segunda-feira, 15/09/25
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A história do movimento antivacina no mundo, que repete mesmos argumentos há séculos

O movimento antivacina pode parecer um fenômeno novo, amplificado durante a pandemia de covid-19. Mas, na verdade, ele é tão antigo quanto a própria criação da primeira vacina, contra a varíola, no final do século 18.

Um infame desenho distribuído por grupos antivacina no início do século 19 mostra pessoas se transformando em vacas, depois de serem inoculadas contra a varíola – (crédito: Getty Images)

 

POR BBC

Desde o início da história humana, nossa espécie sofre o assédio de vírus terríveis e pragas mortais.

A varíola, por exemplo, é uma doença viral caracterizada pela erupção de pústulas dolorosas na pele por todo o corpo.

Ela foi uma das doenças mais letais da história. Estima-se que a varíola tenha sido responsável pela morte de 300 milhões de pessoas, somente no século 20.

A varíola matava cerca de um terço de todos os infectados. Um terço dos sobreviventes ficavam cegos e quase todos tinham cicatrizes para o resto da vida.

A riqueza não servia de escudo contra a doença, nem a localização geográfica. Suas vítimas incluíram o imperador José 1° da Áustria (1678-1711), o rei Luís 1° da Espanha (1707-1724), a rainha Maria 2ª da Inglaterra (1662-1694), o rei Luís 15 da França (1710-1774) e o czar Pedro 2°, da Rússia (1715-1730).

No século 19, a varíola matava mais de 400 mil pessoas por ano em todo o mundo.

O médico britânico Edward Jenner (1749-1823) esperava mudar esta história. Ele desenvolveu a primeira vacina contra a varíola em 1796.

Jenner observou que as ordenhadoras, curiosamente, eram imunes à varíola, provavelmente por terem sido infectadas pela varíola bovina, um vírus similar à varíola humana, mas muito menos perigoso.

Para testar a noção de que ele poderia conferir imunidade à varíola desta forma, Jenner retirou material do soro de varíola bovina de uma ordenhadora e o injetou no braço de uma criança de oito anos de idade — um experimento que seria inaceitável hoje em dia, segundo os padrões da ética médica moderna.

O menino ficou imune à infecção pela varíola. Jenner deu ao procedimento um nome derivado da palavra “vaca”, originária do latim. E foi assim que surgiu a primeira vacina do mundo.

“O resultado desta prática deve ser o extermínio da varíola, o flagelo mais temido da espécie humana”, escreveu Jenner, em 1801. E o tempo mostrou que ele tinha razão.

Em 1980, após décadas de campanhas de saúde pública que incluíram a vacinação generalizada das pessoas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a erradicação da varíola. Ela é, até hoje, a única doença infecciosa eliminada do planeta.

Inúmeras outras vacinas foram desenvolvidas contra diversas doenças. Elas incluíram da gripe às infecções por papilomavírus humano, causadoras de certos tipos de câncer, e contra o vírus Sars-COV-2, responsável pela covid-19.

Estima-se que 154 milhões de vidas humanas tenham sido salvas por vacinas nos últimos 50 anos, segundo um estudo recente sobre o tema.

Ainda assim, a oposição às vacinas (ou a hesitação em aceitá-las) é algo comum e cada vez mais forte em muitas partes do mundo. Ela chega a se infiltrar nos ramos mais altos de governo, responsáveis pela promoção da saúde pública.

No início de setembro, o Comitê de Finanças do Senado americano questionou o secretário de Saúde dos Estados Unidos, Robert F. Kennedy Jr., pelas suas políticas em relação à vacinação, causando debates inflamados.

No mesmo dia, o secretário de saúde pública da Flórida anunciou planos para pôr fim às exigências de vacinas naquele Estado americano.

No Brasil, durante a pandemia de covid-19, o então presidente Jair Bolsonaro(2019-2022) foi criticado por menosprezar as medidas recomendadas por especialistas para conter a disseminação do vírus e, posteriormente, desencorajar os brasileiros a se vacinarem.

Mas seria este um fenômeno recente ou a desconfiança nas vacinas existe desde o seu surgimento?

Por que elas enfrentam protestos de segmentos do público relativamente pequenos, mas atuantes? E como evoluíram esses argumentos?

Aqui está um resumo da longa e curiosa história dos movimentos antivacina.

Os primórdios

No início do século 19, diversos experimentos controlados, realizados por Jenner e outros médicos, mostraram rapidamente que a inoculação é extremamente eficaz e fornece imunidade contra a varíola para mais de 95% das pessoas vacinadas.

Autoridades de saúde pública de todo o mundo tomaram ações para implementar o procedimento. No Reino Unido, diversas leis de vacinação, aprovadas em 1840, 1853 e 1871, tornaram a imunização de crianças gratuita e, mais tarde, compulsória.

Mas surgiu quase instantaneamente outro desafio: uma série de organizações antivacinação, criadas em todo o país.

Elas produziam panfletos com títulos provocadores e góticos, típicos da era vitoriana. Alguns deles eram Vacinação: a Maldição e Os Horrores da Vacinação.

As organizações também publicavam livros e até publicações periódicas, como O Antivacinador (1869) e O Inquiridor da Vacinação (1879).

Quando pensamos no “movimento antivacina”, provavelmente nos lembramos dos protestos públicos, ações na Justiça e das enfáticas alegações sobre a vacina contra a covid-19.

Mas existe um longo histórico de protestos contra a vacinação, que inclui levantes antivacina na Inglaterra dos anos 1850, no Canadá da década de 1880 e nos Estados Unidos dos anos 1890.

Em Boston, nos Estados Unidos, a oposição contra a vacina gerou protestos generalizados em 1905 e uma ação na Suprema Corte americana, que viria a considerar constitucional a vacinação obrigatória.

No Brasil, um decreto de 1904, do então presidente Rodrigues Alves (1848-1919), determinou a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola em todo o território nacional. A decisão deflagrou a Revolta da Vacina, que paralisou o Rio de Janeiro, capital do país na época.

É interessante observar que a oposição à ideia da vacinação é anterior às próprias vacinas.

A variolação é um processo precursor da imunização moderna. Introduzida no Reino Unido e nos EUA nos anos 1720, ela usava material das vítimas de varíola para induzir reações menos graves e, consequentemente, a imunidade das pessoas.

O procedimento despertou imediatamente a ira dos críticos.

Em um sermão furioso em 1722, intitulado A Prática Perigosa e Pecaminosa da Inoculação, o reverendo inglês Edmund Massey (1690-1765) defendeu que as doenças seriam uma retribuição divina e punição de Deus. E qualquer medida para evitar a varíola seria inerentemente uma “operação diabólica”, semelhante à blasfêmia, pura e simples.

A oposição religiosa à vacinação não foi a única forma de questionamento. Após a descoberta das vacinas por Jenner, era comum se dizer que as imunizações deveriam ser evitadas porque não eram “naturais”.

Esta afirmação fez com que as vacinas se tornassem mais uma vítima da falácia do “apelo à natureza“, uma técnica retórica que considera “bom” tudo aquilo que é natural e “ruim” o que é considerado não natural.

Mas este não é um argumento lógico. O arsênico, o Ebola e o urânio, por exemplo, são perfeitamente naturais, mas não é saudável acrescentá-los ao nosso café da manhã.

Os críticos também acreditavam que as vacinas poderiam alterar não só as nossas defesas contra as doenças, mas também, de alguma forma, o nosso próprio corpo.

Uma ilustração de 1802 mostra pacientes sendo inoculados contra a varíola e transformados em vacas.

Esta é uma das origens da “falácia de que as vacinas alteram permanentemente o nosso DNA”, segundo o cirurgião David Gorski, editor da publicação Science-Based Medicine (“Medicina baseada na ciência”, em tradução livre).

“É claro que, na época, eles não conheciam o DNA, mas a ideia de que as vacinas, de alguma forma, poderiam mudar a nossa própria essência é uma falácia antivacina com origens bastante remotas”, explica ele.

Ilustração do início do século 19 mostrando pessoas inoculadas contra a varíola se transformando em vacas, usada por grupos antivacina da época

Getty Images
Um infame desenho distribuído por grupos antivacina no início do século 19 mostra pessoas se transformando em vacas, depois de serem inoculadas contra a varíola

Também eram comuns as alegações de que as vacinas eram venenos. Um cartaz exibido frequentemente em protestos dizia que “é melhor a cela de um criminoso do que um bebê envenenado”.

Outros afirmavam, sem provas, que a vacinação era uma manobra secreta criada pelos médicos para enriquecer. Esta alegação é comprovadamente falsa e chega a ser um insulto aos pioneiros, como Jenner, que se recusou a ganhar dinheiro com as vacinas.

A popularidade dessas alegações falsas deixou muitos médicos da época desapontados.

Essas “falsidades […] impedem o progresso da descoberta mais brilhante que já se fez”, lamentou o médico americano John Redman Coxe (1773-1864), em 1802.

Sua queixa é surpreendentemente similar à da OMS, que observou, dois séculos depois, que “a forma de tratar do movimento antivacina é um problema desde os tempos de Jenner”.

“A melhor forma, a longo prazo, é refutar as alegações erradas na primeira oportunidade, fornecendo dados cientificamente válidos. Mas é mais fácil falar do que fazer, pois o adversário nesta disputa joga seguindo regras que geralmente não são as da ciência.”

Existem também outras razões para as campanhas antivacina. Um dos maiores argumentos se baseava em preocupações com a autonomia do corpo e as liberdades individuais.

De fato, as organizações antivacina começaram como uma forma de reação à obrigatoriedade da vacina determinada pelos governos, segundo o professor de Pediatria e Virologia Molecular Peter Hotez, da Faculdade de Medicina Baylor, no Estado americano do Texas. Hotez é um cientista especializado em vacinas, indicado ao Prêmio Nobel.

Trata-se de um “movimento pela liberdade da saúde que começou no início do século 19, como alternativa à medicina científica”, segundo ele.

O argumento das “liberdades pessoais” pareceu ser particularmente convincente para os moradores da capital sueca, Estocolmo. Lá, apenas 40% dos moradores foram vacinados contra a varíola em 1873. No restante do país, o índice foi de 90%.

No ano seguinte, a Suécia sofreu um surto de varíola em massa, que causou a morte de 330 a cada 10 mil moradores de Estocolmo — mais de 10 vezes a taxa de mortalidade do restante do país.

Em vista do surto, a capital do país presenciou forte aumento do número de pessoas em busca de imunização.

Longas filas de pessoas esperando para serem vacinadas contra a varíola, após o surgimento de um pequeno número de casos em Nova York, nos Estados Unidos, em 1947

Getty Images
Longas filas de pessoas esperando para serem vacinadas contra a varíola, após o surgimento de um pequeno número de casos em Nova York, nos Estados Unidos, em 1947

Muitos índices de saúde pública melhoraram ao longo do século 19. A mortalidade infantil, particularmente, foi drasticamente reduzida.

Grande parte desta redução se deveu à vacina contra a varíola. Afinal, o vírus matava desproporcionalmente as crianças e a proteção contra a doença foi uma revolução.

A contribuição da vacinação para a melhoria da saúde infantil prosseguiu em tempos mais recentes. Ela foi responsável por pelo menos 40% da redução da mortalidade infantil ocorrida nos últimos 50 anos.

Ainda assim, os movimentos antivacina negam todas as evidências da eficácia da vacinação. Eles atribuem as melhorias a medidas como o progresso das condições sanitárias.

No final do século 19, em Leicester, no Reino Unido, ativistas antivacina defendiam que a quarentena e a comunicação obrigatória (medidas supostamente utilizadas em paralelo à vacinação), por si só, já eram suficientes.

Um surto de varíola verificado em 1894 levou os defensores desta estratégia a declarar que ela havia sido vitoriosa, já que apenas 20,5 a cada 10 mil pessoas foram infectadas.

Ocorre que eles ignoraram o fato de que os profissionais de saúde já estavam vacinados e que as crianças foram desproporcionalmente atingidas. Dois terços dos casos em Leicester atingiram crianças.

Por outro lado, Londres, com a maior parte da população vacinada, presenciou muito menos casos de crianças doentes ou mortas. E seu índice geral de ocorrência de sarampo também foi de apenas 25% dos casos de Leicester (5,5 a cada 10 mil pessoas).

Enquanto a vacinação virtualmente extinguia a varíola em diversos países europeus, a desigualdade de acesso à vacina fazia com que ela continuasse causando estragos nos países mais pobres e em áreas sob domínio colonial.

A doença matava mais de dois milhões de pessoas todos os anos em meados do século 20, até que se iniciou um esforço mundial, sério e concentrado, para erradicar a varíola em 1959. E, 20 anos depois, a vacinação global continuada erradicou totalmente a doença.

Pela primeira vez na história humana, um vírus letal ficou restrito aos livros de história e a um punhado de amostras cuidadosamente controladas em laboratórios de riscos biológicos.

O conhecimento mais profundo da imunologia no século 20 também viu o desenvolvimento de vacinas contra doenças antes onipresentes, como a poliomielite e o sarampo, salvando milhões de vidas por ano até hoje.

Em 1994, o continente americano ficou livre da pólio, seguido pela Europa, em 2002. Mas o ativismo contra as vacinas permaneceu.

O advento da era da informação e, particularmente, da internet, deu nova vida a algumas das mensagens difundidas pela primeira vez 225 anos atrás. E, com o surgimento das redes sociais, no início do século 21, este processo só se intensificou.

Em 2018, nove em cada 10 adultos britânicos afirmavam que as vacinas eram seguras e eficazes. Mas, em 2023, apenas sete em cada 10 mantinham esta opinião.

Ilustração antiga usada pelos primeiros movimentos antivacina

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Muitos dos modernos opositores das vacinas repetem os mesmos argumentos dos que se opuseram aos esforços de Edward Jenner e seus colegas, mais de 200 anos atrás

Mas mesmo as pessoas que não têm certeza se devem acreditar em afirmações falsas ou enganosas sobre as vacinas podem ser prejudicadas.

A simples exposição às teorias da conspiração contra as vacinas é um forte indicador da disposição dos pais em vacinar ou não seus filhos.

Em 2019, a OMS declarou que a hesitação em relação às vacinas é uma das 10 maiores ameaças à saúde públicaexistentes no mundo.

O sarampo, por exemplo, é altamente infeccioso. Cada caso isolado gera 12-18 casos adicionais, exigindo que mais de 95% da população seja vacinada para oferecer defesa contra pessoas vulneráveis e evitar surtos (a chamada “imunidade de rebanho“).

No ano 2000, a alta observância da vacinação fez com que a doença fosse declarada virtualmente eliminada nos Estados Unidos. Mas, desde então, a cobertura vacinal caiu abaixo dos níveis de imunidade de rebanho em muitas comunidades.

E, 25 anos depois, os Estados Unidos enfrentam um número cada vez maior de surtos de sarampo, que já causaram a morte de um adulto e uma criança, ambos não vacinados. Foi a primeira morte pediátrica desde 2003 e a primeira morte por sarampo desde 2015.

Em julho, o número de casos de sarampo relatados nos Estados Unidos atingiu o pico de 33 pessoas afetadas.

Por mais contemporâneo que o movimento antivacina possa parecer hoje em dia, muitos dos seus argumentos repetem as mesmas falácias da era vitoriana — desde o argumento de que todos os apoiadores das vacinas seriam financiados pela indústria farmacêutica até a falsa informação de que outros avanços da saúde pública teriam tornado as vacinas desnecessárias.

A popularidade dessas narrativas, segundo David Gorski, é um lembrete da obstinada tenacidade da desinformação na área da saúde.

“A hesitação e o medo que levaram aos baixos índices de vacinação são diabolicamente persistentes e causados pela desinformação”, afirma ele.

Se estas ideias continuarem a se espalhar, Gorski receia que o surto de sarampo nos Estados Unidos possa ser apenas o começo.

* David Robert Grimes é professor assistente de Saúde Pública do Trinity College de Dublin, na Irlanda, e autor do livro The Irrational Ape: Why we fall for disinformation, conspiracy theory, and propaganda (“O primata irracional: por que acreditamos em desinformação, teorias da conspiração e propaganda”, em tradução livre). Seu trabalho se concentra na desinformação e em teorias da conspiração na área da saúde.

Leia a versão original desta reportagem(em inglês) no site BBC Innovation.

 

 

 

 

 

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