
Miguel Lucena
Há versos que atravessam o tempo como pequenos punhais de lucidez. Belchior, com sua precisão de ourives e sua coragem de olhar para dentro, escreveu um dos mais contundentes: “Como é perversa a juventude do meu coração / Que só entende o que é cruel e o que é paixão.” Ali, o compositor não fala de idade, mas de uma inquietação que persiste apesar dos anos — essa juventude íntima que continua a queimar, a exigir intensidade, a rejeitar o descanso emocional.
A juventude do coração é perversa porque não aceita a moderação. Ela busca sempre o extremo: de um lado, a crueldade que fere; de outro, a paixão que incendeia. Entre esses polos, não há repouso. O eu lírico, prisioneiro de si mesmo, reconhece que sua sensibilidade o empurra para abismos e êxtases. É uma juventude que não amadurece, que se recusa a entender o amor como construção e não apenas como explosão.
Belchior, que sempre escreveu como quem confessa e confronta, escancara uma ferida comum: a dificuldade humana de viver o afeto sem dramatização. Somos herdeiros de um romantismo internalizado, que transformou o amor em batalha e espetáculo, e que nos ensinou a relacionar intensidade com verdade. Por isso a juventude do coração — a de todos nós — permanece encantada pelos excessos, incapaz de aprender a serenidade.
Ao reconhecer essa perversidade, Belchior não se condena: se desnuda. E, ao fazê-lo, revela a tragédia cotidiana de quem vive à flor da pele. No fundo, seus versos falam menos de juventude e mais de uma inquietude existencial que teima em não envelhecer.
Essa confissão poética nos lembra que, embora o tempo passe, há emoções que nunca aceitam calendário. A juventude que habita o coração pode ser uma bênção criadora — mas também uma tempestade permanente. Saber disso não a domestica, mas torna seu furor um pouco mais compreensível. E talvez seja essa compreensão, e não a calmaria, o máximo de maturidade que podemos alcançar.

