A língua portuguesa formou-se como língua específica, na Europa, pela diferenciação que o latim sofreu na Península Ibérica durante o processo de contatos entre povos e línguas que se deram a partir da chegada dos romanos no século II a.C., por ocasião da segunda Guerra Púnica, no ano de 218 a. C (1). Na Península Ibérica o latim entrou em contato com línguas já ali existentes. Depois houve o contato do latim já transformado com as línguas germânicas, no período de presença desses povos na península (de 409 a 711 d.C.). Em seguida, com a invasão mulçumana (árabes e berberes), esse latim modificado e já em processo de divisão entra em contato com o árabe. Na primeira fase do processo de reconquista da Península Ibérica pelos cristãos, que tinham resistido no Norte, os romances (latim modificado por anos de contato com outros povos e línguas) tomaram uma feição específica no oeste da península, formando o galego-português e em seguida o português. Formou-se paralelamente o Condado Portugalense e, a partir dele, um novo país, Portugal. Toma-se como data de independência do condado do reino de Castela e Leão a batalha de São Mamede em 1128.
Essa nova língua, depois de um longo período de mudanças correspondente a todo o final da chamada Idade Média, é transportada para o Brasil, assim como para outros continentes, no momento das grandes navegações do final do século XV e do século XVI.
PORTUGUÊS: LÍNGUA OFICIAL E NACIONAL DO BRASIL
Com o início efetivo da colonização portuguesa em 1532, a língua portuguesa começa a ser transportada para o Brasil. Aqui ela entra em relação, num novo espaço-tempo, com povos que falavam outras línguas, as línguas indígenas, e acaba por tornar-se, nessa nova geografia, a língua oficial e nacional do Brasil. Podemos estabelecer para esta história quatro períodos distintos, se consideramos como elemento definidor o modo de relação da língua portuguesa com as demais línguas praticadas no Brasil (2) deste 1532 (3).
O primeiro momento começa com o início da colonização e vai até a saída dos holandeses do Brasil, em 1654. Nesse período o português convive, no território que é hoje o Brasil, com as línguas indígenas, com as línguas gerais e com o holandês, esta última a língua de um país europeu e também colonizador. As línguas gerais eram línguas tupi faladas pela maioria da população. Eram as línguas do contato entre índios de diferentes tribos, entre índios e portugueses e seus descendentes, assim como entre portugueses e seus descendentes. A língua geral era assim uma língua franca. O português, como língua oficial do Estado português, era a língua empregada em documentos oficiais e praticada por aqueles que estavam ligados à administração da colônia.
O segundo período começa com a saída dos holandeses do Brasil e vai até a chegada da família real portuguesa no Rio de Janeiro, em 1808. A saída dos holandeses muda o quadro de relações entre línguas no Brasil na medida em que o português não tem mais a concorrência de uma outra língua de Estado (o holandês). A relação passa a ser, fundamentalmente, entre o português, as línguas indígenas, especialmente as línguas gerais, e as línguas africanas dos escravos. Esse período caracteriza-se por ser aquele em que Portugal, dando andamento mais específico ao processo de colonização, toma também medidas diretas e indiretas que levam ao declínio das línguas gerais. A população do Brasil, que era predominantemente de índios, passa a receber um número crescente de portugueses assim como de negros que vinham para o Brasil como escravos. Para se ter uma ideia, no século XVI foram trazidos para o Brasil 100 mil negros. Este número salta para 600 mil no século XVII e 1,3 milhão no século XVIII. O espaço de línguas do Brasil passa a incluir também a relação das línguas africanas dos escravos e o português. Com o maior número de portugueses cresce também o número de falantes específicos do português. E isto tem uma outra característica: os portugueses que vêm para o Brasil não vêm da mesma região de Portugal. Desse modo, passam a conviver no Brasil, num mesmo espaço e tempo, divisões do português que, em Portugal, conviviam como dialetos de regiões diferentes.
Nesse período, ainda, há dois fatos de extrema importância. O primeiro deles é a ação direta do império português que age para impedir o uso da língua geral nas escolas. Esta ação é uma atitude direta de política de línguas de Portugal para tornar o português a língua mais falada do Brasil. Uma dessas ações mais conhecidas é o estabelecimento do Diretório dos Índios (1757), por iniciativa do Marquês de Pombal, ministro de Dom José I, que proibia o uso da língua geral na colônia. Assim, os índios não poderiam mais usar nenhuma outra língua que não a portuguesa. Essa ação, junto com o aumento da população portuguesa no Brasil, terá um efeito específico que ajuda a levar ao declínio definitivo da língua geral no país (4).
O português que já era a língua oficial do Estado passa a ser a língua mais falada no Brasil.
O terceiro momento do português no Brasil começa com a vinda da família real em 1808, como consequência da guerra com a França, e termina com a independência. Poderíamos utilizar, como data final desse período, 1826, pois é nesse ano que se formula a questão da língua nacional do Brasil no parlamento brasileiro.
A vinda da família real terá dois efeitos importantes. O primeiro deles é um aumento, em curto espaço de tempo, da população portuguesa no Brasil. Chegaram ao Rio de Janeiro em torno de 15 mil portugueses. O segundo é a transformação do Rio de Janeiro em capital do Império que traz novos aspectos para as relações sociais em território brasileiro, e isto inclui também a questão da língua. Logo de início Dom João VI criou a imprensa no Brasil e fundou a Biblioteca Nacional, mudando o quadro da vida cultural brasileira, e dando à língua portuguesa aqui um instrumento direto de circulação, a imprensa. Esses fatos produzem um certo efeito de unidade do português para o Brasil, enquanto língua do rei e da corte.
O quarto período começa em 1826. Nesse ano o deputado José Clemente propôs que os diplomas dos médicos no Brasil fossem redigidos em “linguagem brasileira”. Em 1827 houve um grande número de discussões sobre o fato de que os professores deveriam ensinar a ler e a escrever utilizando a gramática da língua nacional. Ou seja, a questão da língua portuguesa no Brasil, que já era língua oficial do Estado, se põe agora como uma forma de transformá-la de língua do colonizador em língua da nação brasileira. Temos aí constituída a sobreposição da língua oficial e da língua nacional.
Essas questões tomam espaços importantes tanto na literatura quanto na constituição de um conhecimento brasileiro sobre o português no Brasil. É dessa época a literatura de José de Alencar (5) que tem debates importantes com escritores portugueses que não aceitavam o modo como ele escrevia. É também dessa época o processo pelo qual os brasileiros tiveram legitimadas suas gramáticas para o ensino de português e seus dicionários (6). Dessa maneira cria-se historicamente no Brasil o sentido de apropriação do português enquanto uma língua que tem as marcas de sua relação com as condições brasileiras. Pela história de suas relações com outro espaço de línguas, o português, ao funcionar em novas condições e nelas se relacionar com línguas indígenas, língua geral, línguas africanas, se modificou de modo específico e os gramáticos e lexicógrafos brasileiros do final do século XIX, junto com nossos escritores, trabalham o “sentimento” do português como língua nacional do Brasil (7).
Esse quarto período, no qual o português já se definira como língua oficial e nacional do Brasil, trará uma outra novidade, o início das relações entre o português e as línguas de imigrantes. Começa em 1818/1820 o processo de imigração para o Brasil, com a vinda de alemães para Ilhéus (1818) e Nova Friburgo (1820). Esse processo de imigração terá um momento muito particular na passagem do século XIX para o XX (1880-1930). A partir desse momento entraram no Brasil, por exemplo, falantes de alemão, italiano, japonês, coreano, holandês, inglês. Deste modo o espaço de enunciação do Brasil passa a ter, em torno da língua oficial e nacional, duas relações significativamente distintas: de um lado as línguas indígenas (e num certo sentido as línguas africanas dos descendentes de escravos) e de outro as línguas de imigração.
Essa diferença não é simplesmente uma diferença empírica do tipo: as línguas indígenas e seus falantes já existiam no Brasil quando da chegada dos portugueses e as línguas de imigração vieram depois. A diferença é de modo de relação. As línguas indígenas e africanas entram na relação como línguas de povos considerados primitivos a serem ou civilizados (no caso dos índios) ou escravizados (no caso dos negros). Ou seja, não há lugar para essas línguas e seus falantes. No caso da imigração, as línguas e seus falantes entram no Brasil por uma ação de governo que procurava cooperação para desenvolver o país. E as línguas que vêm com os imigrantes eram, de algum modo, línguas nacionais ou oficiais nos países de origem dos imigrantes. Essas línguas são línguas legitimadas no conjunto global das relações de línguas, diferentemente das línguas indígenas e africanas. As línguas dos imigrantes eram línguas de povos considerados civilizados, em oposição às línguas indígenas e africanas.
Enquanto língua oficial e língua nacional do Brasil, o português é uma língua de uso em todo o território brasileiro, sendo também a língua dos atos oficiais, da lei, a língua da escola e que convive, na extensão do território brasileiro, com um grande conjunto de outras línguas (de um lado as línguas indígenas e de outro as línguas de imigrantes). Por outro lado, enquanto língua nacional, o português é significado como a língua materna de todos os brasileiros, mesmo que um bom número de brasileiros tenham como língua materna outras línguas, ou indígenas ou de imigrantes.
CARACTERÍSTICAS DO PORTUGUÊS DO BRASIL
A vinda da língua portuguesa para o Brasil não se deu, como vimos, em um só momento. Ela se deu durante todo o período de colonização entrando em relação constante com outras línguas. Por outro lado, o povoamento do Brasil se fez com a vinda de portugueses de todas regiões de Portugal. Desse modo, sua vinda para o Brasil traz para esse novo espaço as diversas variedades do português de Portugal. Estas variedades se instalarão em lugares diferentes do Brasil, mas, em muitos casos, elas convivem num mesmo espaço, como no Rio de Janeiro, por exemplo.
O português do Brasil vai, com o tempo, apresentar um conjunto de características não encontráveis, em geral, no português de Portugal, da mesma maneira que o português, em diversas outras regiões do mundo, terá características também específicas, em virtude das condições novas em que a língua passou a funcionar. Há que se considerar que, se levamos em conta a língua escrita, vamos encontrar uma maior proximidade entre o português do Brasil, assim como o de outras regiões do mundo, com o português de Portugal, já que a língua escrita está mais sujeita à normatização da língua efetivada através das gramáticas normativas, dicionários e outros instrumentos reguladores da língua. Na língua oral o processo de incorporação de características específicas se faz de modo mais rápido.
Meu objetivo não é, neste texto, discutir essas diferenças internas, mas mostrar como o português do Brasil apresenta um conjunto importante de características específicas. A seguir, vou apresentar um conjunto destas características encontráveis no português do Brasil. Vou me limitar a apresentar aqui o que chamarei de diferenças gramaticais e lexicais (de vocabulário). Evidentemente que a caracterização do português do Brasil envolve a consideração efetiva das diversas divisões a que a língua portuguesa está sujeita no Brasil, tanto regionais quanto sociais e históricas (tal como mostram o artigo “Variedades do português no mundo e no Brasil” de Emílio Pagotto, para a questão das diferenças na língua, e o artigo “Língua brasileira” de Eni Orlandi, sobre os aspectos discursivos envolvidos nessa questão).
Nas características gramaticais podemos distinguir dois conjuntos de características: o das características fonético-fonológicas, o das características morfológicas e sintáticas.
CARACTERÍSTICAS FONÉTICO-FONOLÓGICAS
Neste nível, a grande especificidade do português do Brasil, se comparado ao de Portugal, considerando o que Pagotto nos mostra no seu texto, é seu sistema de vogais. Para observar esse aspecto é necessário distinguir, tal como nos mostrou Câmara (1953, 1970) a vogal na posição tônica (da sílaba com acento de intensidade), a vogal na posição átona final (como o /a/ de fuga), e a vogal na posição pretônica (como o /a/ de até).
a) Na posição tônica, o português do Brasil apresenta 7 vogais: /a/ (entrada); /é/ (deve), /ê/ (medo), /i/ (viga); /ó/ (avó), /ô/ (avô), /u/ (urubu). Note-se que a vogal /a/ é pronunciada, com timbre aberto, com a língua em repouso embaixo, na boca; que as vogais /é/, /ê/, /i/ são anteriores, elas são pronunciadas com um movimento da língua para frente; e as vogais /ó/, /ô/, /u/ são posteriores, pronunciadas com um movimento da língua para trás. Em Portugal (8), além dessas vogais, há também um /ä/, que não é aberto como o /a/. Este /ä/ é pronunciado com uma certa elevação da língua, diferentemente do /a/ aberto pronunciado com língua em repouso, embaixo na boca. Assim é que, na língua falada, se distingue /falämos/, presente do indicativo, de /falamos/ passado perfeito (9).
b) Na posição átona final, no português do Brasil, de modo geral, há três vogais /a/ (casa), /i/ (barbante, pronunciado [barbãti]), /u/ (menino, pronunciado [meninu] e mesmo [mininu]). Em Portugal são também três vogais, /ä/, /ë/ e /u/. Assim diferentemente do Brasil, /ä/ é pronunciado com a língua mais alta, com timbre mais fechado, /ë/ é pronunciado fechado, mas numa posição mais posterior do que o /ê/ do Brasil. O /u/ tem as mesmas características fonéticas do /u/ brasileiro.
c) Na posição pretônica, há no português do Brasil, em geral, 5 vogais, /a/, /ê/, /i/, /ô/, /u/, enquanto que em Portugal mantêm-se as 8 vogais da posição tônica, com a diferença de que o /ê/ passa a /ë/, numa pronúncia mais central: /a/, /ä/; /é/, /ë/, /i/; /ó/, /ô/, e /u/.
CARACTERÍSTICAS MORFOLÓGICAS E SINTÁTICAS
No nível sintático, uma primeira característica geral do português do Brasil é que ele, no que toca ao funcionamento dos pronomes átonos (me, te, se, lhe, o, a, etc.) tem uma colocação mais proclítica, não sendo encontrável em Portugal, por exemplo, João se levantou, tão comum no Brasil. Isto faz com que toda a colocação de pronomes átonos no Brasil seja bastante diferente da de Portugal. Este tipo de diferença tem muito a ver com o fato de que as diferenças fonético-fonológicas, apontadas antes, levam a um outro ritmo da frase, assim como uma diferença de tonicidade nesses pronomes. Isto resulta em um outro modo de colocá-los na frase, tal como já nos mostrou Ali (1908).
No Brasil é também comum construções como está escrevendo, com estar + gerúndio, não comum em Portugal, onde se encontram expressões como está a escrever, com estar a + infinitivo. É também comum no Brasil expressões com a preposição em que em Portugal são com a preposição a. Tem-se, comumente no Brasil, está na janela, chegou no Brasil, quando em Portugal se tem está à janela, chegou ao Brasil.
Segundo Galves (2002), a principal característica sintática do português do Brasil, é que ele é uma língua de tópico, diferentemente do português de Portugal e das demais línguas latinas (10). Esta posição se desenvolve a partir de uma formulação de Pontes (1987) que mostrou como muitas construções do português no Brasil precisam ser entendidas como construções com tópico. Para apresentar a formulação de Galves usaremos as abreviações SN e V que significam sintagma nominal e verbo. Um sintagma é um elemento linguístico de nível inferior ao da frase e que possui na sua forma elementos linguísticos de nível sintático ainda mais baixo, em geral ele combina pelo menos dois elementos. No caso do SN (sintagma nominal), o sintagma é constituído pelo menos por um nome e tem geralmente pelo menos um determinante para este nome, como em o menino, onde menino é o nome e o é o determinante e o menino é o SN. A noção de verbo, para o que aqui nos interessa, é a que usualmente conhecemos. Dito isto, para Galves, a frase do português do Brasil tem como estrutura SN [SN V (SN), diferentemente do português de Portugal e as línguas latinas em geral, que têm como estrutura da frase SN [V (SN). O colchete separa o que se apresenta como o que se diz do primeiro SN.
Para entender essa diferença, consideremos duas frases: João fez o trabalho e João, ele fez o trabalho. Na primeira, com a palavra João refere-se a alguém (João) e predica-se dele algo, fez o trabalho. Neste caso, João que faz a referência a uma pessoa é também o sujeito da frase. Na segunda frase, João refere alguém, depois tem-se como sujeito o pronome ele, que retoma João (anaforiza João) do qual se predica fez o trabalho. Deste modo a sequência sujeito+predicado (ele fez o trabalho) aparece no conjunto como dizendo algo de João, referido pela palavra João. Nesta segunda frase, João é o tópico, aquilo sobre o que se vai dizer algo. Diferentemente, na primeira frase, aquilo sobre o que se vai dizer algo é diretamente o sujeito da frase. A tese de Galves é que a estrutura sintática do português é do tipo da segunda frase que aqui usamos como exemplo: João, ele fez o trabalho.
Segundo a autora é esta característica que explica um conjunto importante de aspectos próprios do português brasileiro, tal como os que seguem.
a) uso do pronome ele como objeto
Em Portugal esta é uma construção inexistente. É comum no Brasil frases como: Encontrei ele ontem; esse rapaz, eu conheci ele no trem; esse rapaz aí que eu encontrei ele no trem. Nestas frases ele é complemento da frase, diferentemente de Portugal onde está construção, normalmente, não aparece.
b) ele como sujeito
O funcionamento do ele como sujeito é diferente em Portugal e no Brasil. No Brasil temos, por exemplo, eu tinha uma empregada que ela respondia ao telefone e dizia…, enquanto em Portugal o que se encontra é somente algo como eu tinha uma empregada que respondia ao telefone e dizia… Para Galves esta diferença diz respeito a que no português do Brasil o ele aparece preferencialmente ao sujeito nulo (que na escola conhecemos como sujeito oculto), diferentemente do português de Portugal, onde aparece preferencialmente o sujeito nulo e em que o ele aparece quando é necessário marcar a concordância, já que a terminação verbal é a mesma entre a primeira e a terceira pessoa, ou para estabelecer um contraste.
c)ele como objeto de preposição
No Brasil é comum frases como o André, que eu gosto dele, é mais bonito, enquanto em Portugal só se encontram frases como o André de quem eu gosto. Este aspecto está diretamente relacionado com o funcionamento das relativas no português brasileiro. Tal funcionamento no Brasil se caracteriza por ter uma predominância de relativas com este pronome que retoma um nome da principal (chamado pronome lembrete, o ele (dele) do primeiro exemplo acima), e é predominante quando a retomada está em sintagma preposicional, conforme mostrou Tarallo (1996). Este funcionamento predominante no Brasil é oposto ao predominante em Portugal, onde o mais comum é o de construções como O André, de quem eu gosto, é mais bonito.
Este aspecto está ligado ao crescimento no português do Brasil de um outro funcionamento da relativa que se chama de relativa cortadora, como em É uma pessoa que essas besteiras que a gente fica se preocupando, ela não fica esquentando a cabeça. Em Portugal a construção encontrável seria. É uma pessoa que não fica esquentando a cabeça com estas besteiras que nos preocupam. No português do Brasil hoje há a predominância das construções relativas com pronome lembrete e relativas cortadoras. As análises de Tarallo (idem) mostram que essa diferença entre o funcionamento do português do Brasil e de Portugal já está instalada claramente em 1880 e se aprofunda a partir de então. Assim hoje é predominante o que no início do século XIX (1825, por exemplo) era o menos comum.
Ao lado desses aspectos, Galves também considera uma outra característica muito interessante do português do Brasil: O funcionamento do pronome se. Para a autora, no português brasileiro o se pode não aparecer em frases com tempo (o verbo nas formas finitas), diferentemente do português europeu. No Brasil há frases como Nos nossos dias, não usa mais saia; Esta camisa lava facilmente; Joana não matriculou ainda; Maria fez a lista dos convidados mas esqueceu de incluir ela; É impossível se achar lugar aqui, enquanto em Portugal só há frases como Não se usa mais saia; Esta camisa lava-se facilmente; Joana não se matriculou ainda; Maria fez a lista dos convidados mas esqueceu de se incluir. Interessante para a linguista é que, em contrapartida, em frases com infinitivo, no Brasil, aparece consistentemente a forma se para indeterminar, em oposição a Portugal onde este se não aparece da mesma maneira. Tem-se no Brasil É impossível se achar lugar aqui, enquanto em Portugal haveria somente. É impossível achar lugar aqui.
O que é interessante nessa análise de Galves é que ela não só registra a existência de construções diferentes, que poderiam ser atribuídas a uma mera diferença de uso de uma ou outra pessoa, em uma ou outra situação, como mostra que essa diferença nas frases diz respeito a uma especificidade na estrutura mesma da sintaxe do português do Brasil, ter a estrutura SN [SN V (SN). Ser, portanto, uma língua de tópico. Ligada a essa diferença na estrutura sintática da frase, Galves nos mostra como ela está ligada a um aspecto semântico fundamental, o modo como o português do Brasil faz referência às coisas sobre às quais se fala. Observe que se tomamos a frase do português do Brasil Eu tinha uma empregada que ela respondia ao telefone e dizia… vemos que o ela retoma diretamente empregada, desfazendo o caráter anafórico do que (relativo), diferentemente de, por exemplo, Eu tinha uma empregada que atendia o telefone e dizia…, na qual o que mantém seu caráter anafórico. Em cada caso o modo de referir à empregada é um.
Ou seja, o fato de o português ter uma estrutura de tópico para suas frases diz respeito ao modo como no Brasil se faz referência às coisas, ou seja, diz respeito a como, num acontecimento enunciativo específico, refere-se a algo. Em outras palavras, esta característica de estrutura da frase está diretamente articulada a um modo de funcionamento semântico-enunciativo, outros diriam semântico-pragmático, do português no Brasil. Enfim, Galves nos mostra que o português do Brasil tem uma estrutura e funcionamento diversos do português de Portugal e das outras línguas latinas. E esta não deixa de ser uma questão a ser estudada no quadro do multilinguismo brasileiro.
CARACTERÍSTICAS DO LÉXICO Desde o início do século XIX, com o Marquês de Pedra Branca, se usa o estudo do léxico para mostrar diferenças entre o português do Brasil e o português de Portugal (11). Essas diferenças dizem respeito ao fato de que, no Brasil, muitas palavras tomaram outros sentidos ou foram incorporadas ao português a partir das línguas indígenas e africanas, com as quais o português esteve e está em relação. Podemos observar palavras que têm um sentido em Portugal e outro no Brasil, a partir de exemplos retirados de Teyssier (1997)
PORTUGAL BRASIL
comboio trem
autocarro ônibus
eléctrico bonde
hospedeira aeromoça
caneta de tinta permanente caneta-tinteiro
corta-papeles pátula
fato terno
metro metrô
Por outro lado, há no Brasil um conjunto importante de palavras de origem indígena, comumente o tupi, assim como de origem africana, os exemplos são também tirados de Teyssier (idem).
No Brasil, um fato é o que para nós é um facto, e um fato é no Brasil um terno, que para nós é uma pessoa ternurenta. No Brasil o pequeno-almoço chama-se “café da manhã” e os comboios chamam-se “trens”.
Exemplos de palavras de origem indígena: capim, cupim, caatinga, curumim, guri, buriti, carnaúba, mandacaru, capivara, curió, sucuri, piranha, urubu, mingau, moqueca, abacaxi, caju, Tijuca, etc. São, em geral, palavras relativas à designação da flora, da fauna, de alimentos, assim como de lugares.
Exemplos de palavras de origem africana: caçula, cafuné, molambo, moleque; orixá, vatapá, abará, acarajé; banguê; senzala, mocambo, maxixe, samba. São, em geral, palavras que designam elementos do candomblé, da cozinha de influência africana, do universo das plantações de cana, do universo de vida dos escravos, e mesmo outros de aspecto mais geral. Grandes listas de palavras dessas línguas que se incorporaram ao português podem ser encontradas em diversos livros de linguística histórica do português como Silva Neto (1950), Bueno (1946, 1950) e Coutinho (1936).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Várias outras características podem ser atribuídas ao português do Brasil, mas a melhor forma de tratar disso é observar o modo como o português se divide em falares regionais específicos ou registros distintos de acordo com situações particulares do funcionamento da língua, como o formal ou o coloquial, o íntimo e o público, etc.
Por outro lado, fica claro que o estudo do português do Brasil indica para a necessidade de se aprofundarem pesquisas históricas que deem mais relevo à questão das relações do português num espaço multilíngue muito particular.
O português brasileiro precisa ser reconhecido como uma nova língua. E isso é uma decisão política. A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. É preciso dizer, com todas as palavras, em alto e bom som: o português brasileiro é uma língua e o português europeu é outra. Muito aparentadas, muito familiares, mas diferentes. Já existe outro sistema linguístico totalmente diferente do português lusitano no português falado hoje no Brasil.
Sabemos que 75% da população brasileira é analfabeta funcional. São 218 milhões de pessoas e, entre elas, estão nossos docentes de língua portuguesa. Não vamos nos iludir.
O Brasil não tem tradicionalmente uma política linguística. A difusão do português brasileiro no exterior ocorre quase por inércia, mais pela importância que o Brasil vem assumindo geograficamente, geopoliticamente e economicamente. Portugal, ao contrário, tem uma política linguística, tem o Instituto Camões, com mais de mil professores espalhados pelo mundo todo, enquanto o Brasil tem 40 leitorados. Cria-se aí, já, uma diferença.
Nós que tínhamos de ter uma política linguística mais agressiva, mas temos uma posição de colonizados, de que, se Portugal já está lá, não precisamos ir. Precisamos, sim. Nós somos 90% de quem fala português no mundo e somos a 7ª economia mundial. Portugal, ao contrário, está no fundo do poço, com essa crise horrível que acontece por lá. Nós que temos de investir e brigar pelo nosso espaço, porque as pessoas de fato querem aproveitar as oportunidades que nós oferecemos.
Não dá para impor uma língua de uma hora para outra a um povo. O padrão da língua no Brasil deve ser a língua falada pela maioria da população brasileira contemporânea, que é o português brasileiro.
A língua geral brasileira foi proibida no Brasil no século 18 pelo Marquês de Pombal, dirigente de Portugal durante o reinado de José I, e ficamos com um saldo de 300 anos sem educação. Se não tivesse acontecido isso, talvez hoje seríamos como os paraguaios, que falam espanhol e guarani — este também uma invenção dos padres jesuítas como uma língua geral, muito parecida com a língua geral brasileira, com base no tupi. Por uma política autoritária, repressora, foi proibido ensinar e falar qualquer coisa no Brasil que não fosse o português.
Uma pessoa que diz que não sabe português é porque acha que saber português é saber o que é uma oração subordinada substantiva objetiva direta completiva nominal reduzida. E isso, quase ninguém sabe. Nem mesmo os professores de português formados e na ativa já há bastante tempo. Então, temos aí um grande imbróglio para resolver, a formação docente.
Aí vêm uns idiotas que querem realmente reformular a língua, botar tudo com “x”, com dois “s”, com “z”, com uma série de questões que não têm nada a ver, sem nenhuma fundamentação teórica que as sustente. A implementação do dito Acordo é simplesmente uma bagunça, é o caos linguístico; é uma desgraça! É a bancarrota da Língua! E a consequência é o caos linguístico que se está verificando nas escolas, na comunicação social, falada/escrita/ouvida e lida.
Para que não ocorra um desacordo na nossa língua, quem sabe daqui a alguns anos apaguemos o “português” e fique só o “brasileiro”.
Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/artigos/rubricas/acordo/ha-quem-queira-ficar-com-a-nossa-lingua-e-quem-por-ca-aplauda/3876
Todos concordavam que seria melhor para a comunidade lusófona que houvesse o Acordo Ortográfico, pois o fato ensejaria uma busca oficialização da língua portuguesa em organismos internacionais, a partir da ONU. Ledo engano. O que tem ocorrido até aqui é um grande “desacordo”.
Já se passaram dez anos e ninguém aprendeu as regras. A imprensa adotou, mas ninguém consegue entender e a população não sabe usar. Queremos estudar formas de simplificar isso, ao invés de gastar tempo com algo que nunca se vai aprender.
Ainda tem todo esse gasto. É melhor pegar esse dinheiro e investir em escola, em merenda. Deixa os livros didáticos como estão. E não é só livro didático, isso vai mexer em toda a literatura. Tudo fica desatualizado e isso tem um custo caríssimo para o país: bilhões de reais. O governo precisa arcar com mais gastos para atualização de livros?
(*) é professor universitário, jornalista e escritor
NOTAS
1. Guerras Púnicas foram as três guerras entre Roma e Cartago (os fenícios) que se deram entre 246 e 146 a.C.
2. Esta relação é uma relação política e constitui espaços de enunciação (Guimarães 2002). Estes espaços se caracterizam por distribuírem as línguas para seus falantes. Nesta medida o falante é uma categoria social e política determinada por estes espaços de enunciação.
3. A história do português no Brasil tem sido objeto de bom número de trabalhos. Um texto de referência sobre esse aspecto tem sido Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil (Silva Neto, 1950).
4. Sobre esta questão ver Mariani (2001) e Mariani (2004).
5. José de Alencar (1829-1877) teve um debate particular com Pinheiro Chagas sobre aspectos de língua a propósito do livro Iracema (1865).
6. Sobre a autoria brasileira de gramática ver Orlandi (2000).
7. Uma discussão mais detalhada destes aspectos pode ser encontrada em Orlandi e Guimarães (1998), Guimarães (2004), Orlandi (2002) e Orlandi – (org. 2001).
8. Ver a este respeito Teyssier (1967, p. 68-77).
9. Interessante notar que esta distinção se dá, também, em algumas regiões do Brasil.
10. As línguas latinas (ou românicas) são as que têm como origem a língua latina: português, espanhol, catalão, francês, italiano, rético, sardo, romeno.
11. Este aspecto do texto do marquês pode ser encontrado em Pinto (1978). Sobre o léxico brasileiro ver Nunes e Petter (orgs. 2002).
BIBLIOGRAFIA CITADA
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Câmara Jr., J.M. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro, Simões. 1953.
Câmara Jr., J.M. Estrutura da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Vozes. 1970.
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