A boa notícia é que uma guerra entre russos e americanos devido à Ucrânia é ainda uma hipótese um pouco remota
João Batista Natali
São Paulo, SP
Aqui vai um exercício de imaginação. Durante a Guerra da Ucrânia, militares russos, que já se apoderaram das instalações da usina nuclear de Zaporíjia –a maior da Europa–, provocam em combate um acidente. O vazamento radioativo põe em risco a população civil.
E prosseguindo no faz de conta. O presidente da Ucrânia lança um apelo para que os Estados Unidos devolvam a usina aos técnicos ucranianos, mas a Rússia não a entrega pacificamente. Eis que pela primeira vez na história as duas potências nucleares de Moscou e Washington estão frente a frente e se matando uns aos outros.
A boa notícia é que uma guerra entre russos e americanos devido à Ucrânia é ainda uma hipótese um pouco remota. Ela não foi sequer evocada no podcast de que participou no final de agosto, na Universidade Johns Hopkins, Michael Kimmage, cientista político e historiador da Guerra Fria, e ex responsável por quatro anos pelo setor de Ucrânia no Departamento de Estado americano.
Realisticamente, o diagnóstico dele sobre um conflito direto entre Washington e Moscou não é tão improvável assim. Ele diz acreditar que hoje algum incidente possa levar as potências nucleares a arregaçarem as mangas e partirem para as vias de fato. Basicamente, entre o governo Joe Biden e a estrutura burocrática que sustenta Vladimir Putin não há hoje uma quantidade suficiente de canais de comunicação que seriam capazes de apartar qualquer circunstância de atrito mais grave.
Embora acredite que os instrumentos de dissuasão para que não se chegue a um conflito armado sejam algo que deve ser permanentemente reconstruído, a verdade é que hoje, entre os governantes dos EUA e da Rússia há bem menos diálogo do que existia em outras circunstâncias delicadas, como a Guerra do Vietnã, a guerra civil na Síria e o Afeganistão.
Em outras palavras, entre o Kremlin e a Casa Branca há hoje uma corrente bem mais fraca do que aquela que evitou, por exemplo, a eclosão de uma guerra com as crises dos mísseis em Cuba (outubro de 1962) e entre as Alemanhas, que levou a então União Soviética a levantar o Muro de Berlim (1961). Foi um período curto e bem agitado.
Kimmage chama a atenção para o fato de americanos, russos e ucranianos não serem os únicos personagens da guerra em curso. Por detrás dos EUA há toda a máquina de guerra da Otan, na qual cada membro reage ao conflito com a própria lógica, embora não sejam por enquanto combatentes diretos.
É o caso da Polônia e das repúblicas bálticas (Estônia, Lituânia e Letônia), enquanto no campo oposto há a Belarus, cada vez mais engajada ao lado dos interesses russos. O trágico nesses conjuntos de países é que eles podem acreditar que a guerra é também deles, o que os levaria –há pequenos precedentes– a querer entrar em combate, em nome de interesses comuns que precisam ser respeitados.
É bem verdade que ao mesmo tempo persistem pontos de cautela de Biden, construídos para evitar a ampliação dos campos de combate. Um deles está na entrega de armas e munições para a Ucrânia, desde que ela não volte esse arsenal para o território da Rússia.
Tais precauções, no entanto, são insuficientes para evitar a aparição de confrontos que seriam o resultado involuntário de pequenos incidentes. Dois exemplos que Kimmage menciona: Moscou não viu a mão dos americanos no assassinato recente da filha do ideólogo nacionalista Alexander Dugin. Caso contrário, isso teria gerado tensões bilaterais.
Outro exemplo está na presença, na Ucrânia, de grupos que se definem por uma ideologia puramente contrária à Rússia e que estariam dispostos a cometer loucuras para que o Kremlin possa ser inculpado. Uma delas consistiria em bombardear algum trem que transporte governantes estrangeiros até Kiev. Um atentado desse gênero pode provocar estragos inimagináveis.
Por fim, a motivação básica de um esforço do qual participam acadêmicos e pacifistas de todos os cantos do planeta é justamente o de evitar que nos aproximemos do risco de um conflito nuclear. Washington e Moscou não apelaram para esse arsenal desde momentos capitais de tensão e conflitos, como a guerra entre as Coreias e a crise do Canal de Suez.
Caso o mundo seja destruído por uma guerra nuclear, a guerra seguinte –já se disse– será disputada com estilingues e tacapes. Teremos recuado para a Idade da Pedra.
Estadão Conteúdo*