
Miguel Lucena
Advogado e jornalista
A segurança pública no Brasil parece caminhar em círculos viciosos, com foco em repressão nas pontas mais frágeis da sociedade. O discurso oficial insiste numa guerra ao tráfico que, na prática, se mostra ineficaz e seletiva. Enquanto isso, comunidades pobres são utilizadas como esconderijo pelas facções e alvo constante de operações policiais. A pergunta que não quer calar: por que sempre os mesmos territórios são escolhidos para o combate?
É evidente que os bairros nobres não são imunes ao consumo de drogas. Pelo contrário, são grandes polos de demanda. As drogas que circulam nas comunidades não desaparecem ali. Elas seguem um fluxo bem estabelecido até os consumidores finais, que em boa parte estão nas classes médias e altas. Executivos, empresários, universitários, profissionais liberais — muitos deles mantêm o mercado girando com seus hábitos de consumo, sem que isso abale a “ordem” em seus ambientes.
A guerra ao tráfico, nos moldes atuais, gera poucos resultados concretos. O tráfico continua operando, as armas circulam, e os jovens periféricos seguem sendo cooptados, encarcerados ou mortos. A legalização das drogas é um tema polêmico, mas inevitável quando se busca alternativas reais. Em um cenário de legalização, a atuação da polícia mudaria: o foco deixaria de ser o combate ao pequeno traficante e passaria à regulação, controle de qualidade e fiscalização da venda legal.
A ideia de que a legalização causaria uma epidemia de consumo entre os mais pobres carece de lógica. Se um trabalhador não pode comprar filé mignon, por que compraria cocaína de alto custo? Pobres não invadem supermercados para roubar cortes nobres de carne, então por que fariam isso com drogas legalizadas e reguladas? O mercado se ajustaria conforme o poder aquisitivo, como ocorre com qualquer produto.
Além disso, é preciso perguntar: o sistema de saúde suportaria um possível aumento de dependência? A resposta não é simples, mas também não é desesperadora. Países que legalizaram ou descriminalizaram o uso de drogas, como Portugal, investiram em prevenção, tratamento e redução de danos — medidas que mostraram eficácia maior que a repressão cega.
E o tráfico, acabaria? Não completamente. Mas sua força e controle territorial diminuiriam sensivelmente. Parte considerável do poder das facções vem do monopólio da venda de drogas e da ilegalidade que cerca esse comércio. Retirando essa fonte de renda, os grupos perderiam poder e influência.
Há, contudo, interesses obscuros que resistem a qualquer mudança. Muitos enriquecem com a guerra ao tráfico: contrabandistas de armas, lavadores de dinheiro, agentes públicos corruptos, empresas de segurança privada. A manutenção do caos favorece esses atores que lucram com o medo e a instabilidade.
A polícia, por sua vez, deveria servir para proteger a sociedade como um todo, mas muitas vezes atua apenas para conter os que ameaçam a ordem estabelecida — leia-se: os que desafiam a “paz” dos ricos. Criminosos pobres enfrentam ações violentas, prisões em massa, tortura e execuções sumárias. Já os criminosos de colarinho branco, quando punidos, têm tratamento diferenciado, cela especial, prisão domiciliar e bons advogados.
A guerra às drogas, no Brasil, escancara a seletividade penal e revela um sistema que não busca justiça, mas a preservação de privilégios. É hora de romper o ciclo da hipocrisia e encarar os fatos com coragem.