*REGIS FERNANDES DE OLIVEIRA
Ao falar em poderes agônicos não estou me referindo à agonia no sentido de estertor. O agônico significa a luta contra a morte. Aqui significa apenas o confronto.
Como escreve Viviane Mosé, “o agon é uma luta na qual não há trégua nem fim; como é preciso que a luta perdure, para que as diferentes formas da vida se manifestem, os lutadores não podem chegar a um acordo; o que seria uma trégua, e nenhum deles pode ser aniquilado pelo outro, o que significa o fim do combate. O combate não pode nem se tornar um extermínio, nem se resolver por meio de um acordo, ele deve se manter, de modos distintos e diversos, em prol da conquista em si mesma, ou seja, do engrandecimento da vida, que é uma luta constante” (“O homem que sabe”, ed. Civilização brasileira, Rio de Janeiro, 2012, 4ª. ed., pág. 86).
O conceito de agon grego cabe, como luva, na análise da situação brasileira. Assim, os poderes não estão em agonia, mas são agônicos, a saber, estão em permanente confronto.
Todo conflito deverá ocorrer dentro dos parâmetros legais estabelecidos pela Constituição. Os limites estão traçados pelo constituinte originário. Os litigantes somente podem utilizar as armas admitidas. O que transbordar da Constituição será inutilizado pelo poder que detém competência para tanto.
A democracia é o sistema que vive em meio aos confrontos. Tucídides (“História da guerra do Peloponeso”, Ed. UnB, 2001, Livro Segundo, item 37, pág. 108) esclarece que o nome do regime em que viviam os atenienses era a democracia e nela “enquanto no tocante às leis todos são iguais para a solução de suas divergências privadas” (pág. 109).
Ideologia significa a falsificação de uma ideia que é pressuposta como condição para conquista do sentimento da sociedade.
Nesse sentido, a democracia é “vendida” pelo rótulo postulado pela maioria dominante. A ideologia, enquanto consciência equivocada da realidade, torna-se necessária para permitir a convivência. A ideologia desperta a crença na realidade. A população é dominada pelos rótulos que são expedidos pelas ideologias em conflito. Quem detém os meios de produção material “dispõe também dos meios da produção intelectual” (Karl Marx, “A ideologia alemã”, ed. Martins Fontes, 2008, pág. 48).
As variações são diversas, mas sempre mantendo um ponto central: domínio de um, de alguns ou de todos. Nesse sentido pode-se falar em política como o procedimento “pelo qual uma sociedade escolhe as regras que vão governá-la” (Daron Acemoglu & James Robinson, ed. Campus, “Por que as nações fracassam – as origens do poder, da prosperidade e da pobreza”, 2012, pág. 62).
Há liberdade de pensamento que pode ser exposta nos meios de comunicação (televisão, rádios, jornais bem como nas mídias sociais). Não há controle. Prevalece a liberdade. Os órgãos do desempenho do poder do Estado funcionam regularmente sem quaisquer peias. Você tem liberdade de discutir toda e qualquer ilegalidade ou constrangimento perante um Judiciário que está aberto e toda e qualquer reivindicação de direitos. Não se repete a trágica situação descrita por Kafka. O queixoso tem acesso às portas do Judiciário.
Existe a escolha periódica dos governantes. O governante não é sempre o mesmo e é substituído após determinado período através de eleições livres. Não há possibilidade de perpetuar-se no cargo.
É da essência da democracia a inexistência do medo. Este é o sentimento mais característico do desenvolvimento dos governos de força. Esclarece Manuel Castells “como sabemos, aprendendo da neurociência mais avançada, a política é fundamentalmente emocional, por mais que isso pese aos racionalistas ancorados em um Iluminismo que há tempos perdeu seu brilho” (“Ruptura”, ed. Zahar, 2018, Rio, pág. 26).
É natural no ser humano a busca de poder. Hobbes, fundado em Plauto dá a receita: homo homini lupus. É da natureza do ser humano. A expressão dá bem ideia do que se quer dizer. O homem busca conquistar espaço. Sempre em detrimento do outro. Este entra na relação não como colaborador, mas como sujeito de dominação. Aparentemente, com a instituição do Estado (“Leviatã”, na imagem hobbesiana) a relação termina. Ao contrário, ela prossegue eternamente. Há sempre o conflito que é pai de todas as coisas, como disse Heráclito.
Tenta-se atribuir ao Estado finalidades que deve alcançar (a saúde é um direito de todos e um dever do Estado – dístico que se repete em relação à educação, à cultura, ao meio ambiente, ao transporte), mas nunca realizáveis. É que prevalece sempre a lei do mais forte na análise de István Mészáros (“A montanha que devemos conquistar”, ed. Boitempo, 2009, pág. 56). Diz com precisão: “Assim, a ilegalidade do Estado, como afirmação necessária da lei do mais forte sob as circunstâncias historicamente mutáveis das determinações sempre autolegitimatórias, é inseparável da realidade do Estado como tal. Em outras palavras, a lei do mais forte e a ilegalidade do Estado são em certo sentido sinônimos, em vista de sua correlação necessária” (ob. cit., pág. 57).
A lógica do raciocínio é fatal: O Estado que não cumpre a Constituição e que impõe as normas elaboradas pelos mais fortes é ilegal.
As democracias passam por momentos de maior solidez em alguns países e de menor em outros. Decorre da instabilidade ou estabilidade institucional por que passa cada um deles. Como já disse, não há parâmetros sólidos de identificação.
Ao redor dos dois centros de emanação de poder político e econômico mundial (Estados Unidos e China) giram os demais países. A Comunidade Europeia busca reforçar sua união calcada na Alemanha e na França e busca superar o Brexit. A Ásia cresce assustadoramente não só pela proximidade com a China, mas pelo desenvolvimento de diversos países (Laos, Cambodja, Vietnã, Indonésia, Malásia. Proximamente pode ser alterado o centro das decisões.
A América Latina com o desequilíbrio brasileiro amarga situações tristes e desastrosas. Não só o Brasil, mas Venezuela, Cuba, Haiti, Nicarágua, Argentina, Paraguai e Chile estão com suas democracias em jogo.
Na precisa análise de Steven Levitsky & Daniel Ziblatt (“Como as democracias morrem”, ed. Zahar, Rio, 2018) “a erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeníssimos passos. Tomado individualmente, cada passo parece insignificante – nenhum deles aparenta de fato ameaçar a democracia. Com efeito, as iniciativas governamentais para subverter a democracia costumam ter um verniz de legalidade” (pág. 81).
Assim é o governante não pode jamais dizer que quer subverter a ordem nem apresentar discurso em que vaze suas intenções. Ao contrário, a mensagem é sempre de defesa da ordem democrática, de manutenção do funcionamento dos poderes e de garantia dos direitos constitucionais. Esse é o discurso. Na prática, a pretexto da vontade do povo, as decisões vão tomando caminho diverso. Neste passo, o uso da mídia social é fundamental, já que não se pode manipular a grande mídia a destilação das ideias e dos códigos de persuasão vão saindo. Gotejando. Aos poucos. Como os passos do lobo. Como disse magnificamente Jacques Derrida, o lobo finge, mas não consegue fingir o fingimento. O homem é o único que finge e finge o fingimento.
As estruturas passam, então, a organizar formas de controle não só do Parlamento, que é o objeto primeiro dos ataques, mas também do Judiciário. O fingimento toma forma em mensagens sedutoras junto à mídia. Gestos, sinais, símbolos ao gosto da massa da população passam a emitir códigos diários de simpatia com os legítimos direitos da população até então negligenciados e abandonados.
Há que se encontrar um ponto de equilíbrio para fazer cessar o conflito latente entre os órgãos de poder. Sabidamente, como se viu anteriormente, é agônico, mas cria instabilidade institucional. Fala-se em politização do Judiciário ou judicialização da política. De qualquer ótica que se veja a invasão de competências que cabem a um ou outro dos poderes do Estado leva a uma desconfiança e acirra o conflito.
O Judiciário detém o poder decisório e, diante da inércia do Legislativo ou do Executivo, invade sua espera de atribuições. Em algumas oportunidades, legisla; noutras, administra. Decide sobre aborto, limite de vereadores nos Municípios, delimita as fakes news, determina fechamentos de sites.
É, pois, essencial, encontrar um ponto de equilíbrio entre as atribuições de cada qual, para que os órgãos de poder possam exercer suas competências com liberdade, sem invadir a dos outros.
Há um conflito permanente entre Legislativo e Executivo. Este acusa o primeiro de obstar ou alterar suas propostas, inclusive criando encargos financeiros insuportáveis. Aquele entende que o Executivo não envia propostas em tempo oportuno para deliberação e busca sufocar o Congresso.
De seu turno, o Executivo conflita com o Judiciário. São decisões que impedem o exercício arbitrário das funções administrativas. O impedimento de Ministro assumir suas funções, a suspensão de atribuições executivas, a deliberação sobre o partilhamento de competências em relação aos serviços públicos, mais exatamente a saúde, tudo leva a uma tensão permanente.
A partir da assunção de um Presidente que proveio do Exército e dele se afastado na condição de capitão levou o convite a inúmeros militares a comporem os cargos maiores do Executivo. A partir do Vice-Presidente que é general, inúmeros generais, coronéis e outros titulares de postos nas três armas foram chamados a integrar o governo.
Embora os militares sejam preparados, a mente habituada à hierarquia, obediência a valores patrióticos e aos superiores choca-se com a mentalidade civil, preparada para atender a outros sentidos.
O militar está habituado à força e ao manuseio de armas que nem sempre compõem o meio do civil. Em determinados cargos, o militar pode ser mais útil que o civil.
Vê-se que o ambiente é tenso.
Em sendo assim, o Poder Executivo adquire preponderância sobre toda a sociedade. Não exatamente sobre os demais poderes, porque na partilha dos recursos a eles são destinados os constitucionalmente previstos. Não podendo retê-los, os demais órgãos de poder tornam-se independentes. O mesmo não se diga de toda a sociedade que depende do dinheiro federal para atendimento de suas necessidades.
Querendo ou não cria-se uma situação de dependência. É por aí que pode haver a deterioração do sistema. E isso não ocorre de repente, mas de forma gradativa. Como dizem Levitsky e Ziblatt “a erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeníssimos passos” (ob. cit., pág. 81).
Sabidamente a democracia permite comportamentos que até vão contra ela, porque ela se constrói em uma sociedade aberta. A diferença é que na sociedade fechada os hábitos são repetitivos e tendem à manutenção dos símbolos e dos comportamentos. Na aberta a tendência é a mudança, a adaptação aos novos tempos, a simpatia por novas ideias que alterem os comportamentos sociais. Logo, as mensagens são mais diluídas e tendem a captar mais simpatia. Não é a sociedade aberta imune a alterações. Não tem medo do desconhecido. Não teme alterações. Não se fecha a novidades. Tudo pode ser experimentado. Até propostas contraditórias, mas que são permitidas.
A sociedade aberta pode ter seus inimigos (Niklas Luhman), mas não pode aceitar a ideia de sua própria extinção. Mas, isso, jamais o líder afirma. Ao contrário, louva sua coesão interna e nem passa por sua cabeça qualquer alteração radical. Isso no discurso, mas na prática o ensaio da destruição começa. O líder é seduzido por si próprio.
O líder populista adquire legitimidade e gradativamente vai pondo a democracia em xeque. Paulatinamente ganha apoio popular e, posteriormente, por força disso os aplausos começam a vir dos parlamentares. Prefeitos e vereadores se engajam no engano. É hora do golpe.
Nem há necessidade de um golpe institucional, de forma a fechar o Parlamento e o Judiciário. Não. O golpe é incisivo, mais preciso. É o golpe da sedução por códigos que insinuam um governo democrático. Mudam-se as regras do jogo. Prolongam-se mandatos, permitem-se reiteradas reconduções através de eleições livres
O denominado populismo ganha manchetes e desperta o sentimento contido do povo em se tornar justiceiro. Dentro de determinados parâmetros, mas o medo pode tomar conta e a reação a ele é de agressividade.
Lênin quando assumiu o Estado bolchevique escreveu interessante trabalho rotulado “O que fazer?” Nele apontava os caminhos que deveriam ser seguidos pelo governo diante de um Estado totalmente quebrado por força da Primeira Guerra Mundial de que saíram tão logo assumiram o poder.
Aqui, o rótulo do tema dado a versejar é “Estado de calamidade democrático”. Ainda não estamos em situação esdrúxula, mas podemos caminhar para ela. A pandemia do coronavirus foi duro golpe. Estrutura do passado com recebimento de recursos para pagamento de servidores.
O retrato que nos é transmitido e que se pode verificar é de calamidade. Serviço de educação péssimo. Serviços de saúde precários. Serviços de transporte ultrapassados. Serviços de saneamento básico caóticos. Arrecadação tributária por volta de 35% do PIB, o que é dramático. Queimada da floresta amazônica. Judiciário moroso. Estradas esburacadas por todo o país. Sociedade descontente. O vírus obrigando à ausência de abraços e carinhos com que se pode remediar um pouco o distanciamento social. Burocracia que dificulta abertura e fechamento de empresas. Distanciamento de centros poderosos de economia.
Diria Lênin: O que fazer?
*REGIS FERNANDES, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO.