos de continuidades e descontinuidades, consolidando-se, sobretudo, na
segunda metade do Brasil oitocentista. De acordo com Santos (2013), a
princípio, era Escola Normal Primária do Braz (com z), diferenciando-se por ser
a primeira escola pública da capital destinada à formação de professoras
primárias do sexo feminino. A mesma autora aponta ainda que, anexo à Escola
Normal, instalou-se o Terceiro Grupo Escolar do Braz, anteriormente,
denominado Seção Feminina do Grupo Escolar Modelo do Braz, que recebia
uma frequência grande de crianças de famílias de imigrantes do bairro. O site
do Centro de Referência Mário Covas revela a mesma data de instalação e os
nomes recebidos em ordem cronológica: Escola Normal Feminina da Capital,
Escola Normal Padre Anchieta, Escola Normal e Ginásio Estadual Padre
Anchieta e atualmente é Instituto de Educação Padre Anchieta. Em entrevista
dada no ano de 1967, Branca registrou sua preocupação com o processo de
alfabetização, que iniciou nos anos vinte quando frequentou essa Escola, Antes
mesmo de concluir o curso, em 1929, já lecionava:
“Na Escola eu aprendi a ensinar pelo método analítico puro – hoje chamado
global – e, em 1931, ingressei no magistério público e apliquei este método por
cinco anos. Mas foi uma decepção; não tive os resultados esperados. Então
resolvi ir modificando, por baixo do pano, passando a usar o analítico sintético,
mas partindo da palavra (O Estado de São Paulo, 20 de agosto de 1967, p.
19)”
Com o diploma de normalista em mãos, aos dezenove anos, Branca iniciou sua
jornada em escolas no interior de São Paulo. Em entrevista dada ao jornal O
Estado de São Paulo, no ano de 1991, registrou que iniciou sua carreira
profissional em uma escola rural de Jaboticabal, pois naquela época, segundo
ela, no início da carreira era preciso lecionar, no mínimo, um ano na zona rural
e aprovar, alfabetizando, no mínimo quinze alunos, para depois poder dar aulas
em uma classe de uma boa escola urbana. Aparentemente, pelos dados
obtidos, Branca passou bem mais que o tempo mínimo exigido. A mesma
matéria registrou que deu aulas em vários grupos escolares no interior do
estado e que, por onde passou, se preocupava com a dificuldade dos alunos
em aprender a ler, o que ocasionava um índice elevado de reprovação. No ano
de 1936, com vinte e cinco anos, a jovem professora lecionava em um grupo
escolar de São José do Rio Preto, onde iniciou experiências de alfabetização
com imagens associadas às sílabas, obtendo bons resultados.
O método analítico, também conhecido como “método olhar-e-dizer”, defende
que a leitura é um ato global e audiovisual. Partindo deste princípio, os
seguidores do método começam a trabalhar a partir de unidades completas de
linguagem para depois dividi-las em partes menores. Por exemplo, a criança
parte da frase para extrair as palavras e, depois, dividi-las em unidades mais
simples, as sílabas.
O método proposto por Branca Alves de Lima associa imagens e letras com o
objetivo de facilitar o aprendizado. A letra A é escrita no corpo de uma abelha,
a B na barriga de um bebê, a V compõe os chifres de uma vaca. Assim, a
cartilha Caminho Suave tornou-se conhecida como um método de
“alfabetização pela imagem”.
Os métodos de alfabetização podem ser divididos em dois grandes grupos: os
sintéticos, do micro para o macro (primeiro as letras, depois as sílabas e, em
seguida, palavras e textos); e os analíticos, do macro para o micro, que partem
da leitura da palavra e das frases para apenas depois destacar as sílabas e
letras.
Na cartilha Caminho Suave o material apresenta inicialmente as vogais, depois
forma encontros vocálicos e parte para a silabação. A autora juntou princípios
do método sintético com o analítico, o que fez bastante sucesso à época.
Seguramente, a carreira da professora Branca não é diluída em sua trajetória
da de autora de livros escolares, pois sua experiência é sempre retomada para
justificar a composição de seus livros, em especial a Cartilha Caminho Suave.
No entanto, é significativo o lugar que suas publicações, em especial a Cartilha,
ocupa na história da professora.
Esta é a modesta e sincera homenagem que posso agora prestar como tributo
de gratidão, a memória daquela que, sob moldes humaníssimos e quase
maternos, abriu-me a réstea de luz da alfabetização da cartilha “Caminho
Suave” de nossa educadora paulista, Branca Alves de Lima.
“Alfabetização pela Imagem”
* Nelson Valente é professor universitário, jornalista e escritor.