Insônia, ranger de dentes, dificuldades de concentração são os sintomas dos não imunizados, a angústia aumenta à medida em que a data se aproxima
“Pra que essa ansiedade, essa angústia?”, questionava em dezembro o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, pouco antes de a segunda onda da covid-19 deixar o Brasil inteiro sem ar. Ele falava da vacina, que só chegaria ao País em janeiro, em pouca quantidade. De lá para cá, idosos foram imunizados, mas a demora para proteger toda a população tira a paz dos mais jovens.
Insônia, ranger de dentes, dificuldades de concentração são os sintomas dos não imunizados. Virou tema na terapia e a angústia aumenta à medida em que a data prevista para a vacinação se aproxima, se os postos têm desabastecimento ou quando há mudanças no calendário, como ocorreu em São Paulo. O Estado promete vacinar todos os adultos até setembro. “Não quero a vacina para viajar, quero a vacina para não morrer”, diz o advogado Nilton Silva, de 46 anos.
Ele, que perdeu o pai para a covid-19, foi atrás da xepa e passava duas horas do dia ligando de posto em posto para saber das sobras da vacina. A emoção de receber o e-mail com uma data para se vacinar, conta, foi maior do que quando recebeu a notícia de que passou na prova da Ordem dos Advogados (OAB). Na semana prevista para a imunização, as lágrimas deram lugar à insônia.
“Estou literalmente sem dormir por causa de uma vacina”, disse ao Estadão na véspera de conseguir, finalmente, se vacinar em Campinas, interior paulista. Jozienne Moura, de 22 anos, continua à espera. Quando a cidade de São Paulo abriu o cadastro da xepa para os jovens, ela não pensou duas vezes. O tamanho do bloco de notas da enfermeira com os nomes dos interessados assustou, mas a jovem não perde a esperança. “Quero voltar a viver, buscar emprego”, diz ela, que se fechou em casa desde março de 2020 para se proteger e proteger a mãe.
Todos os dias, no fim da tarde, a ansiedade aumenta. É que a enfermeira do posto de saúde avisou: se sobrar vacina, vão ligar para Jozienne entre as 18 horas e as 18h30. Desde então, a jovem não larga o celular, atende qualquer chamada de pronto. “E se vejo uma ligação perdida, retorno. Fico desesperada.” Com a chance de conseguir a xepa no fim da tarde, ela antecipou até a hora do banho, para não correr o risco de perder a chamada, e para ficar pronta caso seja convocada.
“Não está tão distante, mas parece que está”, reclama a servidora pública Amanda Guiomarino, de 32 anos. Em Belém, onde mora, a fila andou bastante há duas semanas. “Agora, estão chamando a conta-gotas e isso tem um efeito que… meu Deus”, diz, sem nem conseguir completar a frase. “Sinto que mexe com a ansiedade. De vez em quando me vejo rangendo os dentes e querendo comer muito doce.”
Amanda, que se diz “quase monotemática” de tanta ansiedade, ativou as notificações da prefeitura para saber – em primeira mão – das notícias sobre o calendário da vacina na cidade. A cada push no celular, uma emoção. E, se as informações são sobre qualquer outra coisa que não seja o avanço das faixas etárias, vem a frustração. “Que tempos são esses em que temos de nos preocupar com a vacina?”
As notícias sobre a chegada de aviões com mais doses ou material para produzir os imunizantes também são acompanhadas, na lupa. Sempre que vem um carregamento novo, Amanda faz as contas se o número de doses destinadas para o seu Estado são proporcionais ao tamanho da população. Amigas em um grupo de WhatsApp compartilham calendários e tentam adivinhar quando, finalmente, chegará a vez de Amanda.
No caso da escritora Ana Paula Martins, de 25 anos, a revolta tomou conta quando o governo de Minas excluiu as lactantes do grupo prioritário, segundo conta. Ela já estava preparada para tomar sua primeira dose e teve de esperar mais. “Foi frustrante. Tive uma alegria repentina e de repente veio um banho de água fria.”
A demora da vacina entrou até nas sessões de terapia, onde também trata o “luto com muita raiva” pela morte do irmão, de 30 anos, em decorrência da covid. A revelação sobre e-mails com ofertas da Pfizer, não respondidos pela gestão Jair Bolsonaro, vieram pouco após a morte, o que fez crescer a revolta. Hoje, Ana Paula se sente ansiosa quando põe os pés para fora de casa e tem medo de adoecer e não conseguir cuidar do filho, de 1 ano e 9 meses.
Ver o luto de amigos próximos e não poder ajudar também tira o sono de Hugo Ferreira, de 27 anos. Com frequência, ela vai até o posto de saúde perto de onde mora, em São Paulo, para se atualizar sobre os carregamentos novos de vacina e, assim como Jozienne, aguarda uma ligação da xepa, sem desgrudar do celular. Ferreira se inscreveu para receber as sobras da vacina logo no primeiro dia.
“Uma vez no mês me dá uma crise, tento me manter bem e tenho o apoio de estar com minha irmã”, diz Hugo, que trabalha de casa como social media. À espera das doses, os jovens dizem sonhar, literalmente, que estão se vacinando. Às vezes, o sonho vira pesadelo, com cenas de doses insuficientes ou erro de aplicação – nada que não tenha, afinal, um pé na realidade. “A gente está vivendo em função disso”, diz Jozienne. “Os passos só podem ser dados a partir da vacina.”
Criar rotina ajuda na espera, diz especialista
A espera pela data da vacina e todo o sofrimento provocado pela pandemia podem agravar quadros ansiosos em pessoas que já têm transtornos e desencader crises de ansiedade em quem não tinha histórico até então, segundo especialistas. Nos consultórios e atendimentos psicológios on-line, a angústia pela primeira dose virou um assunto.
“Os jovens estão cansados, em exaustão”, diz Vanessa Gebrim, psicóloga clínica, especialista pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É comum, diz ela, que em momentos como esse as pessoas tenham queda de produtividade no trabalho, dificuldade de concentração e insônia – e devem evitar autocobranças excessivas.
“As pessoas estão com muita dificuldade de suportar o incerto”, diz Leila Tardivo, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Ela coordena um grupo de terapeutas voluntários que faz atendimento psicológico online a cerca de 1,5 mil pessoas. “A quantidade de pessoas enlutadas, ansiosas e fóbicas que estamos recebendo é enorme.” É comum, segundo ela, que os não vacinados façam comparações com os cenários mais promissores de outros países. Também encaram a dose como uma “solução” para todo o sofrimento causado pela pandemia.
Atividades como meditação, a prática de exercícios físicos e até encontros virtuais com amigos ajudam a aplacar a ansiedade. “Ter uma rotina é fundamental”, diz Vanessa. Deixar de acompanhar a todo momento informações sobre a fila da vacinação ajuda a tirar o foco do problema.
“É importante focar a atenção em situações criativas, projetos de vida e, ao mesmo tempo, se dedicar a coisas que se pode fazer em casa, como leituras, gastronomia, artesanato”, diz Leila. Se não é possível controlar os sintomas sozinho ou se as crises são graves e frequentes, uma dica é buscar ajuda profissional. Interessados em atendimento psicológico gratuito podem entrar em contato com o grupo coordenado por Leila, o Apoiar, pelo e-mail apoiar@usp.br.
Estadão Conteúdo