*Frutuoso Chaves
A cidade de Patos, no coração da zona seca, é uma daquelas surpresas que o Nordeste brasileiro costuma reservar aos advindos de outras paragens. Saia da beira-mar, em João Pessoa, ou do São João de Campina Grande – paradeiros ditados pelo verão, ou pelo inverno – o visitante não conterá o espanto.
Ali, naquele ponto onde o mapa da Paraíba estreita a cintura, a paisagem sertaneja feita de pedras, mandacarus, juazeiros, aroeiras e xiquexiques abre espaço para uma cidade moderna com edifícios, universidades, parque fabril e tecnológico forte e grande atividade comercial.
O percurso, se iniciado em João Pessoa, soma 320 quilômetros, 120 com asfalto em faixa dupla. É viagem que em muito maior número já seria feita pelos que engrossam, lentamente, o fluxo regional de visitantes se maiores fossem a visão e os cuidados dos governos com a interiorização do turismo. É por falta desses investimentos que o calendário turístico do Nordeste tem-se resumido, quase sempre, às festas juninas, ou ao veraneio em águas calmas e mornas.
De qualquer forma, uma pirâmide sob os céus do Sertão tem atraído romeiros a Patos, em tempos que não sejam de pandemia. Trata-se da Cruz da Menina, santuário erguido pela fé católica em memória da pequena Francisca, a retirante da seca de 1923 entregue aos cuidados de um casal de moradores locais.
Acredita-se que, desesperados e famintos, pai e mãe desfizeram-se da filha para livrá-la da morte por inanição. Portanto, ao invés de um abandono impiedoso, teriam levado a cabo um gesto extremado de amor, desses retratados em romances sobre a mais exibida das tragédias nordestinas.
Conversei, em 2011, com José Motta, autor do livro que inspirou peça teatral homônima sobre a Cruz da Menina já levada a palcos diversos, São Paulo entre eles, sob a direção do paraibano Roberto Cartaxo.
A paixão de Motta pelo tema também o levou a integrar o Comitê Pró Beatificação de Francisca, instalado em 2007 com participações da Diocese, do Instituto Histórico e Geográfico de Patos, fundações culturais e segmentos universitários da cidade.
Ali, a história de Francisca, trágica e dolorosa, é repassada de geração em geração. Está impressa, dessa forma, na memória coletiva.
Na seca de 1923, mal sabiam os pais de Francisca que haviam condenado a filha a uma vida de humilhação e suplício. O casal Absalão e Domila Emerenciano de Araújo, a cuja proteção a menina fora entregue, logo faria dela uma escrava.
Ele se encarregava do funcionamento do gerador de luz da cidade e, embora de índole pacata, era incapaz de conter a fúria e a maldade da jovem mulher, dona de beleza ímpar. As surras em Francisca eram constantes, a última com a trave da janela que ela esquecera de fechar antes de dormir. As pauladas racharam-lhe a cabeça e um dos braços. E, na mesma noite, o corpo era desovado no Sítio Trapiá.
Com o raiar do sol, o casal passou a espalhar o boato do sumiço da garota sustentado apenas até a descoberta do pequeno cadáver, dois dias depois, pelo agricultor Inácio Lázaro, alertado que fora pelos urubus. O histórico dos maus tratos e a confirmação das fraturas, depois do traslado daquele corpo de criança para a Delegacia de Polícia, denunciavam o assassinato e sua autoria.
A proteção de figuras políticas evitou a prisão de Domila e Absalão, mas ambos fugiriam da cidade diante da crescente revolta popular. Passaram-se não menos de onze anos da data do crime até o primeiro julgamento do casal, em Campina Grande. A dupla seria inocentada neste e em mais dois outros julgamentos. Porém, já estava irremediavelmente condenada pela opinião pública.
Ainda em 1923, Inácio, o agricultor, plantou uma pequena cruz no local onde havia achado o corpo franzino. Passou-se o tempo, veio outra seca e com ela a súplica do roceiro José Justino feita aos Céus com a intermediação da menina supliciada. Ato contínuo, escavou a cacimba com que abasteceria sua gente e salvaria o resto do gado. Agradecido, ergueu uma pequena capela no lugar da cruz, utilizando-se da mesma fonte d’água.
A primeira romaria dava-se em 25 de abril de 1929, data da inauguração. Depois disso, crescia o número de pessoas dispostas a pagar promessas por graças obtidas com a invocação a Francisca.
Também corre em Patos a história de um americano para quem a garota aparecera em sonho com a promessa da cura de feridas que dele devoravam os pés. Para tanto, o moço deveria prostrar-se em reza sob o céu azul e sem nuvens do sertão paraibano. E assim foi feito com direito ao depósito por este visitante de réplicas dos seus ferimentos no já consagrado ponto de romaria.
A fama de milagreira da pequena mártir – como passou a ser vista pelo povo – encheu o local a ponto de ele não mais conseguir abrigar as levas de romeiros com seus ex-votos, assim chamadas as reproduções de parte do corpo humano a que seja conferida intenção votiva, religiosa.
Coube ao então governador Ronaldo Cunha Lima inaugurar, em 24 de outubro de 1993, a imensa estrutura sob forma de pirâmide sob a qual se abrigam não apenas a capela original, mas, também duas Salas de Ex-Votos, uma Sala de Velas, restaurante, lanchonetes e lojas de lembranças. Toda a área é servida por alamedas, jardins e vasto espaço para estacionamento de carros, ou ônibus, com destino ao lugar, ou de passagem por ali a caminho de outros roteiros.
Ainda hoje, sonha-se, em Patos, com o êxito dos esforços para a beatificação da garota, fenômeno que alargaria o turismo e as oportunidades de emprego e renda na terceira maior cidade paraibana. Outro sonho é com a inscrição do lugar no calendário do turismo nacional. Sonho antigo e, ao que parece, inalcançável até com a intermediação de Francisca.
*Jornalista profissional com passagens pelos jornais paraibanos A União (Redator e Chefe de Reportagem), Correio (Redator e Editor de Economia), Jornal da Paraíba (Editorialista), O Norte (Editor Geral), O Globo do Rio de Janeiro e Jornal do Commercio do Recife (correspondente na Paraíba, em ambos os casos). Também pelas Revistas A Carta (editada em João Pessoa) e Algomais (no Recife).