Marcelo Torres
Tomei um susto danado com as notícias que chegaram de Lisboa nesta quinta-feira, 10 de janeiro de 2019. Diziam elas que a partir de agora está proibido “deitar beatas ao chão” na cidade, assim como “atirar pequenas beatas pela janela”. Sim, é verdade e dou fé, porque bebi em dignas fontes, como os jornais Público, Observador e Diário de Notícias, além do Sapo, que é um dos mais acessados portais noticiosos portugueses.
Bem, se agora estão proibidas, pode-se deduzir que antes eram permitidas, essas tais coisas? Mas, como assim: deitar beatas ao chão? Quer dizer que se podia, até ontem, atirar pequenas beatas pela janela? Calma, amigo, calma. Ouçamos Caetano cantar: “Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões”. Assim que li, fui ao pai-dos-burros, o Dicionário de Português — mas o da língua de Luís de Camões, claro — e li, surpreso e risonho, que essas beatas, deitadas ao chão, ou atiradas pela janela, não eram aquelas que nós imaginamos, as mulheres carolas, sexo devoto, as que se dedicam o dia todo e todo dia à bendita religião, aquelas senhoras que os incréus chamam de papa-missa, papa-hóstia e ratas-de-igreja — não, não eram elas.
Beatas, neste caso, sob a última flor de lusa-europas, vinham a ser as pontas de cigarro — depois de fumado, é claro. Ou, dizendo de um modo outro: são aquelas coisinhas que, em língua de Caetano Veloso — lusa-américa-latim-em-pó — chamamos de bagas, chicas, baganas, bitucas, guimbas ou simplesmente pontas. E fiz uma breve busca virtual, na rede que não é de deitar nem de dormir, e em menos de minuto achei beatas aos tentos e centos usadas por António Lobo Antunes — para ficar num só escritor português.
Em Auto dos Danados, primeiro a personagem “lia as notícias surdo aos ruídos, folheava o desporto, alegrava-se com a necrologia, até apagar a beata”, depois “foi à soleira jogar a beata na rua”. Em A última porta antes da noite, há “uma beata meio dissolvida na chávena de café à cabeceira”, e “mendigos que dormem nas vinhas, pendurados de uma beata apagada no queixo”. E na Explicação dos pássaros, “os amigos barbudos e míopes, imperiosos de dogmas, deixaram a pouco e pouco de me procurar para me encherem os cinzeiros de beatas”, e “jamais compreendi o teu desleixo, o teu desinteresse pela casa, a tua indiferença perante os cinzeiros a transbordarem de beatas”.
Pois voltei os olhos ao Sapo, que anunciava em manchete: “Lisboa vai multar quem deitar beatas ou pastilhas plásticas”. Olhei também o Observador, que dizia em título: “Beatas e pastilhas elásticas no chão vão dar multa de até 1.500 euros”. Pronto, agora lá vinha esse outro termo — as pastilhas elásticas. Recorri ao Priberam, que explicou: “Pastilha elástica” é uma “pequena guloseima mastigável, que não é para engolir” (que bom você avisar!), “aromatizada, de consistência pegajosa e elástica, feita geralmente de chicle”, enfim, quer dizer “goma de mascar” — ou aquilo que chamamos chiclete.
Os livros do Lobo Antunes ainda estavam na tela, nas janelas abertas. Voltei ao Auto dos Danados, e vi que a personagem “cheirava bem, dava-me às vezes vinte escudos para orgias de rebuçados de mentol e de pastilhas elásticas”, depois falava de outra, “oculta pelos óculos escuros e pelos balões das pastilhas elásticas”. Em A última porta antes da noite, “nem cola pastilhas elásticas debaixo dos tampos”, e “foi ela quem me pegou no queixo depois de tirar a pastilha elástica da boca e a colar nas costas do banco da frente”. E em A ordem natural das coisas, a personagem sonhava com o “casamento num salão repleto das tuas colegas de liceu, cada qual soprando uma pastilha elástica cor-de-rosa”, e “depois de saberem que eu era diabética e não podia beber batidos nem mastigar pastilha elástica por causa do açúcar do sangue, deixavam de me cumprimentar”.
Ouçamos com atenção o filho de dona Canô: sejamos o lobo do lobo do homem, lobo do lobo do lobo do homem. O que quer, o que pode essa língua? Segundo Caetano, blitz quer dizer corisco, Hollywood quer dizer… Bom, Hollywood é cigarro. E a beata, e a beata, e a beata é a ponta, a gaba, a guimba. E pastilha elástica é chicle, goma de mascar ou, como canta o bom baiano, chic-left com banana. Livros, discos, beatas, pastilhas elásticas — e deixe que digam, que pensem, que falem.