Cena cotidiana que lembro saudoso: pela manhã, em casa, eu no gabinete, lendo ou escrevendo, a empregada na cozinha, mexendo em panelas, e minha esposa, na área de serviço, ou no quarto vizinho, costurando… e cantando.
Costurando e cantando e seguindo a canção. Podia ser Ângela Maria, ou Nelson Gonçalves, ou Luiz Gonzaga, ou Emilinha Borba… Fosse o que fosse, era lenitivo para o meu espírito nem sempre sereno. Sua voz suave me trazia tranquilidade, aquela que eu precisava para apaziguar meus temores e anseios – e poder organizar minhas ideias para viabilizar meus projetos de pesquisador, professor de literatura e crítico de cinema.
Com minha esposa aprendi muitas canções, sobretudo as antigas, que ouvira na infância e esquecera. Por exemplo, fiz, com a ajuda indireta dela, uma verdadeira “recuperação” de Lupicínio Rodrigues. Adorava sua interpretação sentida de “Nervos de aço” e de outros sucessos do compositor gaúcho.
Mas seu cantor preferido era mesmo Anísio Silva (“Mais uma luz se apaga / mais um sonho que chega ao fim…”), que me remetia às festas de rua dos saudosos anos cinquenta, quando nem nos conhecíamos, eu no meu singelo Jaguaribe, ela, no seu longínquo Picuí, mas, com certeza, ambos antenados nas amplificadoras de rua e suas páginas musicais. Afinal de contas, naquele tempo não havia muita diferença entre um bairro da capital e uma cidadezinha do interior.
De tanto ouvir minha esposa, me meti a cantar também. Lá pelos anos noventa – os filhos já morando fora – passou a ser costume nosso, depois da janta, nos sentarmos em cadeiras de praia no jardim de casa, e cantarmos, em dupla, ou cada um a seu turno, eu com minha vozinha acanhada, ela com sua voz doce, delicada e agradável. Pelo menos no quesito antiguidade, seu repertório era maior que o meu, e ia de Noel Rosa a Martinho da Vila, sem deixar de passar pelos italianos. Deliciosas suas performances de “Sapore de sale” e “Canzone per te”.
Contudo, com o passar dos anos, pouco a pouco, as letras das músicas não chegavam mais inteiras aos lábios de minha esposa; faltavam palavras, ou trechos completos, que ela fazia esforços e nem sempre conseguia arrancar dos desvãos de sua memória, cada vez mais mortiça.
Eram os primeiros sintomas do Alzheimer, doença de que, na época, nem desconfiávamos. Só quando ela passou a estranhar o rotineiro caminho entre a residência de minhas irmãs e a nossa, ou quando começou a se perder dentro do Shopping, é que nos demos conta – todos da família – do mal e do seu avassalador avanço.
Prefiro não narrar seus vegetativos últimos sete anos de vida, mas, conto ao menos uma das minhas penosas tentativas de resgatar sua memória através da música.
Foi numa das nossas últimas noites no jardim, ela já bem desfigurada pela doença, sem quase mais reconhecer aquele homem ao seu lado, que lhe pedi para cantar uma canção que eu lhe ensinara quando ainda éramos noivos, ou seja, meio século atrás. Uma canção que ela aprendera e na época cantava muito bem, embora fosse a letra original, em inglês, língua que não dominava.
Sabia que era uma tentativa praticamente inútil, pois a canção estava esquecida havia muitas décadas, mas arrisquei assim mesmo. Pedi-lhe que cantasse “From Russia with love” e, como ela, com sua voz debilitada, alegasse que não lembrava, solfejei os primeiros versos: “From Russia with love / I fly to you…”
E qual não foi o meu espanto quando ela, devagar, mas sem hesitação, prosseguiu: “Much wiser since my goodbye to you… E foi adiante e cantou a canção inteira, até a última palavra… e quase me matou de emoção.
Para voltar à cena doméstica com que abri este texto, um bem precioso que de minha esposa recebi e pelo qual lhe sou eternamente grato, cabe, embora imenso, em três letras: PAZ. E, confesso, paz é o meu oxigênio.
Este texto é só para lembrar, na data de hoje, o seu aniversário.