
Miguel Lucena
Fiquei intrigado — para não dizer perplexo — com a preocupação dos dirigentes do Zoológico de João Pessoa com o estresse psicológico da leoa que devorou Vaqueirinho. É claro que o bem-estar animal é importante, todos concordamos. Mas, convenhamos, há situações em que a realidade se dobra sobre si mesma e nos deixa sem legenda.
Vaqueirinho, esse menino-homem que perseguia um sonho improvável, viveu oito anos sob os olhos atentos do Conselho Tutelar. Sonhava ir para a África “cuidar de leões”, talvez movido por uma fantasia infantil que nunca encontrou solo firme para amadurecer. Tentou embarcar escondido no trem de pouso de um avião, caminhou sozinho em uma BR aos dez anos, colecionou episódios de fuga e esperança, como quem insiste em correr atrás do sol sabendo que vai se queimar.
Até que, no zoológico, encontrou justamente aquilo que buscava: a leoa. Mas o encontro não foi o abraço místico da fábula africana. Foi o choque brutal entre o sonho e o instinto, entre a ternura imaginada e a natureza que não se explica nem pede desculpas.
E então, depois da tragédia, vieram as notas oficiais. “A leoa está bem e tranquila”, divulgaram. E acrescentaram que ela ficará sob observação porque “passou por grande estresse”. É possível que tenha passado mesmo. No mundo dos humanos, até os animais precisam de laudo psicológico, acompanhamento técnico e acolhimento emocional.
Enquanto isso, ninguém fala do estresse de Vaqueirinho, que carregou a vida inteira uma África particular na cabeça, povoada de leões e sonhos que nunca se realizaram. Ele foi devorado muito antes de entrar na jaula — devorado pela falta de oportunidades, pela negligência social, pela incapacidade de tratarmos de perto quem vive à margem.
A leoa seguirá observada, alimentada, protegida. Já Vaqueirinho repousa sem laudos, exames, protocolos. Seu caso será arquivado como “fatalidade”, quando, na verdade, foi só o capítulo final de uma história que começou com um menino caminhando sozinho na beira da estrada.
A leoa sofreu estresse. Nós também deveríamos sofrer — estresse moral, ao menos — por continuarmos tratando como exceção aquilo que, lamentavelmente, virou regra: não cuidamos dos nossos Vaqueirinhos. E depois nos surpreendemos com o final.


