Maria José Rocha Lima
Difícil é convencer os movimentos sociais no Brasil, particularmente o movimento negro, de que a agenda principal para a salvação de crianças, jovens e adolescentes negros é a agenda da educação. Esta é a agenda para a qual devem ser voltadas todas as nossas mais positivas e poderosas energias, para a garantia da conquista da educação pública de qualidade para todos. Como afirmou Nelson Mandela, “a educação é a arma mais poderosa contra o racismo”.
Difícil é situar nitidamente o tema da educação como luta prioritária para a salvação das crianças, jovens e adultos, na sua maioria negra, numa sociedade que na sua infância política foi inculcada de que a educação é instrumento de dominação, mero instrumento de ascensão social, como denunciaram corajosamente alguns grandes intelectuais como Florestan Fernandes e Dermeval Saviani.
O sociólogo Florestan Fernandes tinha acompanhado o linchamento público dos educadores Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira e mais uns quatro que, na década de 1930, subscreveram O Manifesto dos Pioneiros da Educação. Na sua obra A cultura Brasileira, o grande antropólogo Fernando de Azevedo descreve o drama que ele e Anísio Teixeira vivenciaram, a resistência tenaz contra as suas ideias de educação pública de qualidade para todos e a tentativa de desmoralizá-los. (Fernandes, 1989, p.161)
Esses educadores, que eram chamados de rebentos da burguesia, sofreram uma resistência implacável contra as suas ideias, que, para muitos, era uma transferência para o Brasil dos ritmos mais avançados das sociedades europeias. Eram “acusados” de serem reformistas, liberais, socialistas róseos. Num dado momento Florestan nos adverte que não havia no Brasil uma cultura cívica. Na carência de uma cultura cívica, a sociedade civil era rústica, não civilizada.
Desse modo, Florestan defendeu os pioneiros junto à esquerda e contra a direita afirmando: “Esses educadores trouxeram para o Brasil, em nível de consciência social, uma perspectiva revolucionária de educação. Anteciparam mudanças, que seriam potencialmente possíveis e necessárias, numa sociedade capitalista, mas que as classes dominantes brecaram, impediram”. (1989, p.161)
Durante o período da Constituinte de 1988, como deputado federal, Florestan Fernandes teve que anunciar que ia abrir o peito e dizer toda a verdade. “Cultivamos no Brasil a ideia de que temos alguns problemas graves”. Falamos de reforma agrária, na reforma urbana, no problema da moradia, no problema da saúde, no problema do menor (sic), nos dilemas e em vários assuntos. A educação, quase sempre, é escamoteada. E eu teria coragem de dizer aqui que ela é o problema mais grave do Brasil. É o problema número um do Brasil.(grifo nosso).
Florestan continua: “Não há dúvida de que passar fome, não ter emprego, não ter moradia são realidades terríveis. Mas, quando se vive numa sociedade democrática, desde que ela não seja o modelo que o Sr.ª Constituinte V F defendeu aqui, da democracia da ignorância, é importante que a educação esteja ao alcance da maioria, daqueles que são os oprimidos, que são os excluídos, os explorados. A educação no Brasil é um problema de inacreditável gravidade”. (Fernandes, 1989, p.124)
Para o patrono da sociologia brasileira, “todos falaram a respeito da porcentagem de analfabetos. Mas o Censo de 1980 apontava 34% da população analfabeta”. E Florestan prosseguia: “E há outros dados: na população de 10 a 14 anos, há aproximadamente quatro milhões de analfabetos, são 30% da população”.
Passados 32 anos da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, o analfabetismo resiste no Brasil do século 21. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, havia 11,3 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade. Se todos residissem na mesma cidade, este lugar só seria menos populoso que São Paulo – a capital paulista tem população estimada de 12,2 milhões. Isto, sem incluir 50% das crianças de oito anos que ainda são analfabetas, depois de três anos de estudos no ensino fundamental, nas escolas públicas. E na Região Nordeste esses índices podem alcançar 70% de crianças analfabetas no 3º ano do ensino fundamental.
As estatísticas do IBGE consideram as pessoas com 15 anos ou mais que foram declaradas como analfabetas. Os números, no entanto, podem ser ainda mais graves se for medida a “capacidade de compreender e utilizar a informação escrita e refletir sobre ela” – como faz o estudo Indicador de Alfabetismo Funcional, elaborado pelo Instituto Paulo Montenegro e pela Ação Educativa. Em 2017, testes cognitivos aplicados em 2.002 pessoas residentes em áreas urbanas e rurais de todo o país verificou que 29% das pessoas podem ser consideradas analfabetas funcionais e que não superam o nível rudimentar de proficiência. Apenas 12% da população são consideradas “proficientes”.
Em 2020, o Jornal Folha de São Paulo estampou a manchete: 71,7 % dos jovens abandonam a escola. São 10 milhões de jovens entre 14 e 29 anos. E 71,7% destes são negros ou pardos e abandonaram a escola sem ter completado a educação básica. A maioria destes afirmou ter deixado a escola pela necessidade de trabalhar. No grupo etário 60 anos ou mais, a taxa de analfabetismo das pessoas de cor branca alcança 10,3%, e, entre as pessoas pretas ou pardas, amplia-se para 27,5%”.
Florestan, certamente, diria outra vez: Aqui está o dilema central, a concentração social, racial e regional da riqueza e do poder. Não falar sobre esses dados é ocultar a realidade efetiva da concentração social da renda. Quer dizer uma pequena minoria é dona da riqueza, não apenas da terra, mas da riqueza sob várias formas. Ela pratica a concentração racial de modo que, nas estatísticas, negros e mulatos comparecem com participação desigual, muito abaixo, inclusive, dos miseráveis da terra que sejam brancos.
O analfabetismo no Brasil, absoluto ou funcional, reflete a exclusão do passado, faz sombra ao presente e mina as possibilidades do futuro das crianças, negras, pardas e brancas das classes populares.
*Maria José Rocha Lima é mestre e doutoranda em educação. Foi deputada de 1991 a 1999. É presidente da Casa da Educação Anísio Teixeira. Dirigente da Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise –ABEPP-. Membro Club Soroptimist International SI Brasília Sudoeste.