Maria José Rocha Lima
Em um encontro eventual com Maria Elena Rodrigues da Silva, presidente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise, que raramente discute política, ela comentou sobre esse fenômeno midiático muito violento, que faz dos culpados vítimas e das vítimas os culpados. Alguns dias depois deparei – me com a obra de Dinesh Joseph D’Souza(1961-), indiano e norte-americano, comentarista político conservador, escritor, cineasta e autor de vários livros incluídos na lista dos mais vendidos segundo o The New York Times, entre esses The Big Lie.
O autor, que não é psicanalista, inicia o seu livro The Big Lie fazendo incursões no campo da psicanálise muito instigantes, diz ele: “Alguns dos casos mais interessantes de Sigmund Freud envolveram pessoas que faziam coisas ruins, más ou destrutivas e depois jogavam a culpa nos outros”.
D’Souza trata o fenômeno como transferência – o deslocamento do sentido atribuído a pessoas do passado para pessoas do presente. A transferência cria a possibilidade de o paciente representar para o analista a sua história, não apenas relatando o que viveu, mas revivendo, outra vez, os afetos sentidos em um momento anterior, como uma forma de atualizar os impulsos eróticos ocultos e desejos indignos.
Sigmund Freud afirmava “que aquele que tem desejos que não ousa confessar a si mesmo, atribui-os ao próximo. Chama-se a isto projetar seus motivos sobre os outros”, como salientou Divaldo Franco[2], que concluiu: “Ele luta, portanto, contra o “diabo”, inclusive em sua própria carne, mas sai-se dos apuros de maneira que outros sofram em seu lugar”.
É no setting psicanalítico onde a comunicação entre analista e analisando pode ocorrer, e esse fenômeno foi denominado de transferência por Freud.
O processo ganha papel preponderante na análise. Em 1912, na obra A dinâmica da transferência, Freud afirma que pode haver comunicação entre o inconsciente de pessoas diferentes sem que haja a passagem pelo sistema consciente, e essa possibilidade de comunicação influencia o processo analítico, já que a análise é fundada na comunicação entre paciente e analista.
Para Ferenczi, do círculo de psicanalistas de Freud, deve ocorrer no setting terapêutico a comunicação entre inconscientes. Ele fala da “importância da sinceridade do analista e de sua análise pessoal, uma vez que o paciente é capaz de perceber os mais variados afetos do analista, mesmo os inconscientes, além de seus pensamentos e emoções”.
Os psicanalistas muitas vezes atendem pacientes que podem apresentar “comportamentos egoístas e viciosos, que podem atribuir as suas próprias características ao psicanalista”. Não são raros os casos, nos quais, “no decorrer da terapia, pacientes que, havendo apresentado hostilidade mórbida contra os próprios pais ou irmãos, apresentam hostilidade mórbida contra o próprio terapeuta” (D’Souza, 1997).
A comunicação inconsciente interpsíquica (paciente/analista), segundo o modelo Bluetooth na psicanálise, foi estudado por Pontes & Torrano (2010)[3], no qual os autores compararam a comunicação inconsciente com o modelo Bluetooth, “onde, para que ocorra a comunicação sem fio, é preciso que os dispositivos sejam compatíveis, permitindo que um dispositivo detecte o outro, dentro de um limite de proximidade”.
Para D’ Souza(1997), “a transferência, cuja injusta tarefa é a de culpar e responsabilizar, é, obviamente, uma forma de mentira. Um caso especial de transferência consiste em “culpar a vítima”, Quem de nós nunca viu feminicidas justificarem os assassinatos de mulheres com a frase modelar da ignomínia: “Foi ela que me provocou”. E o autor, aqui e ali, comenta: “Pensar assim possibilita o agressor a considerar-se um anjo da vingança, um instrumento da justiça”.
Para D’ Souza(1997), “o processo de culpabilizar a vítima é, sim, uma mentira, mas vem a ser uma mentira de categoria especial. Normalmente, a mentira é uma distorção da verdade. Isso se aplica à transferência no sentido geral do termo: as qualidades do paciente são transferidas ao terapeuta. Mas quando o perpetrador culpa a vítima, ele faz mais do que culpar uma parte inocente: ele culpa precisamente a parte que ele mesmo está prejudicando diretamente”. E o autor conclui que “culpabilizar a vítima envolve trocar a posição do criminoso pela da vítima: o bandido transforma-se no mocinho e o mocinho torna-se o bandido. Isso é mais do que uma distorção da verdade; é uma inversão dela. É uma grande, uma grande mentira”.
*Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 a 1999. Presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. Psicanalista e dirigente da ABEPP. Membro do Clube Soroptimista Internacional Brasília Sudoeste.
* Divaldo Franco professor, escritor, orador e filantropo brasileiro. Um dos maiores divulgadores da Doutrina Espírita no Brasil.
* PONTES, A. R. N.; TORRANO, L. M. A comunicação inconsciente interpsíquica (paciente/analista) segundo o modelo Bluetooth na psicanálise. Revista de Psicanálise da Sociedade de Psicanálise de Ribeirão Preto, Rib